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OS PERSONAGENS

No documento Sade: Criação e processo do drama (páginas 118-155)

Cenas I e III – fuga na Itália (1772)

CAPÍTULO 3 OS PERSONAGENS

Neste capítulo, tratarei dos personagens da peça. Tentarei traçar como eles foram criados, inspirados em quê, o porquê de eles serem assim e, além de tudo, por que eu peço pra que o mesmo ator faça mais de um personagem, sendo que cada um difere do outro em características, posição social e relação com Sade.

Na introdução, fiz um breve apanhado do que pesquisei sobre Sade e de minhas posições a respeito do marquês. Inevitavelmente, nos dois capítulos anteriores, falei bastante do personagem e penso que já evidenciei todas as características da minha criação de forma até mesmo repetitiva.

Entrementes, vou me abster de tratar do personagem principal para me concentrar nos abutres que o rondam. Apesar de ter escrito uma peça na qual se evidencia, no penúltimo quadro, que tudo é criação do marquês, penso que, refinando a pesquisa a respeito dos personagens que o circundam, podemos perceber que estes personagens também criaram Sade. Há uma teia infinita que parece não ter começo nem fim, pois, dentro deste emaranhado, posso me incluir, criando e sendo criado. Cada personagem que escrevo me abre uma porta, uma janela, faz eu me perceber, me conhecer, me questionar.

Em sua bela obra Outras inquisições114, o escritor Jorge Luis Borges, no ensaio intitulado Magias parciais do Quixote, escreve:

Por que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa e as mil e uma noites no livro das Mil e Uma Noites? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote, e Hamlet, espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios. Em 1833, Carlyle

observou que a história universal é um infinito livro sagrado que todos os homens escrevem, e lêem, e procuram entender, e no qual também são escritos115.

Sem querer entrar em questões místicas e metafísicas, utilizei o exemplo para colorir minha colocação de que tudo está se inventando, a cada momento, a cada instante, e a relação causa e efeito não pode ser explicada procurando seu início e fim, mas sim um círculo, repetindo o velho pensamento de Heráclito, que diz que o caminho para cima e para baixo é um e o mesmo.

A peça se inicia com uma cena que já é um jogo com o personagem título. Apesar de ele estar sempre em cena, o texto começa sem ele. No seguinte diálogo, podemos ver que se faz uma pequena confusão na platéia ou no leitor, quando dizem:

DONATIEN-CLAUDE – Eu vim visitar meu pai...

DILÚVIO (cortando, gozador) – Sei. E eu sou cunhado da finada Maria Antonieta. Sobrenome?

DONATIEN-CLAUDE – Sade.

DILÚVIO (Anotando, falando pra si) – Sade. DONATIEN-CLAUDE – De Sade. Mas pode me...

DILÚVIO (cortando) – Vou chamar os enfermeiros. Este quarto já tem dono.

DONATIEN-CLAUDE (nervoso) – Desculpa, mas eu não sou louco, eu vim visitar...

DILÚVIO (cortando, contemporizando) – Senhor de Sade. Eu entendo. É difícil aceitar. Mas contenha-se.

DONATIEN-CLAUDE (irado) – Quem é o senhor pra me falar deste jeito?

DILÚVIO (gritando) – Enfermeiros!116

115 Idem, p.50.

116

Há uma pequena confusão por conta do sobrenome do filho de Sade, alimentada pelo personagem Dilúvio, que confunde mais as coisas. Quem desfaz o mal-entendido é o próprio Sade.

Há uma intenção sincera de que esta cena seja um simulacro do que pretendo dizer com a peça. O que os espera não é o Sade que vocês esperam. A confusão será desfeita. Basta começar a história, e verão que temos a mania de criar personagens que são muito mais projeções nossas do que gente de carne e osso. A começar pelo autor, que deve sempre admitir que os personagens são filhos, ou espelhos, ou até ele mesmo transubstanciado em criaturas que, se pensa, são independentes. A intenção é que haja uma decepção, um pequeno choque – e pra isso conservo as cenas mais sarcásticas e eróticas pro fim –, como o filho de Sade tem ao ser confundido, e que, como espectador (o nome dado ao personagem denuncia ao leitor a farsa de antemão), fique-se num suspense – bem curto e fraco, é verdade – que confunda a história. “... A história é sempre ainda uma teologia embuçada...”117.

