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Sade: Criação e processo do drama

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Escola de Teatro – Escola de Dança. Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas. PPGA C. P r o g r a m a d e P ó s -g r a d u a ç ã o e m A r t e s Cê n i c a s. GIL VICENTE BARBOSA DE MARQUES TAVARES. SADE: CRIAÇÃO E PROCESSO DO DRAMA. Salvador 2006.

(2) SADE: CRIAÇÃO E PROCESSO DO DRAMA. GIL VICENTE BARBOSA DE MARQUES TAVARES. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de PósGraduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal da Bahia, em cumprimento parcial dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Teatro, sob a orientação da Profa. Dra. Evelina Hoisel. Salvador/Bahia 2006.

(3) AGRADECIMENTOS. Agradeço ao diretor Fernando Guerreiro por ter me provocado a escrever uma peça sobre o Marquês de Sade, o que foi o ponto de partida para meu ingresso no mestrado do PPGAC. Agradeço à Companhia de Teatro da Bahia pelas opiniões acerca da peça Sade. Agradeço a dedicação de Claudio Simões na cuidadosa revisão da dissertação. Agradeço, obviamente, à CAPES, por ter me possibilitado – através da bolsa oferecida – tranqüilidade e recursos para conduzir minha pesquisa. Agradeço a Décio Torres pela ajuda na tradução e revisão do meu resumo. Não posso deixar de agradecer aos atores Gideon Rosa, Carlos Betão e Andréa Elia, pela bem realizada leitura de uma cena da peça Sade, bem como ao Vila Velha, na figura de Chica Carelli, pela cessão do Cabaré dos Novos para a defesa. E, finalmente, agradeço à minha orientadora, Evelina Hoisel, por ter me ajudado a desenvolver a dissertação de forma tranqüila, com opiniões e sugestões que só fizeram enriquecer meu processo..

(4) SUMÁRIO SUMÁRIO ........................................................................................................................ 1 RESUMO.......................................................................................................................... 3 ABSTRACT...................................................................................................................... 3 SADE, O TEXTO TEATRAL.................................................................................................. 4 QUADRO I – CHARENTON (1814) ....................................................................................... 5 Cena I ................................................................................................................................ 5 Cena II............................................................................................................................... 5 Cena III ............................................................................................................................. 6 Cena IV ............................................................................................................................. 7 Cena V ............................................................................................................................ 10 Cena VI ........................................................................................................................... 11 Cena VII.......................................................................................................................... 12 QUADRO II – FUGA NA ITÁLIA (1772) .............................................................................. 15 Cena I .............................................................................................................................. 15 Cena II – casa dos Montreuil (1763) .............................................................................. 18 Cena III ........................................................................................................................... 20 QUADRO III – O CASTELO DE LA COSTE (1777) .............................................................. 22 Cena I .............................................................................................................................. 22 Cena II............................................................................................................................. 24 QUADRO IV – NA BASTILHA (1789)................................................................................. 28 Cena Única...................................................................................................................... 28 QUADRO V – NOVAMENTE EM LA COSTE (1765) ............................................................. 30 Cena I .............................................................................................................................. 30 Cena II............................................................................................................................. 32 Cena III ........................................................................................................................... 39 QUADRO VI – EM SAINTE PELAGIE (1801)....................................................................... 40 Cena Única...................................................................................................................... 40 QUADRO VII – O TERROR (1793)..................................................................................... 41 Cena I .............................................................................................................................. 41 Cena II............................................................................................................................. 41 Cena III ........................................................................................................................... 42 Cena IV ........................................................................................................................... 46 O PROCESSO CRIATIVO: PRÓLOGO ....................................................................... 50 CAPÍTULO 1 – A ESCOLHA DOS QUADROS ........................................................... 71 INFÂNCIA, JUVENTUDE E CÁRCERE ....................................................................... 73 A PRISÃO DO CASAMENTO E O CASAMENTO COM A PRISÃO .................................. 74 QUADRO II........................................................................................................... 80 Cena II – casa dos Montreuil (1763) .................................................................. 80 QUADRO V – NOVAMENTE EM LA COSTE (1765) E QUADRO III – O CASTELO DE LA COSTE (1777) ................................................................................................. 81 Cenas I e III – fuga na Itália (1772).................................................................... 83 QUADRO IV – NA BASTILHA (1789)..................................................................... 85 1.

(5) A REVOLUÇÃO ..................................................................................................... 87 QUADRO VII – O TERROR (1793)......................................................................... 87 QUADRO VI – EM SAINTE PELAGIE (1801)........................................................... 92 QUADRO I – CHARENTON (1814) ......................................................................... 93 CAPÍTULO 2 – ESTRUTURA E FORMA DO DRAMA............................................. 95 QUADRO I – CHARENTON (1814) ......................................................................... 97 QUADRO II – FUGA NA ITÁLIA (1772) CENA I E CENA III................................... 101 QUADRO II – CASA DOS MONTREUIL (1763) CENA II......................................... 102 QUADRO III – O CASTELO DE LA COSTE (1777) ................................................. 103 QUADRO IV – NA BASTILHA (1789)................................................................... 106 QUADRO V – NOVAMENTE EM LA COSTE (1765) ............................................... 107 QUADRO VI – EM SAINTE PELAGIE (1801)......................................................... 109 QUADRO VII – O TERROR (1793) ....................................................................... 111 CAPÍTULO 3 – OS PERSONAGENS......................................................................... 115 DONATIEN-CLAUDE, FILHO DE SADE / LATOUR, CRIADO DE SADE / MARAIS, CHEFE DE POLÍCIA ......................................................................................................... 117 DONATIEN-CLAUDE ........................................................................................... 118 LATOUR ............................................................................................................. 121 MARAIS ............................................................................................................. 123 QUESNET, AMANTE DE SADE / ANNE-PROSPÈRE, CUNHADA DE SADE / MARIENNE / HELÈNE.............................................................................................................. 126 QUESNET ........................................................................................................... 126 ANNE-PROSPÈRE................................................................................................ 128 MARIENNE ......................................................................................................... 130 HELÈNE.............................................................................................................. 130 PRESIDENTE / NANON / LA BEAUVOISIN ............................................................ 132 PRESIDENTE ....................................................................................................... 132 NANON .............................................................................................................. 134 LA BEAUVOISIN ................................................................................................. 135 DILÚVIO / JEAN BLANCHOS / ABADE ................................................................. 137 DILÚVIO ............................................................................................................. 137 JEAN .................................................................................................................. 138 ABADE ............................................................................................................... 140 EPÍLOGO ..................................................................................................................... 142 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 148. 2.

(6) RESUMO. A presente dissertação está dividida em duas partes. A primeira consiste no texto teatral, intitulado Sade, elaborado depois de uma pesquisa acerca do personagem histórico Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade. Foi baseado em obras históricas sobre a França e a Revolução Francesa, bem como obras biográficas sobre Sade. Estudos psicanalíticos, filosóficos e políticos relacionados ao Marquês de Sade também foram utilizados como material de pesquisa. A segunda parte disserta sobre o meu processo criativo. No prólogo, em que disserto sobre todo o processo criativo e sobre o marquês. Nos capítulos seguintes, através de uma leitura da minha própria obra, eu explico e defino a escolha dos quadros da peça, a estrutura e forma do drama e a seleção de personagens que fiz para contracenar com meu personagem principal, Sade. ABSTRACT. This dissertation is divided into two parts. The first part consists of the dramatic text, entitled Sade, which was written after a research on the historical character DonatienAlphonse-François, the Marquis de Sade. It was based upon historical texts about France and the French Revolution, as well as biographical information on Sade. Psychoanalytical, philosophical and political studies on subjects and themes related to Marquis de Sade’s work and life have also been used as source of research. The second part describes my own creative process. In the prologue, I write about the Marquis and the whole creative process. In the following three chapters, through a reading process of my own work, I define and explain the choice of scenes of the play and the structure of drama and the characters’ choice I made to co-act with my main character, Sade.. 3.

(7) SADE, O TEXTO TEATRAL. PERSONAGENS*: SADE DONATIEN-CLAUDE, filho de Sade / LATOUR, criado de Sade / MARAIS, chefe de polícia QUESNET, amante de Sade / ANNE-PROSPÈRE, cunhada de Sade / MARIENNE / HELÈNE PRESIDENTE, sogra de Sade / NANON / LA BEAUVOISIN, atriz DILÚVIO, interno de Charenton / JEAN BLANCHOS, soldado / ABADE, tio de Sade. *Os Personagens que estiverem em seqüência, na mesma linha, deverão interpretados pelo mesmo ator.. Com as baionetas, Sir, pode-se fazer tudo menos uma coisa: sentar-se sobre elas. (Talleyrand, a Napoleão Bonaparte). 4.

(8) QUADRO I – CHARENTON (1814) Cena I Um homem, DILÚVIO, deitado ao canto. Ouvem-se batidas na porta e logo depois, de fora, um diálogo, aos sussurros, entrecortado, entre ANNE e DONATIENCLAUDE. QUESNET – Nada. Deve estar aí dentro... DONATIEN-CLAUDE (seco) –Muito obrigado. Pode se retirar... QUESNET – Tem certeza que quer ficar a sós com ele...? DONATIEN-CLAUDE – Já falei que a senhora pode se retirar... QUESNET – Bom, de qualquer forma, se o senhor quiser... DONATIEN-CLAUDE – Saia, por obséquio... QUESNET – O senhor é... como eu imaginava... DONATIEN-CLAUDE (cortando) – Não posso dizer o mesmo... Se me permite... Cena II DONATIEN-CLAUDE entra com uma vela na mão. DONATIEN-CLAUDE (impávido) – Com licença. DILÚVIO (se virando) – Quem está aí? DONATIEN-CLAUDE (percebendo o engano)– Desculpa, acho que entrei no lugar errado. Vou ver se... DILÚVIO (pega um papel e vai em direção a DONATIEN-CLAUDE. Em toda a cena DILÚVIO deverá se comportar de forma polida, educada e compenetrada, como um lorde inglês) – O senhor é novo por aqui? DONATIEN-CLAUDE – Eu vim visitar meu pai... DILÚVIO (cortando, gozador) – Sei. E eu sou cunhado da finada Maria Antonieta. Sobrenome? DONATIEN-CLAUDE – Sade. DILÚVIO (Anotando, falando pra si) – Sade.. 5.

(9) DONATIEN-CLAUDE – De Sade. Mas pode me... DILÚVIO (cortando) – Vou chamar os enfermeiros. Este quarto já tem dono. DONATIEN-CLAUDE (nervoso) – Desculpa, mas eu não sou louco, eu vim visitar... DILÚVIO (cortando, contemporizando) – Senhor de Sade. Eu entendo. É difícil aceitar. Mas contenha-se. DONATIEN-CLAUDE (irado) – Quem é o senhor pra me falar deste jeito? DILÚVIO (gritando) – Enfermeiros! DONATIEN-CLAUDE (tentando contemporizar) – Por favor, me entenda... DILÚVIO (gritando) – Enfermeiros! DONATIEN-CLAUDE (gritando) – O senhor não... DILÚVIO (gritando) – Enfermeiros! DONATIEN-CLAUDE (indo em direção a DILÚVIO, parecendo querer agredi-lo) – Por favor cale essa... SADE (de fora) – Dilúvio?! Cena III Entra SADE. DILÚVIO – Senhor Marquês! Que bom te ver livre! Tenho uma encomenda pro senhor. (À parte, pra DONATIEN-CLAUDE). Ele é o Marquês de Sade! Disfarça... SADE (olha pra DONATIEN-CLAUDE, estranhando) – O que é que está acontecendo? (Pra DILÚVIO, aparentando impaciência). Pode dizer, Dilúvio. DILÚVIO – Uma peça. SADE (olhando DONATIEN-CLAUDE) – Mas quem é... DILÚVIO – Eu? Sou o filho bastardo de Luís XV. Engraçado que ele me perguntou a mesma... DONATIEN-CLAUDE (cortando, pra SADE) – Seu filho. SADE (pra DONATIEN-CLAUDE) – Qual? DILÚVIO – O filho bastardo, já disse.. 6.

(10) SADE – Dilúvio! DILÚVIO – Senhor Marquês! Que bom te ver livre! Tenho uma encomenda pro senhor. (À parte, pra DONATIEN-CLAUDE). Ele é o Marquês de Sade! Disfarça... DONATIEN-CLAUDE (percebendo a loucura de DILÚVIO) – Mas ele é... SADE – Dilúvio! DILÚVIO – Senhor Marquês! SADE – Calma, vá buscar o meu cavalo. DILÚVIO – Eu quero uma peça em que o senhor fale a verdade sobre a França. Nós seremos os cavalos. Que eu sou o filho bastardo... SADE – Dilúvio, tive uma idéia brilhante! Vá procurar o Marquês de Sade. Diga que eu estou chamando ele. Precisamos encomendar uma peça nova. DILÚVIO – Sim senhor. Genial. Os cavalos estarão prontos num instante. DILÚVIO sai. Cena IV DONATIEN-CLAUDE – Sou eu, Donatien-Claude. SADE – Bela hora pra se ver um filho. Gordo, (tosse) essa falta de ar... Veio me libertar? Não, não, seria demais. Sabe como eu me sinto? Como um porco... DONATIEN-CLAUDE – O senhor está enganado, eu... SADE – Um porco que está engordando para ser comido. Se fugir, ninguém come... (tosse). DONATIEN-CLAUDE – Meu pai. O senhor... SADE – Já não leio as cartas de sua família há um bom tempo. DONATIEN-CLAUDE – Nossa família.Vim visitar o senhor. SADE – Veio visitar seu velho pai doente, num asilo de loucos, a troco de quê? Sua mãe... DONATIEN-CLAUDE – Minha mãe está morta há quatro anos. SADE – Eu sei. É o destino de tudo, na natureza. (Ri e tosse). A natureza vai nos matando, nos acabando... Olhe para mim.... 7.

(11) DONATIEN-CLAUDE – Não fale assim. Nós gostamos do senhor. SADE – “Na vida a gente só gosta de quem pode nos dar alguma coisa”. Frase proferida por uma puta de Arcueil... (saudoso) somente as putas me deram alegria... (Ri amargamente e tosse). Que puta saudade... DONATIEN-CLAUDE (supostamente desconfortável) – Sinto muito. Eu não devia ter vindo. (Chamando pra dentro) Resnet! SADE – Quesnet!, minha sensível acompanhante. Não sabe o nome da sua querida madrasta? DONATIEN-CLAUDE (cínico) – Desculpe. Madame Quesnet! SADE – Psss. Deixe a Sensível. (Tosse) Ela foi falar com o médico sobre nosso próximo espetáculo. DONATIEN-CLAUDE – Ela deveria estar mais preocupada com sua saúde do que... SADE – Venha assistir. Você é meu convidado de honra. Estamos preparando figurinos belíssimos! O título será “a ruína de um nobre”, ou “de como a família destrói um homem”. (Ri, amargamente, e tosse). DONATIEN-CLAUDE (já irritado, superior) – Ora, o senhor sabe mais do que eu que os espetáculos foram proibidos aqui, por ordem superior. SADE (gritando) – Por ordem superior é que seu pai se tornou esta massa amorfa e infeliz! Este médico novo que arranjaram acabou com o único prazer que os detentos tinham. (tosse mais forte, DONATIEN-CLAUDE vai em sua direção). Calma. Sobrevivi minha vida toda sem precisar de seu apoio. Não é agora... Acho que por eu não ter dado certo em nenhum regime é que engordei assim. (ri). Um paquiderme (ri mais). Sou um sodomita aposentado (gargalha, contagia DONATIEN-CLAUDE, que disfarça o riso). E a situação na França? DONATIEN-CLAUDE – Napoleão foi exilado. SADE – Elba. Madame Quesnet me traz as notícias. A campanha da Rússia liquidou com ele. Mas os ingleses levaram a fama. Nem mesmo aquele corso, metido a puritano, escapou do fracasso em vida. Hahaha. O único sucesso perene do senhor Bonaparte foi ter me mantido neste asilo, mesmo depois de exilado. DONATIEN-CLAUDE – Luís XVIII não teria o mínimo motivo pra libertar o senhor. As suas pornografias... SADE – Você sabe muito bem que não fui eu quem escreveu aqueles livros! DONATIEN-CLAUDE (sarcástico) – Sei. Nem aquela peça gozando com Josefina e Napoleão.... 8.