Pois uma saudável confusão, ou falta de identificação, ou distanciamento, como queiram chamar, foi o que me motivou a fazer com que o mesmo ator fizesse personagens diferentes. Há, obviamente, um sentido político também, além de um prazer estético que me motiva a estabelecer o jogo. Analisando cada personagem, poderei detalhar as intenções de forma mais precisa.

DONATIEN-CLAUDE, FILHO DE SADE / LATOUR, CRIADO DE SADE / MARAIS, CHEFE DE POLÍCIA

Este primeiro bloco de personagens evidencia um contraste mais do que óbvio, pois de um lado estão Donatien-Claude, filho de Sade, e o chefe de polícia Marais, ambos adversos ao marquês, e, do outro, Latour, criado de Sade, que fiz com que fosse fiel escudeiro do marquês.

* * *

DONATIEN-CLAUDE

Apesar de filho de um conde (lembremos sempre que Sade era conde, mas se intitulava marquês), Donatien-Claude é um legítimo representante desta classe deplorável, que surge para completar o quadro de mesquinhez humana junto à aristocracia – que será abjeta, depois, por ter perdido o poder e mantido a pose – e ao clero – sempre mais interesseiro que interessante, mais ganancioso que franciscano –, que é a classe dos burgueses.

Não bastasse termos duas classes – aristocracia e clero – contra o povo, sempre ingênuo e manipulável, temos agora a burguesia que – ao contrário das outras duas – é uma classe arrivista, que chega ao poder aos poucos, sem conhecimento e preparo, sem formação e, geralmente, com mais dinheiro no bolso que as outras duas classes agonizantes.

Um parêntese merece ser feito quando falo em classes agonizantes, pois temos aristocratas ao redor do mundo com fortunas incalculáveis e a igreja católica sendo a maior empresa do mundo ocidental – para muitos. Mas são agonizantes por estarem perdendo terreno, regalias, facilidades. A partir do momento que a burguesia chega,

passa a haver um eterno desconforto que me faz lembrar muito aquele aforismo “um é pouco, dois é bom, três é demais”.

Pois esta classe, a burguesia, sem tradição – surgida da proliferação do comércio nos burgos – faz eclodir na sociedade, como um todo, coisas boas e ruins, como tudo nesta vida. Assim como sua ignorância, despreparo e arrogância vão incomodar intelectuais até os dias de hoje (podemos ver que, no século XX, a burguesia foi o grande saco de pancadas dos intelectuais e artistas), por outro lado, é a burguesia que promove a Revolução Francesa, que, apesar de todas as ressalvas que faço e de todos os problemas que trato na peça Sade, sem dúvida trouxe contribuições consideráveis para o mundo em que vivemos, como analisa Eric Hobsbawn em seu Ecos da Marselhesa118.

Não sou defensor aguerrido da Revolução, e o próprio Hobsbawn, falando desta burguesia, nos diz:

Não surpreende que aprendessem a se reconhecer, no curso dos acontecimentos e também retrospectivamente, como uma classe média, e a reconhecer a Revolução como uma luta de classes tanto contra a aristocracia quanto contra os pobres119.

O autor caracteriza devidamente a Revolução como uma revolução burguesa, e, chego a dizer, uma revolução capitalista. A partir daí, vemos o capitalismo governar o mundo. O próprio Luís XVIII era chamado de o “rei burguês”, e Reich, no seu

Psicologia de massas do fascismo120, analisa a revolução comunista na Rússia e seu decorrente modo de governar, a partir de 1917, como um capitalismo de estado e não um governo comunista – como muitos queriam e sonhavam, até descobrirem as atrocidades de Stalin e da revolução cultural maoísta.

118

Op. cit. 119 Idem, p.39.