(12) SADE – Quer saber. Fui eu sim. E daí? Você acha que é motivo suficiente pra ser preso, o fato de eu ter lançado livros obscenos? (Silêncio, depois decepcionado, triste). É claro que você acha. (Mudando o tom). E este novo Luís? É tão idiota quanto o guilhotinado? Já acharam alguma austríaca pra trocar suas fraldas? DONATIEN-CLAUDE – A situação ainda é instável. SADE – E quando deixou de ser? A política sempre é feita por imbecis e interesseiros. DONATIEN-CLAUDE (superior) – Mas são eles que detêm o poder. SADE – O poder! Ler Rousseau não faria mal nenhum. DONATIEN-CLAUDE – De quê adiantou toda sua leitura? Para acabar num asilo? Definhando entre malucos e doentes? Só um louco... SADE – Só um louco como Marat poderia mudar alguma coisa. Por isso foi morto por uma putinha reacionária. Essa burguesia, com suas roupas arrumadas, perfumes e hipocrisia... DONATIEN-CLAUDE – Foram os burgueses que fizeram a revolução. SADE – Grande feito. Pra botar aquele advogadozinho no poder? Preferia guilhotinar os homens de bem a melhorar seu país. DONATIEN-CLAUDE – Mas também foi guilhotinado. Robespierre, Saint-Just... SADE – Pra quê? Outro espetáculo inútil. (Pausa. Tosse). Sabe, há um tempo atrás, enquanto eu ainda fazia espetáculos com os loucos deste asilo... um dançarino. (Com extrema ironia, numa indireta ao filho). Estava aqui pagando o eterno preço de não ser hipócrita. Thénitz, meu diretor de balé. Morreu dançando. Foi me mostrar um passo novo que criara para uma de nossas apresentações e caiu morto na minha frente. Não deu nem tempo de aplaudir, todos em cima dele, mas já era tarde. Morreu dançando... Engraçado, morreu fazendo o que mais sabia, o que mais gostava. Robespierre morreu do que mais gostava também. Mas neste caso, os instantes finais na guilhotina... (ri e tosse) não sei se foram tão aprazíveis assim... DONATIEN-CLAUDE (superior) – Ele pagou o preço por ter sido... SADE – Pagou o quê? A quem? (Enfático). A morte consentida pelo Estado nunca resolveu nada. Me chamam de pervertido... Pra quê maior perversão do que sacrificar a cabeça de vários com uma pseudo-revolução popular, para, ao fim, entregar o poder a uma nova monarquia. E veio então o imperador Napoleão; aproveitou e ceifou vidas em guerras estúpidas. Queria se tornar um novo César, conseguiu achar seu Brutus. Foi seu próprio Brutus. Mais mortes; e um império afunda. De quê adiantou tanta violência? O mundo mudou? DONATIEN-CLAUDE – O senhor deveria se perguntar, antes de perguntar aos outros. Quantos atos repugnantes o senhor também fez e... 9.

(13) SADE – “Atos repugnantes”!? DONATIEN-CLAUDE (cruel) – O senhor não está preso à toa. SADE – Cuidado! Quanto mais se critica um fato, maior é o desejo de se fazer aquilo. DONATIEN-CLAUDE (se irritando) – O senhor está querendo dizer que... SADE – Pessoas fracas, como você, invejam e condenam porque não tem coragem de realizar o que desejam. DONATIEN-CLAUDE (mais irritado ainda) – Desculpe-me, mas não me considero um fraco. Cena V Entra QUESNET. QUESNET – Com licença. (QUESNET e DONATIEN-CLAUDE se olham). DONATIEN-CLAUDE (ignorando QUESNET, tentando se recompor pra conquistar o pai) – Meu pai... QUESNET (pra SADE, ignorando DONATIEN-CLAUDE) – O médico está vindo. Está melhor da tosse? Quer alguma coisa? SADE – Meu amor. Chega mais perto... (QUESNET se aproxima). E então, minha querida, minha sensível, meu amor? (Pra DONATIEN-CLAUDE). Vê como ela me trata? (Pra QUESNET).E nosso querido filho, quando vem me visitar? DONATIEN-CLAUDE (incisivo) – O senhor não tem nenhum filho com ela. SADE (pra QUESNET, ignorando o comentário do filho) – Ele é um bom rapaz. Estudioso. Você sabe, meu amor, que eu tenho muito a agradecer a vocês dois. Se fosse pela família Montreuil... DONATIEN-CLAUDE – Quer que eu vá embora? QUESNET (cínica) – Não, por favor...! DONATIEN-CLAUDE (ignorando QUESNET) – O senhor me provoca a troco de quê? Tudo bem, acho que fica melhor pra todo mundo se eu sair... SADE – Por favor, fique. (pra QUESNET) Minha sensível... DONATIEN-CLAUDE (meio que para si) – Sensibilidade para os negócios... SADE (abraçando QUESNET) – Me dá um beijo... 10.

(14) DONATIEN-CLAUDE – As regalias que o senhor dá pra essa família... QUESNET (se desvencilhando, fazendo-se de vítima) – Senhor, eu não quero... Estas ofensas... SADE – Regalias! Meu amor. Gostou de meu filho? Um belo rapaz? E você, meu querido filho, por que esta agressividade? (pega a mão de DONATIEN-CLAUDE). Pegue em sua mão, venha. (ela pega na mão de DONATIEN-CLAUDE). DONATIEN-CLAUDE – Me solte. SADE – Pra quê o nervosismo, meu rapaz? Nunca pegou na mão de uma mulher!? DONATIEN-CLAUDE – Da minha mulher. SADE – E então, minha sensível? Quente, a mão dele!? (tosse). É um belo rapaz, não!? QUESNET (entrando no jogo perverso de SADE) – Sim. SADE tenta pegar na mão de DONATIEN-CLAUDE. DONATIEN-CLAUDE (nervoso) – O senhor não tem o direito... SADE – De quê? Quer beijá-la? (aperta o pênis de DONATIEN-CLAUDE). Ficou excitado? DONATIEN-CLAUDE (levantando-se) – Eu vou me exci... tire... retirar... SADE (rindo) – Sente-se. Minha sensível! (pega a mão de QUESNET e beija. Tosse). Veja que belas pernas, meu filho. (Levanta, um pouco, o vestido de QUESNET). Percebe-se o desconforto de DONATIEN-CLAUDE. SADE – E um belo rabo! (ri, dando um tapa na bunda de QUESNET. DONATIEN-CLAUDE parece que vai tomar alguma atitude, mas é interrompido). Cena VI Entra DILÚVIO. DILÚVIO – Senhor Marquês! Que bom te ver livre! Tenho uma encomenda pro senhor. (À parte, pra DONATIEN-CLAUDE e QUESNET). Ele é o Marquês de Sade! Disfarça... SADE – Pode dizer, Dilúvio. DILÚVIO – Uma peça. (Apontando pra DONATIEN-CLAUDE). Quem é este? É novo por aqui? Boa noite, Madame Quesnet! (Apontando pra DONATIEN-CLAUDE). E este? É louco? Posso fazer a ficha dele e... 11.

(15) SADE – Dilúvio. Meu cavalo está pronto? DILÚVIO – Senhor Marquês! Que bom te ver livre! Tenho uma encomenda pro senhor. (À parte, pra DONATIEN-CLAUDE e QUESNET). Ele é o Marquês de Sade! Disfarça... QUESNET – Dilúvio, vamos preparar o cavalo do Marquês? DILÚVIO – Enfermeiros! Uma peça! Sobre cavalos? Eu quero uma peça em que o senhor fale a verdade sobre a França. Que eu sou o filho bastardo... QUESNET (tentando acalmá-lo) – Dilúvio, vamos preparar o cavalo do Marquês? DILÚVIO – Boa noite, Madame Quesnet! (Apontando pra DONATIEN-CLAUDE). E este? É louco? Preparar os cavalos! Para o espetáculo! (Pra DONATIEN-CLAUDE) Que tal? E você? DONATIEN-CLAUDE (num desdém, meio que pra si) – Sou filho do Marquês de Sade. (Imitando DILÚVIO). Que tal? DILÚVIO (gritando) – Enfermeiros! QUESNET – Dilúvio! (pra DONATIEN-CLAUDE, cínica). Não se preocupe, senhor... DILÚVIO (como que percebendo SADE) – Senhor Marquês! SADE – Madame Quesnet. Tive uma idéia genial! Leve Dilúvio para falar com o Marquês de Sade! Ele tem uma encomenda pra fazer... DILÚVIO – Ah, o senhor Marquês! Ele já chegou!? (Pra DONATIEN-CLAUDE). O Marquês de Sade, conhece? Faz espetáculos pra gente. (Pra SADE). Senhor, os cavalos estarão prontos num instante. (Pra QUESNET).Vamos, madame. Uma peça... QUESNET (sai, levando DILÚVIO) – Sei, sobre a França... (olha de soslaio, matreira, para SADE). DILÚVIO (saindo) – Não, sobre cavalos... Luis XV, meu pai... montaria... Os dois saem murmurando. Cena VII DONATIEN-CLAUDE – Belos amigos! São estes os fortes? Que fazem o que desejam? SADE – É seu país de merda que cria gente assim! DONATIEN-CLAUDE – Dilúvio. Boa, essa! Filho de Luís XV. 12.

(16) SADE – Filho bastardo. O rei não dizia: “depois de mim, o dilúvio”? Pois então, ele é o dilúvio... DONATIEN-CLAUDE – O senhor nunca pensou em adotar esta frase? O dilúvio de uma família. SADE – Em que, felizmente, só eu sobrevivi. Sua vó; comida pelos vermes. Sua tia; comida por mim e pelos vermes... e a desgraçada da sua mãe... DONATIEN-CLAUDE – Não fale assim de minha mãe! Minha tia... SADE – Sua mãe foi mais uma puta que passou pela minha vida! Sabe o que eu fazia com aquela porca gorda? Quer saber como eu a comia? (tosse) Como comia as putas. DONATIEN-CLAUDE (se alterando) – Eu exijo respeito! SADE (com uma ironia amarga que seguirá até o final da cena) – Ela foi mais uma puta a se apaixonar por mim! Depois de tudo que eu fiz ela ainda rastejou por mim, me ajudou a fugir, ajudou a manter uma amante minha. E Lefévre? Sustentou sua mãe em La Coste a troco de quê? DONATIEN-CLAUDE – Era um amigo! SADE – Amigo!? Você acha que sua pudica mãe ficou sem foder durante todo tempo que estive preso? DONATIEN-CLAUDE – Você é injusto com minha mãe, ela tentou até o último instante... SADE – Ela queria foder de novo comigo, não!? Queria me soltar pra que fizéssemos tudo aquilo que sua ridícula igreja proíbe. São Paulo devia ser broxa, por isso proibiu a libertinagem. Você sabe o que é foder, meu filho? Você fode ou faz amor com sua querida esposa? Você procura, ao menos, uma puta que possa te lamber...? (tosse). DONATIEN-CLAUDE – O senhor me dá nojo! SADE – Te dou nojo ou te excito? Você costuma conversar sobre essas coisas com alguém? DONATIEN-CLAUDE – Eu me respeito! SADE – Pelo menos freqüenta alguma taverna à noite, pra pegar alguma blenorragia e trazer pra sua esposa de brinde? (tosse). DONATIEN-CLAUDE (agressivo, desafiador) – O senhor não está em condições de agredir ninguém. É risível. Definhando neste asilo. Não sei nem o que eu estou fazendo aqui. Sua libertinagem se acabou. Foi queimada junto com suas obras, seu dinheiro, seu nome, sua fama... 13.

(17) SADE – O cu. DONATIEN-CLAUDE – O quê? SADE – O cu, eu ainda tenho o cu. DONATIEN-CLAUDE – O que você quer... SADE – Meu filho, você já sodomizou alguém? Ou já foi sodomizado? DONATIEN-CLAUDE – O senhor está me tomando pelo quê? SADE – Quem puxa aos seus não degenera. DONATIEN-CLAUDE – Eu estou me lixando para as suas perversões, fique o senhor sabendo. Tenho mais com o que me preocupar... SADE – Dinheiro. DONATIEN-CLAUDE – Sim. SADE – Sim!? DONATIEN-CLAUDE (se consertando) – Sim, não, eu vim aqui... SADE – A herança! (silêncio). Diga: (imitando o filho) meu pai, sua herança, o que sobrou, de quem vai ser isso tudo? Sei que o senhor tem essa vagabunda que o senhor chama de Sensível, o filho dela, que é bancado... DONATIEN-CLAUDE (cortando e completando) – Bancado e financiado por você! Como se fosse um verdadeiro filho! E a gente precisando de dinheiro... SADE – Do meu dinheiro! DONATIEN-CLAUDE – Esta mulher não é sua esposa! Você não tem o direito de acabar com o dinheiro da gente bancando estes dois idiotas! Já basta a pensão que gastamos pra te manter neste asilo! SADE – Então me tire daqui! DONATIEN-CLAUDE – Você não daria dois passos! Está velho, gordo e cego! SADE – E brocha (ri e gargalha). DONATIEN-CLAUDE – Não ria! Não ria da minha desgraça, você está destruindo nosso futuro! Pelos meus cálculos... SADE (gozador) – Viver é a maior desgraça! Estamos condenados a existir. A natureza não destrói tudo? Talvez sejamos mais úteis como adubo! (tosse). 14.

(18) DONATIEN-CLAUDE (avançando)– Você quer ser feliz? Quer morrer!? Pois morra. E saiba que não adianta escrever nenhum testamento! Vou ao alto escalão do governo, declaro sua insanidade... SADE – Só quero ser enterrado entre bocetas! Entre cus, entre caralhos! DONATIEN-CLAUDE – Caralhos!? Seu sodomita desgraçado! Pederasta! SADE – Bocetas! Cus! Vários caralhos gozando em mim! O sangue escorrendo das feridas do chicote, imagine! (tosse). Feridas abertas! Aquela mistura de sangue e esperma! DONATIEN-CLAUDE (esbofeteia SADE) – Sangue, é isso que você quer!? Que seu filho te bata!? (parte pra cima dele). Que tal fazer seu último espetáculo? (Sobe em SADE e o enforca). Chamem todos os loucos do sanatório! (Levanta e grita). Venham! Assistam à morte do maior libertino da França! SADE – Vem, me bate! (tosse nervosamente). Corram todos! Aproveitem, pois talvez eu tenha minha última ereção! DONATIEN-CLAUDE (dá outro tapa em SADE) – Não era isso que você queria? Você vai morrer do que mais gosta! DONATIEN-CLAUDE empurra agressivamente SADE colocando-o de bruços, abaixa suas calças. SADE tosse e vai respirando cada vez mais fraco, sem poder de resistência, (mas com um pequeno sorriso nos lábios). DONATIEN-CLAUDE arreia as calças de SADE. Começa a penetrá-lo. Ouvem-se palavras desconexas, sussurros, gemidos, palavras improvisadas, variações sobre frases do personagem, como: “Não era isso que você queria?”, “Seu sodomita desgraçado!”, etc. Percebe-se que SADE vai desfalecendo. Enquanto é penetrado, aparenta morrer. DONATIEN-CLAUDE penetra o pretenso cadáver e começa a gritar. DONATIEN-CLAUDE – Quesnet, sua puta! Você não vai ter meu pai nem meu dinheiro! O dinheiro é meu! O dinheiro de meu pai é meu, seu cu é meu! Sua vida é minha! Morra! Morram!!! (pra SADE) Viu como é fácil subjugar o mais fraco? Viu como seu filho é viril? (Sempre penetrando o marquês, grita). Quesnet! Apareça! QUADRO II – FUGA NA ITÁLIA (1772) Cena I ANNE entra. ANNE – Senhor, mas... LATOUR goza, berrando.. 15.

(19) ANNE – O senhor já soube... LATOUR se recompõem desajeitadamente. LATOUR – Desculpe, minha senhora... ANNE (seca) – O senhor já soube das notícias em Marselha? Do que aconteceu em Aix? SADE – Oh, minha querida, não quer se juntar a nós? (Silêncio). Ué? O que foi que deu em você? LATOUR – A senhora precisa de alguma coisa? ANNE – Não, obrigada, meu senhor. SADE – Minha querida Anne-Prospère! Não deseja nada? ANNE – Vim lhe avisar que... (Hesita). SADE – Me ama!? ANNE (dona de si) – Quero voltar pra casa. SADE (desconsertado) – Todos queremos, meu anjo. ANNE – Senhor de Sade, eu estou indo embora. SADE – Como assim!? Aqui é nossa casa. Pelo menos até que a poeira baixe na França, a Itália é nossa casa. ANNE – Vou voltar pra minha família. LATOUR – O senhor ainda precisa de mim? SADE – É claro que eu preciso de você, ainda não gozei! Um criado que tem o desplante de gozar antes de seu senhor. Por isso o mundo está tão tenso. Falta-lhe orgasmos! (Ri. Pra ANNE). O que foi!? Está com ciúme de nosso criado, minha pequena!? ANNE – Estou apenas dizendo que vou voltar pra casa... LATOUR – Senhor...? SADE – Diga, Latour!? (Latour faz uma reverência para o marquês). Vá, vá. Depois a gente continua, quem sabe com nossa florzinha...? (pega no queixo dela, agressivo) heim!? LATOUR se retira. ANNE (se desvencilhando) – Me solta.. 16.