Voltando a Donatien-Claude, reitero a questão de ele representar o pensamento capitalista, inclusive pelo fato de estar preocupado com finanças, com dinheiro, com sua condição social. A aristocracia passa a se descaracterizar a partir do momento em que sente a falta real de dinheiro, a partir do momento em que precisa trocar seu título por algum dinheiro vindo de famílias burguesas, precisa pedir ajuda ao rei ou a quem quer que seja. Neste momento, o sentimento aristocrático se transfigura, e Donatien-Claude é um exemplo claro deste posicionamento social, que – para além de títulos, honras e condições – se caracteriza muito mais pelo comportamento. Acho bastante curioso que o aristocrata decadente e o burguês acabam se parecendo muito, e vemos isto até hoje no decadente, careta, cafona e pasteurizado gosto destas duas classes que se misturam, se amam e se odeiam, e continuam conduzindo o mundo de acordo com suas espúrias preferências.

Pois temos este personagem que fica entre a adulação e a agressão ao seu pai, querendo sugar dele as últimas posses, agora disputadas com uma mulher e seu filho – que, acompanhando o marquês nos últimos anos de vida, ganharam a confiança e a gratidão de Sade.

Donatien-Claude serve também como representante da ganância, da cupidez da família Montreuil; ele simboliza na peça estas características que veremos mais adiante em Madame de Montreuil, mas não tão fortemente representadas como no quadro I, em que a tônica toda gira em torno da TFP: tradição, família e propriedade. Vemos o embate que se estabelece durante a cena, em idas e vindas, ficando Donatien-Claude entre um falso agrado – para conquistar através da simpatia – e a agressão, que ele não consegue controlar, até por ser mais sincera que pequenas adulações que durante a vida inteira ele não quis nem precisou fazer. O diálogo esquenta, até o ponto em que a agressão mútua é inevitável, como no seguinte trecho:

DONATIEN-CLAUDE – Eu estou me lixando para as suas perversões, fique o senhor sabendo. Tenho mais com o que me preocupar... SADE – Dinheiro.

DONATIEN-CLAUDE – Sim. SADE – Sim!?

DONATIEN-CLAUDE (se consertando) – Sim, não, eu vim aqui... SADE – A herança! (silêncio). Diga: (imitando o filho) meu pai, sua

herança, o que sobrou, de quem vai ser isso tudo? Sei que o senhor tem essa vagabunda que o senhor chama de Sensível, o filho dela, que é bancado...

DONATIEN-CLAUDE (cortando e completando) – Bancado e financiado por você! Como se fosse um verdadeiro filho! E a gente precisando de dinheiro...

SADE – Do meu dinheiro!

DONATIEN-CLAUDE – Esta mulher não é sua esposa! Você não tem o direito de acabar com o dinheiro da gente bancando estes dois idiotas! Já basta a pensão que gastamos pra te manter neste asilo!121

A cena termina num ato de sodomia, onde o filho, literalmente, mantém uma relação anal com o próprio pai. Um símbolo de tudo o que aconteceu na vida de Sade em relação, principalmente, à família, mas que não deixa de ter grandes ecos em todo seu passado com a sociedade francesa.

* * *

LATOUR

Neste momento, entra em cena, numa mudança brusca e sem recursos, sendo a interpretação o único indício desta transição, o personagem Latour. Como já havia dito acima, juntei em um personagem todos os criados que passaram pela vida do marquês. Ele, inclusive, aparece no segundo quadro apenas demonstrando o lado subserviente, bem como evidenciando a bissexualidade de Sade.

Todos seus biógrafos evidenciam que os criados de Sade participavam das orgias promovidas por ele e que, em algumas prisões, estes criados acompanhavam o marquês, segundo exigência – enquanto assim ele podia agir – do próprio Sade. Com isso, não há ingenuidade no mundo que, conhecendo bem nosso personagem, não pense no que realmente Sade e seus criados ficavam fazendo numa cela de prisão.

Reiterando a opção de concentrar em um criado apenas, com o mesmo nome, inclusive, retomo a presença dele no último quadro da peça. Aqui, ele aparece como arauto, primeiro da desgraça e depois da glória, anunciando a nova prisão de Sade e, depois, a chegada de prisioneiros novos para ele julgar. Esta é uma tarefa que antigamente era mais do que comum, pois os nobres cercavam-se de criados, serviçais, informantes; nunca sua atitude era direta, sempre eram terceiros que estabeleciam contatos – através do envio de cartas, convites e agradecimentos – e faziam as mais mínimas coisas dentro de casa ou do palácio. Não à toa, esta ociosidade levava a nobreza ao exercício da frivolidade, da nobreza, dos jogos, pois – como bem diz a expressão – não moviam uma palha. Cioran, em sua Antologia do retrato, constata; “a sociedade setecentista, que tinha tempo de sobra, empregava-o em ninharias sutis e futilidades delicadas; empregava-o sobretudo contra si mesma”122.