(20) SADE – Agora não quer mais? Enjoou da sacanagem? Está com o cuzinho doendo? A bundinha em carne viva? (Silêncio, depois sério). Olhe pra mim! Com que cara sua família vai olhar pra você? ANNE – Estou voltando pra casa, meu senhor. SADE – Eu te amo, minha linda! ANNE – Eu não vim aqui atrás de amor. SADE – Mas eu te trouxe... ANNE – O senhor não me trouxe, eu vim porque quis. SADE – Sim, senhora! E vai embora porque quer? Ou porque sua pobre e fraca consciência está lhe obrigando a isso? As mulheres têm um prazo pra agüentar a libertinagem. Depois, ficam ansiosas por filhos, tricôs, viagens ao campo... É este o prazer que você procura agora? Você pretende achar mais prazer nos braços de sua família do que nos meus? É isso!? ANNE – O senhor pensa ser um sedutor irresistível, não? SADE – Você é a prova. A própria cunhada... ANNE (perversamente inocente daqui por diante) – Pois se engana. Eu vim porque quis e porque queria te usar. SADE – Que delícia! Porque não me avisou antes!? ANNE – Suas ironias não escondem o que você sente, na verdade. Eu usei você. E é óbvio que isso te incomoda. Incomoda porque você, do alto de sua magnitude aristocrática, sempre se sentiu no direito de usar os outros. Uma forma, talvez, de disfarçar sua decadência. (Utilizando-se da ironia do marquês). Pois eu usei você: usei porque queria provar a mim mesma que podia ser dona da minha vida. Vim pra Itália porque sabia que me desejava. Foi muito fácil. (Como se ditasse uma receita). Eu queria provar do mais baixo, do mais vil. Você me dizia santa? Pois sou mais santa do que minha irmã, do que minha mãe. Eu provei do inferno pra sentir melhor o gosto do paraíso... SADE – To a nunnery go!1 ANNE – Como? SADE – Vá para um convento! A educação que lhe deram não foi o suficiente pra conhecer Shakespeare? Minha querida. Sua castidade não vai lhe fazer famosa. Já basta a falsa virgem, mãe daquele impostor judeu, cabeludo e impotente! (Abre os braços, fazendo-se de crucificado).. 1. Hamlet, Willian Shakespeare.. 17.

(21) ANNE – Não faço a mínima questão de ser famosa. Já lhe disse: quero apenas ir embora, senhor marquês. SADE – O homem sempre quer ser reconhecido, mas busca sua fama de formas opostas: através do sacrifício ou através da luxúria. ANNE – Eu prefiro o sacrifício. SADE – Muito bem! O reconhecimento através do sacrifício. O sacrifício de nossas orgias? O martírio de nossos orgasmos? O sofrimento de nossa devassidão? ANNE – O senhor não sabe o quanto se destrói a cada gesto indigno. Eu apenas tenho pena, a única coisa que eu posso sentir por você... SADE – Pena? Não foi bem pena que eu senti nos seus olhos, aquele dia... Rua da Madaleine, Paris. Cena II – casa dos Montreuil (1763) ANNE começa a se deslocar e mudar de postura. Canta ou ouve-se a ária de ACANTHE ET CÉPHISE, de Jean-Philippe Rameau. De repente, olha pra trás de se depara com SADE, assustando-se. ANNE – Oh! Os dois se olham um tempo. ANNE – Sou Mademoiselle de Montreuil. Faz a reverência. Entra a PRESIDENTE, Madame de Montreuil. Reprime ANNE, que se afasta e sai. SADE – Boa tarde, Madame. PRESIDENTE – Senhor conde...?! SADE (cortando) – Marquês, minha senhora. Prefiro que me chamem Marquês de Sade. Vim tratar do casamento com Mademoiselle Renée-Pélagie de Montreuil. PRESIDENTE – Se o destino tem assim disposto, que posso eu mais senão ter alma opressa, olhos banhados sempre e baixo o rosto?2 SADE (entrando no jogo) – Se conheceis do amor a reflexão e o pranto, entre esperanças fugidias, piedade espero achar, mais que perdão, para as dores das minhas fantasias.3. 2 3. Sobre a Morte de Madame Laura. Trecho do soneto de Petrarca traduzido por Luiz Vicente De-Simoni. Introdução aos seus Versos. Trecho do soneto de Petrarca traduzido por Waldemar de Vasconcelos.. 18.

(22) PRESIDENTE – Aos versos, em que choro sem razão entre a vã esperança e o vão temor, onde existir quem entender o amor, espero achar piedade, não perdão.4 SADE – Vejo que a senhora conhece bem os sonetos dedicados a Madame Laura de Noves!? PRESIDENTE – Desposou um parente seu, segundo estudos do Abade de Sade, não!? SADE – A senhora conhece? Meu tio. Dedica sua vida a estudar a vida da famosa musa de Petrarca. PRESIDENTE – Bela linhagem de antepassados... SADE – Ao seu dispor, senhora. PRESIDENTE – Seja bem-vindo à casa dos Montreuil. Soube que o senhor fez algumas campanhas com o exército do nosso país, na Guerra dos Sete Anos, não!? Consta que o senhor foi dos mais valentes e heróicos ao invadir a Alemanha? SADE – Fiz o melhor que pude. PRESIDENTE – Será um lindo casamento. (Silêncio. A partir daí será feito um jogo de cinismo e interesses das duas partes). Seu pai parece ansioso. SADE – Não é pra menos, minha senhora... PRESIDENTE – Parece-me que esta ansiedade de seu pai tem a ver com boatos... SADE – Boatos são para desocupados. A senhora, certamente, não deve dar ouvidos a... No exército... PRESIDENTE (cortando) – O senhor, em campanha, deve ter conhecido toda a França, não? Por acaso conhece aquela região de Avignon, Arles? SADE – Tenho terras por lá. PRESIDENTE – Bela região. O castelo de La Coste?! SADE – Me pertence. PRESIDENTE – Ah, sim, tenho a impressão que já haviam me falado algo a respeito... Belo castelo... SADE – Também em Mazan e Cabanne... Nosso rei já aprovou o casamento... PRESIDENTE – Eu bem sei. Quanto a questões.... 4. Soneto I – Em vida de Laura. Trecho do soneto de Petrarca traduzido por Pedro Lyra.. 19.

(23) SADE – Financeiras? Penso que não teremos problemas. Sua Majestade concedeu-me um diploma de retenção de sessenta mil. Seu esposo, (com ênfase, demonstrando interesse também) presidente da Corte dos Aydes, não é isso? (A Presidente aquiesce aparentemente desinteressada). Senhor de Launay... PRESIDENTE – A benção... SADE – Como?! PRESIDENTE – O mais importante foi Sua Majestade ter concedido a benção, ter abençoado vosso casamento. Não acha, senhor... Marquês? SADE – Mas com certeza. PRESIDENTE – Será um prazer tê-lo em nossa família. SADE – O prazer será todo meu. PRESIDENTE (saindo) – Pois vamos organizar tudo para que seja um casamento digno... Cena III ANNE entra ao mesmo tempo em que a PRESIDENTE vai saindo. As duas falam juntas. PRESIDENTE e ANNE – E o mais rápido possível. É importante que os dois se conheçam, mas podemos pular as formalidades e dar o início ao processo... A PRESIDENTE sai. ANNE – “... Para que tudo se ajeite logo”. SADE – Quando ela disse: “é importante que os dois se conheçam” achei estranho, pois ela mesma havia recriminado minha futura esposa... ANNE (cortando) –E que não era sua futura esposa. SADE – Como eu poderia adivinhar que iria me casar com sua irmã!? Fiquei entusiasmado em despetalar aquela bela flor que eu imaginava entre suas delicadas pernas... ANNE – Mas não o fez, anos depois? E então, satisfeito? Só faltava uma orgia com minha mãe e meu pai pra que entrasse em suas anotações malucas o inédito fato de ter fodido uma família inteira! SADE – Com aquela velha asquerosa eu só usaria o chicote. E seu pai, aquele inútil palerma, mandado por sua mãe? Não, não, eu acho que eu não foderia com ele. Pra seu pai, o desprezo, pra sua mãe, o chicote. Imagine os gritos daquela vaca. 20.

(24) enquanto eu estivesse furando aquele rabo gordo, deixando aquela imensa massa de carne podre coberta de sangue. ANNE – Quanta bobagem, senhor Marquês. Que prazer isso lhe dá? Em falar atrocidades? Pretende me chocar? (Falsamente pudica, com a mão na cabeça) Oh, meu deus! SADE – E tudo o que eu fiz com você... ANNE – Não foi muito mais do que eu esperava. Na verdade, esperava descobrir prazeres desconhecidos... Afinal, o Marquês de Sade não é nenhum fenômeno... SADE – Você diz isso porque... ANNE (cortando) – Nada que alguma freira, num convento, não consiga fazer apenas com os dedos. Vocês, homens, se acham o máximo na cama, quando não passam de desastrados. Bastam alguns gemidos nossos e vocês se acham os fodedores, enquanto a gente ri por dentro... SADE – Sua idiota. Você pretende o quê com isso? ANNE (mudando o tom) – Se você prestasse um pouco mais de atenção no que eu falei quando entrei e encontrei vocês dois... Teria ouvido que você e seu criado foram queimados numa representação em praça pública. Uma execução... SADE – Que eu adoraria ter assistido... ANNE – Querem matar você na França. E não é só minha mãe. Você é um homem odiado! SADE – A pena de morte... A morte sempre deveria estar ligada ao prazer. Se sou tão odiado, se você já sabia, se está do lado de sua mãe, porque veio? ANNE – Senhor marquês. Se a vida fosse um jogo, imagine quantos pontos eu teria ganhado? Fugi de minha mãe, aquela “víbora ardilosa”, vim pra Itália com o perseguido Marquês de Sade, e agora estou voltando para a França. Serei recebida por minha mãe, deixarei você saudoso, abandonado e pobre na Itália. E ainda pude desfrutar de algumas insípidas noites de sexo. É, aproveitei a luxúria e serei reconhecida pelo sacrifício... SADE – É pra isso que vocês mulheres servem! Pra arruinar nossas vidas. Quando não é uma denúncia, é dinheiro, é cobrança, é pensão... O casamento... ANNE – Casamento... Minha mãe sempre soube que eu nunca ia casar com homem nenhum. E quanto mais fodida eu estivesse, mais o convento teria pena de mim. (maliciosa, cínica, fazendo-se de vítima) Eu fui usada, enganada pelo senhor. SADE – Sua vadia!. 21.

(25) ANNE (cínica) – Fui trazida à força em meio a ameaças de morte. Tão pura e inocente que sou que não soube sair das garras do perverso Marquês. Sou um exemplo das torturas, das perversões que o Marquês é capaz de fazer. SADE – Nossa! Já pensou em fazer teatro? ANNE – Me respeite! Sou uma pobre virgem. A inocente que não leu Shakespeare. Como Ofélia. Ofélia não leu Shakespeare. Frailty, thy name is woman!5 SADE – Você não vai acabar comigo. ANNE – Não? Sem mim, sem dinheiro? A Itália é linda, permissiva, mas é cara. Você precisa de dinheiro. Vai arranjar aonde? Este seu disfarce como Conde de Mazan não vai lhe permitir empréstimos. Pra você ter uma carta do rei você teria que se assumir Marquês de Sade, e isso seria sua ruína... Aliás, nem precisam descobrir onde você está, com seu disfarce, se puder ter quem revele seu esconderijo... SADE – Vocês nos usam, aprendem as sacanagens todas, e depois dão-nos um pé na bunda. Nos usam e depois... ANNE – (numa tranqüilidade perversa) – Pois é, senhor Marquês de Sade. Como já havia lhe falado... Eu usei você... SADE – E se eu te prender aqui, comigo? ANNE (começa a rir) – Darei um jeito de fugir e espalhar que o Conde de Mazan não é ninguém menos do que o Marquês de Sade, o perverso marquês, o libertino, o criminoso, o assassino!!! Que tal? Você não pode me prender o tempo todo. (Vai saindo de cena, ri mais). Ele está aqui! O Marquês! Sade está na Itália, prendamno! (Gargalha). SADE (sempre gritando) – Volte aqui, sua cadela! ANNE (já fora de cena, sempre rindo) – Ele está aqui! QUADRO III – O CASTELO DE LA COSTE (1777) Cena I SADE – Merda! Alguém! Cadê a criadagem! Tragam-me algo para comer! Merda! Não mando mais no meu próprio castelo!? Eu mereço ser mal-servido até em minha própria casa? Latour? Alguém responda! Ainda sou o dono desta merda! Alguém! MARAIS (de fora) – Diga, senhor? SADE – Quem me fala? Não é nenhum de meus criados. Sou bastante astuto pra conhecer a voz e as nádegas de todos eles. 5. Hamlet, Willian Shakespeare.. 22.

(26) MARAIS (ainda de fora) – O senhor deseja alguma coisa? SADE (irônico) – Que voz será esta? Que me traz lembranças e não me excita?! Entra MARAIS. MARAIS – O senhor deseja alguma coisa, caro conde? SADE – Marquês. Marquês, senhor Marais. A que devo a honra? MARAIS – Estava passando pelas redondezas e resolvi visitar seu tão falado castelo. SADE – Tão falado? MARAIS – Dizem, por aí, que o senhor anda fazendo orgias com seus criados. Que trouxe duas damas pra... SADE – Meu caro Marais, um chefe de polícia não deve dar ouvidos ao populacho. MARAIS – Disseram-me que o pai de uma de suas criadas veio aqui e tentou matá-lo, é verdade? Um chefe de polícia tem que defender seus cidadãos! Como é cansativo, o meu trabalho... E que recompensa eu tenho? A justiça. SADE – Estou muito bem defendido, aqui, no meu castelo. Aliás, como o senhor entrou? MARAIS – Duas moças... SADE (desconversando) – Aonde? MARAIS – Abriram o portão pra mim. Duas belas moças... SADE – Criadas. MARAIS – Senhor de Sade... SADE – Marquês! MARAIS – O senhor já tem antecedentes criminais. Já foi preso por libertinagem. Não convêm estar se expondo... As duas moças... SADE – Já lhe disse... MARAIS – E nem convêm mentir! SADE – Senhor Marais! MARAIS – Senhor de Sade! (Chamando JEAN, pra dentro). Soldado!. 23.

(27) Cena II JEAN entra com NANON e MARIENNE. MARAIS – Então, Marquês?! SADE – Não as conheço. MARAIS – Soldado! JEAN torce o braço de MARIENNE. NANON – Senhor, ela não pode falar... MARAIS – Como assim? Soldado! JEAN torce, mais forte, o braço de MARIENNE. Ela grita. NANON – Senhor, pelo amor de deus, ela é muda, não fala. SADE – O que você pretendo com isso? MARAIS – Você as conhece, senhor de Sade? JEAN torce, mais forte, o braço de MARIENNE. Ela grita. MARAIS – Você as conhece, senhor de Sade? (Para as duas) E as “senhoras”? Conhecem o “marquês”? NANON – Pelo amor de deus! (Põe a mão na barriga, começa a ofegar). MARAIS – Fale! (Marais chuta MARIENNE, que cai no chão, gemendo. JEAN pega NANON pelo braço). Fale! (Chuta mais, MARIENNE grita). Fale! MARAIS Chuta mais, corre atrás de MARIENNE, começam a circular pelo palco numa perseguição insólita e humilhante, enquanto JEAN segura NANON pelo braço, apertando-a e machucando-a. SADE nem se abala, olha tudo com um desdém e uma frieza cruel. NANON geme. MARIENNE grita. NANON também. MARAIS – Fale! Chuta mais, MARIENNE omite um pequeno gemido que vai diminuindo. MARIENNE parece desfalecer. NANON vomita, desesperada, impelindo JEAN a jogá-la no chão. NANON (se limpando, aos pés de SADE) – Senhor, nós devolvemos o dinheiro, mas, por favor... MARAIS – Dinheiro, senhor Marquês?. 24.

(28) SADE (empurrando-a com o pé) – Sua puta! MARAIS (pra MARIENNE) – E a senhora? (Sarcástico). Quem cala, consente. NANON (indo em direção a SADE) – Eu devolvo tudo. Mas deixa a gente ir embora... (Põe a mão na barriga). Minha barriga... MARAIS – Barriga? Vejo que temos um caso de gravidez no recinto. Por acaso você é a senhora Nanon? SADE – Marais. Chega! Você não tem ordens pra me prender. MARAIS (com um riso vitorioso no rosto) – É bom que ela ouça... Como já lhe disse, meu trabalho é cansativo. Mas a recompensa que eu tenho é: a justiça. Soldado, por favor! JEAN (abrindo um pergaminho) – O senhor Donatien-Alphonse-François de Sade é acusado de sodomizar... SADE (gozador, mas tenso) – Óoo... JEAN – Torturar... SADE (gozador) – Óoo... JEAN – E engravidar a senhorita Nanon, contratada pra trabalhar em seu castelo, em La Coste, onde, segundo testemunhas, participou de orgias, forçada e ameaçada – bem como os outros funcionários do castelo – a cometer atos repulsivos e proibidos pela santa lei de nosso país. MARAIS (triunfante) – Uma carta de detenção! Voilá! NANON vai em direção a MARIENNE e abraça-a. As duas ficam num canto do palco, acuadas. MARAIS – E vocês duas fiquem quietas. Serão ótimas testemunhas contra: o Marquês! SADE – “Pela santa lei do nosso país”. Soldado, o senhor conhece a santa lei do nosso país? JEAN olha de soslaio pra MARAIS. MARAIS – Responda. JEAN – Senhor, não sei ao certo. Mas sei o que se pode fazer e o que não se pode fazer. O que é certo e errado. SADE – Quem lhe disse o que é certo ou errado? JEAN – A santa igreja, senhor e... 25.