No quadro final, a única atitude humana, colocada de forma bem sutil na peça, que Latour toma, é quando ele é impelido a julgar Madame de Montreuil. Neste

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momento, podemos ver que ele toma o partido do patrão, que há um ódio – afinal, para além do carinho pelo patrão, ele também sofreu por causa dela, tendo sido preso por conta de suas articulações –, e este ódio está ligado a uma relação próxima com o marquês.

No primeiro grande escândalo de Sade, o Caso Rose Keller, a própria narra a cena, evidenciando a importância do criado na armação feita naquele dia. Pouco depois de Rose Keller conseguir escapar da casa onde aconteceram as chicotadas, incisões e coisas mais, que depoimentos da época nunca deixarão que saibamos realmente o que foram, ela mesmo narra que “um criado correu atrás dela, dizendo-lhe para voltar que seu patrão queria entender-se com ela, o que recusou, ao que o referido criado puxou uma bolsa dizendo que lhe ia dar dinheiro, o que também foi por ela recusado”123.

Tanto a responsabilidade pela organização da vida do marquês, assim como a relação sexual estabelecida pelos dois, em que o criado sempre era mais um nos jogos eróticos do marquês, levam-me a crer que havia uma relação de parceria, de cumplicidade que – longe de ser uma relação homossexual – era uma relação de intimidade inegável.

* * *

MARAIS

Intimidade, pelo que demonstram os fatos históricos, é o que não falta entre Sade e o chefe de polícia, Marais. Já em 1763, “o inspetor Marais centraliza as queixas a respeito das más-condutas libertinas do marquês e formula um relatório circunstanciado.

Inicia-se a investigação. Sade é detido e levado para o torreão de Vincennes, cinco meses depois de seu casamento”124. Vê-se que, até a Revolução, Marais irá acompanhar a vida do marquês, pra não dizer perseguir.

Quatorze anos depois, novamente Marais irá prender Sade em Vincennes, comprovando a ligação que faz do inspetor um perseguidor implacável de Sade. Desta vez, será a prisão até a Revolução, com exceção de uma fuga muito estranha, quando – em viagem de transferência – o marquês, fingindo ir ao banheiro, consegue fugir das garras de Marais numa situação meio farsesca, que até hoje os biógrafos mais atentos estranham. Como será realmente que Sade conseguiu fugir? Será que fez um acordo financeiro com o inspetor, que o deixou fugir pra depois enganá-lo e prendê-lo de novo? Será que Sade dispunha de uma agilidade descomunal, digna de um agente secreto de filme americano, que fez de sua fuga um ato cinematográfico? Nesta história, a idoneidade de Marais parece ficar em jogo.

O personagem, então, adentra a cena, demonstrando ser um perverso, um sádico de botar inveja em qualquer marquês. Abusando de seu poder – assunto ao qual me deterei mais ao tratar de Jean Blanchos, utilizando-me de Reich como suporte teórico –, Marais entrará em cena com o propósito de torturar, mesmo que não consiga (e o jogo se torna interessante porque nas palavras não há vencedor), e provocar Sade, pois o inspetor já se encontra com uma carta de prisão, além de ter encontrado a prova do crime: duas mulheres, que se entregam durante a cena como tendo sido seviciadas pelo marquês.

No início da cena, quando Sade encontra-se sozinho, reclamando ainda da fuga de Anne-Prospère e já de não estar sendo atendido em seu castelo, numa transição de quadros, ele clama pela criadagem, e quem aparece – primeiramente só com a voz, que,

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sendo o mesmo ator, é também a voz de Latour – é o inspetor, numa armadilha que confunde o espectador, que num primeiro momento não sabe se é o criado, fazendo uma encenação (e é e será sempre um ator numa encenação de Sade, que está numa encenação de si e assim por diante, naquele circulo que descrevi no início do capítulo), ou realmente outro personagem que entrou em cena.