(29) SADE – A santa igreja!? Você acha que aqueles padres punheteiros e comedores de criancinhas podem ter alguma moral... NANON – Senhores... MARAIS – Parece-me que o senhor de Sade quer aumentar a lista de acusações dele... SADE – Sim, soldado. Você segue as leis de um reino, não!? JEAN – Sim, senhor. SADE – Um reino ao qual você pertence e deve obediência? MARAIS – Suas perguntas já foram mais inteligentes, marquês. NANON – Senhor, eu posso... SADE – Já você, continua com o cinismo dos tolos. (pra JEAN). Diga-me, soldado, o reino que você vive, que você obedece, é o reino para o qual você paga impostos, é o reino que paga seus salários, é o reino que administra sua vida, não é? JEAN – Sim, senhor. SADE – Olha, ele não é tão burro quanto eu pensava. Pois você está satisfeito com a administração da França, com o preço dos impostos, com seu salário? MARAIS – Senhor de Sade, já chega. SADE (se exaltando) – Marquês, marquês! Você acha, soldado, que um país assim merece respeito? Você não se sente um imbecil em respeitar uma justiça que só favorece aos fortes, um governo que esbanja o seu imposto, te fazendo de otário? Soldado, o senhor acha que sou tão mais criminoso assim do que nosso rei, que vive o dia a caçar enquanto sua esposa faz orgias no seu pequeno castelo de contode-fadas, construído com o suor de tantos imbecis apáticos quanto o senhor? Responda, soldado, que leis devo eu respeitar? Que igreja, que estado? Sou eu o maior criminoso? (Aponta para as mulheres). São estas as maiores criminosas? Elas podem vender o corpo, mas e o senhor? Vende seu orgulho, seu respeito, sua honra, sua alma! MARAIS (pretensamente superior) – Alguém tem que fazer o trabalho... Digamos: cansativo, pesado. Bom, chega! Soldado, prenda-o. SADE (provocador) – Prenda-me. (Gozador). É assim que os que falam a verdade pagam seu preço. MARAIS – Não provoque o rapaz. SADE – Seu nome, pobre criatura?. 26.

(30) JEAN (abaixando a cabeça) – Jean Blanchos. SADE – Belo nome. A família Blanchos sabe que você cumpre ordens de um paspalho maior do que você? MARAIS (irritado) – Soldado, vamos encurtar a conversa. Prenda este homem, já disse. SADE – Meu querido Marais. Você bem sabe e leu aquele laudo. Eu nunca envenenei ninguém e nem nunca torturei aquela alemãzinha descarada que me vendeu seu corpo. E agora essa... Eu não engravidei criada nenhuma. MARAIS – bela defesa, senhor. Mas o rei deu ordens de prisão. Se quiser, argumente com ele. SADE – Ele deve estar agora cuidando dos chifres que Maria Antonieta colocou nele, ou de suas caças, única prova de virilidade deste fantoche dos Habsburgo. Mas posso argumentar com este belo rapaz. (Sedutor) Me responda, quem comete um maior crime: um homem que sodomiza, chicoteia uma puta ou um rei que ordena que milhares de soldados morram por uma causa que não é deles e que eles não sabem qual é, na verdade? Os soldados são os bobos de uma corte de bobos. MARAIS – Fale isso na corte. SADE – Então fale na corte também que você só me prende pra se sentir útil. Que sabe mais do que ninguém que eu sou inocente. Que a decadência de um estado precisa de bodes expiatórios. Você sabe que Luís vai cair. Você sabe que a nomeação de Necker como ministro foi um paliativo. Sabe que o patrocínio à independência dos Estados Unidos da América foi um poço que Luís cavou para si mesmo. Só se fala em independência nas ruas. Se continuar assim, o rei se afundará junto com sua igreja. MARAIS – Fale isto pra corte e pra deus. SADE – Meu canal de comunicação com deus é este (aponta a bunda) e parece que ele não é chegado em cus... Assim como nosso rei. Uma nação precisa de um rei, mas de um rei que goste de cus! MARAIS (ofendido) – Basta. Prenda-o. SADE – Prenda-me, senhor Jean. Venha! (sai correndo pela cena). Porque não me bate? JEAN (pra MARAIS) – Senhor, eu devo? MARAIS faz um sim com a cabeça. JEAN começa a correr atrás de SADE. SADE – Vem, me abraça! O senhor já abraçou um homem? JEAN – Senhor, por favor... MARAIS – Soldado! 27.

(31) SADE – Pegue em mim. Pegue no maior libertino da história. (Põe a língua pra fora). Quem sabe eu lhe transmita um pouco de blenorragia?! JEAN (pra MARAIS) – Senhor?! MARAIS – Acabe logo essa palhaçada. JEAN encurrala SADE. MARAIS – E vocês duas venham comigo. Aliás, a mudinha pode ir embora. Você, (aponta NANON) fica. (JEAN pega NANON pelo braço e a entrega a MARAIS. MARIENNE sai correndo por entre eles. MARAIS torce o braço de NANON, imobilizando-a, ela geme). Caro Sade. Vá se acostumando a não fazer mais cenas. Despeça-se de seu castelo, de seu teatro particular, de seus criados e criadas. Acabou o espetáculo. A prisão, mais uma vez, te espera. Traga-o aqui pra fora quando terminar esta farsa inútil. MARAIS sai de cena levando NANON. O soldado vai em direção a SADE. SADE (de braços abertos) – Vem! JEAN agarra-o. QUADRO IV – NA BASTILHA (1789) Cena Única SADE (se desvencilhando) – Pronto, já me acalmei. Não sabia que a Bastilha era tão charmosa. Vincennes era num descampado. Bem ou mal eu aqui pelo menos sinto o cheiro de gente. Você gosta daqui? Trabalha há quantos anos? JEAN – Recebo ordens pra não falar. SADE – E aqui na Bastilha, se faz sexo? JEAN – Recebo ordens pra não falar sobre coisas que não me digam respeito. O senhor me gritou pra quê? SADE – Só se fazendo de maluco pra conseguir alguma coisa. Meus livros? JEAN – O senhor já foi avisado que não terá acesso aos seus livros. SADE – Marais os enfiou no cu? (Silêncio). Pensando bem, seria um fim razoável pra tão raras especiarias. O senhor gosta, sabe ler? (Silêncio). Ah, sim... O senhor é autorizado a me dizer se daqui dá pra ver o povo, lá embaixo!? E a situação do Rei? Do ministro? (Silêncio). Você tem um olhar muito esperto pra ser soldado mandado. (senta-se). Sabe, algum dia eu vou cansar disso tudo. Espero morrer antes de me cansar. De prisão em prisão... 28.

(32) JEAN – Porque então o senhor insiste em fazer coisas que o levam à prisão? SADE – Pra que uma prisão maior do que a existência? Quem é totalmente livre? Você faz tudo o que você quer? Olhe pra mim! Pode-se fazer muito se tiver dinheiro, mas não tudo. Come-se muita gente, mas não se compra todo mundo. Só os vermes, no túmulo, conseguem ser donos de alguém por completo. Prefiro me arrepender de tudo que eu fiz a ficar me lastimando pela mesmice de uma vida medíocre. JEAN – A situação não está das melhores. SADE – O quê? JEAN – O senhor perguntou sobre a situação política do país. As manufaturas Reveillon, no arrabalde Saint-Antoine, foram pilhadas. As pessoas saíram às ruas gritando “é preciso fazer dançar os beatos”. (Hesita). Queria lhe dizer que às vezes, quando não se tem poder nas mãos, o melhor é ser vassalo. Eu tenho superiores, não posso perder meu emprego. SADE – É por culpa de pessoas como você que a França chegou onde está. Um rei de merda, uma rainha de louça, e um estado de gelo exposto a um sol de verão. Sim, mas encoberto pela fraqueza, hipocrisia, covardia; por isso ainda não derreteu, desmoronou. É uma pena que nosso país fique entregue a um monarca destes. Precisamos de um rei. E quando falo isto, digo que precisamos de um rei de verdade. Suas ordens vêm de outros, vocês apenas cumprem o que vem escrito nas cartas de detenção. Seus superiores fazem da França um parque de diversões para seu autoritarismo, sua truculência. Enquanto assim for, toda revolução será sempre o esforço consciente para substituir um grupo dominante por outro. Belo povo de merda. Você acha que não podemos fazer nada? Sempre podemos fazer alguma coisa. JEAN – É muito fácil, para o senhor, falar isso tudo. SADE – Por que você diz isso? JEAN – O senhor tem poder, é um nobre. Está acostumado a mandar, ser atendido. Nós!?, somos os que atendemos, senhor. Sempre haverá alguém pra ser mandado, senão não haverá mais quem mande. E o homem sempre vai querer mandar. SADE – Virou filósofo, agora? JEAN (num crescente delírio) – Se eu pudesse, eu também mandava. Bastava que me dessem um pouco de poder e eu faria tudo que sempre desejei. Queria ter o gosto de humilhar, subjugar, desprezar. Não se engane, eu posso ser tão perverso quanto vocês, nobres. Só não tenho o poder para isso. O senhor acha que um soldado como eu, se tomar o poder da França, vai pensar em ajudar os desfavorecidos? Meu senhor, ninguém chega ao poder sem se corromper. E eu teria o maior prazer em ser corrompido. Ah, eu teria. Faria coisas que você nunca ia imaginar. Não sei se por vingança ou por que a gente é assim mesmo. O senhor não imagina o prazer 29.