Tudo bem que o artifício de troca de personagem já se estabelece com a entrada da atriz que fazia Quesnet, fazendo Anne. Mas – independente de surpresas – o jogo cênico de trocas de personagens me parece um recurso para, dentro de uma proposital confusão, distanciar o espectador do objeto artístico, levando-o a perceber que tudo é um jogo no qual ele precisa entender as regras e os objetivos – bem próximo do que Brecht pretendia quando dizia que o teatro, para ele, devia ser como uma luta de boxe, onde, ao fim de cada rodada, comentássemos o que ocorria em cena, prevendo acontecimentos, analisando golpes –, torcendo e apostando em uma vitória que está para aquém da honra, levando-o a perceber que tudo é apenas um esporte.

Marais é a figura que representa a justiça, a lei. Entrementes, quis representá-lo como um personagem injusto, mais desleal possível, evidenciando que representar a justiça não significa ser justo. É assim que as coisas funcionam. O judiciário, bem como a polícia, o exército, todos eles sempre foram injustos, truculentos, pequenos déspotas sem esclarecimento nenhum, gozando de seus privilégios e se valendo deles para subjugar, humilhar, ou chantagear, vingar-se, fazer vista-grossa.

O caráter metalingüístico é reforçado, na cena, pela última fala de Marais, antes de sair de cena:

MARAIS – Caro Sade. Vá se acostumando a não fazer mais cenas. Despeça-se de seu castelo, de seu teatro particular, de seus criados e criadas. Acabou o espetáculo. A prisão, mais uma vez,

te espera. Traga-o aqui pra fora quando terminar esta farsa inútil.125

Sua fala demonstra como o poder agiu na vida de Sade. Um poder tão recorrente na vida no marquês, e tão responsável por transformá-lo em algo mais do que um simples perverso, não poderia deixar de ser tratado, e, penso eu, da forma mais sórdida possível. Ninguém se salvará.

QUESNET, AMANTE DE SADE / ANNE-PROSPÈRE, CUNHADA DE SADE / MARIENNE / HELÈNE

QUESNET

No dia 12 de junho de 1791, Sade escreve a Gaufridy:

Não há nada mais virtuoso do que minha nova família. Primeiramente nenhuma palavra de amor. É unicamente uma boa e honesta burguesa, amável, doce, espiritual, que separada de seu marido, negociante na América, quis mesmo encarregar-se de minha pequena casa. Ela come comigo a modesta pensão que seu marido lhe envia. Eu dou-lhe casa e comida. Na verdade, se ela se apegar a mim, a fim de me ajudar a prolongar minha vida, em cada lustro lhe darei pequena renda. Mas de galanteio, nem uma palavra. Posso viver só, cercado de 2 ou 3 criados, que me querem pilhar, talvez matar?126

Dois anos depois, o marquês reconhece, junto a um tabelião, Madame Quesnet como sua filha natural.

125 TAVARES, Gil Vicente. Sade, p.28. 126

Pra muitos, amante, pra outros, acompanhante, Quesnet passou a ser, desde 1790 até 1814, a verdadeira parceira de Sade. Ele, além de adotá-la, ainda passa a educar e criar o filho de Quesnet como se fosse seu. Parece encontrar aí a sua verdadeira família. Ela irá acompanhá-lo até seu leito de morte, sendo companheira de Sade até mesmo no asilo, onde se aloja com ele.

Pelas nossas referências, é realmente muito estranho que uma pessoa se ligue a outra por 24 anos, sendo esta outra pessoa o Marquês de Sade. Interesse financeiro? Uma boa troca de favores? O que importa é que Sade chamava-a “A Sensível” e nutria por ela uma profunda admiração. Em várias cartas, refere-se a ela com um profundo carinho.

Caí na tentação de transformar a relação dos dois em alguma coisa próxima do perverso. Talvez pela sensibilidade que o marquês via nela, fiz deste personagem o único a ser cínico, pois todos se revelam – uma hora ou outra em cena – como perversos e hipócritas, e ela é a única que – numa “atuação” escorregadia – não se revela para a

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