(33) que me dá bater em vagabundos, quando sou mandado. Vicia. O senhor não imagina o prazer que me dá passar por aquela porta e trancar alguém como o senhor, um nobre. Controlar sua comida, amarrar seus punhos, e se possível (pega uma arma sua, aponta pra SADE, que recua, apreensivo) bater em vocês. Fico aguardando o comando de um superior com a maior ansiedade. E se eu não puder exercer meu poder aqui, eu exerço em cima de minha mulher, de meu filho, na rua... Eu sou um guarda, sou autoridade, e me valho disso. (Num crescente). Acho que se eu tivesse poder, eu seria bem pior do que vocês, bem pior que todo mundo, (vai se enfraquecendo) eu seria pior do que sou... do que eu posso ser... (suspira, ofegante), desculpe, senhor... SADE (se recompondo, tomando conta da situação) – Bom rapaz. Mais um motivo pra não se acreditar no ser humano. Isto é um bom começo. Com o tempo você não só deixará de acreditar como vai passar a odiar esta massa amorfa que esse seu deus, inexistente e inútil, botou no mundo à sua imagem e semelhança. JEAN – Não sei, senhor... E de que adianta a revolta? Se tudo muda pra ficar igual, como o senhor mesmo falou... Nada vai mudar. SADE – Nada vai mudar, mas pelo menos temos o gostinho de ver as coisas bagunçadas. É melhor andar em círculos do que ficar parado. Pelo menos conseguimos desviar das bostas de passarinho. (Aponta a janela). Não se põe um urso perto do mel. Eu estou preso, sou um pária, mas posso fazer alguma coisa, duvida? Veja está janela. Veja a multidão que passa lá embaixo. (corre e grita pela janela). Vocês aí embaixo! Estão degolando os prisioneiros da Bastilha! JEAN – Senhor! SADE (gritando pela janela) – Façam alguma coisa! Libertem os prisioneiros! JEAN – Senhor! O que meus superiores dirão se... SADE – Mexam-se! O povo não agüenta mais os impostos, os preços, as medidas de um governo instável! E agora querem degolar prisioneiros! Homens como vocês! A gente precisa de liberdade! Liberdade!!! SADE parece não ouvi-lo. JEAN sai, desesperado, enquanto SADE grita. SADE – Libertem-me! Libertem os prisioneiros da Bastilha! Liberdade! Liberdade aos presos, aos bêbados e... QUADRO V – NOVAMENTE EM LA COSTE (1765) Cena I Entra BEAUVOISIN. SADE – As putas? E as putas?!. 30.

(34) BEAUVOISIN – Todas confirmaram presença, meu lorde. SADE – Marquês! Me chame de marquês, meu anjo. BEAUVOISIN – Meu lorde, meu amo, meu mestre. Eu te chamo como você quiser. SADE – E o teatro? BEAUVOISIN – Ficou lindo! Não vejo a hora de pisar no palco: “são caros os instantes; escutai-me. Fui quem, sobre um filho casto e humilde, lancei vista profana, incestuosa. Pôs em meu seio o céu chama funesta6”. Não, quem sabe: “e meu pai por vingar!... E ostento de paixão! Oh, céus! Morro de pasmo! Morro de confusão7”. SADE – Como um Racine se torna tão sublime em sua voz. Quão divino se torna Corneille. E pensar que somente poucos, em nosso modesto teatro, terão o prazer de ver a minha grande diva, La Beauvoisin, interpretar os grandes clássicos! BEAUVOISIN – E pôr a rir todo mundo com um Moliére... SADE – Um Beaumarchais! BEAUVOISIN – E um Sade! Por que não!? SADE – Meu anjo... Com certeza. O casal mais feliz de toda a França! Quem sabe não construiremos um teatro maior, depois! Com nosso sucesso, talvez possamos ganhar dinheiro com nossas peças e... BEAUVOISIN – Meu lorde, esqueça. Não se ganha dinheiro com teatro. SADE – E todo o dinheiro que você me emprestou, meu anjo? Sem isso eu não teria construído nossa pequena casa de espetáculos... BEAUVOISIN – E quem disse que meu dinheiro vem do teatro? Esqueceu que nós, artistas, precisamos nos prostituir pra ganhar dinheiro? SADE – Não, minha querida, e nem me esqueci de que você agora é somente a minha puta, a minha atriz... BEAUVOISIN (evasiva) – Prefiro dizer que somos, nós dois, de nós mesmos. Agora e sempre. SADE – Nós dois, um castelo e um teatro. Pra quê mais?. 6. Trecho de Fedra, de Jean Racine. Tradução de Mendo Trigoso. In: Clássicos Jackson, volume XXVIII. W.M. Jackson Inc. Editores. 7 Trecho de Cid, de Corneille. Tradução de Antonio Feliciano de Castilho. In: Clássicos Jackson, volume XXVIII. W.M. Jackson Inc. Editores.. 31.

(35) Cena II Entra o ABADE de Sade. ABADE – A que ponto chegamos, senhor marquês! SADE (pra BEAUVOISIN, sarcástico) – Pra quê mais? (pro ABADE) Meu tio?! Ouvindo atrás da porta? Como se faz nos claustros... ABADE – Donatien, pedindo dinheiro a uma... atriz de cabaré... BEAUVOISIN – Do grande teatro de La Coste! SADE – Sua benção. ABADE – Se eu pudesse lhe dar alguma coisa, seria vergonha na cara. SADE – Que é isso meu tio? BEAUVOISIN – É este o famoso Abade de Sade? ABADE – O próprio. A senhora...? BEAUVOISIN – La Beauvoisin. “Oh dor nunca sentida! A que novo tormento estou guardada! Quanto sofri, meus sustos, meus transportes, meus furores, o horror dos meus remorsos, dum repudio e injúria insuportável...8”. ABADE – Já ouvi Fedra de bocas mais puras... SADE – Mas não tão talentosas. (Beijando BEAUVOISIN). Não é, meu anjo!? ABADE – Então é esta a qualquer que você apresenta como sua esposa? E que ainda lhe empresta dinheiro? SADE – Esposa? BEAUVOISIN – Que coisa mais cafona, meu senhor. Jamais gostaria de ser “esposa” de alguém! ABADE – Corre o boato pela cidade que você desfila com esta... madame pela cidade como se fosse sua esposa. BEAUVOISIN – Pois me faça o favor de ser o primeiro a desfazer este mal-entendido. Não quero que pensem mal de mim. Imagine, meu lorde? ABADE – Lorde!?. 8. Trecho de Fedra, de Jean Racine. Tradução de Mendo Trigoso. In: Clássicos Jackson, volume XXVIII. W.M. Jackson Inc. Editores.. 32.

(36) BEAUVOISIN – Daqui a pouco vão pensar: olha a traída, a explorada, a humilhada, inutilizada, subjugada... ABADE – É isto que a senhora pensa do santo matrimônio? BEAUVOISIN – E o senhor? Acha que o casamento é algo mais do que um suicídio da alma? Do que o assassinato da liberdade? ABADE – E o quê que a senhora pode entender sobre a alma, se a sua, mesmo, está perdida? SADE – Meu querido tio. O senhor convence muito mais como historiador do que como abade. ABADE – Se você tivesse ouvido um pouco mais a palavra de deus, quando morou comigo... SADE – As palavras de deus que o senhor abade mais pronunciava eram: chupa, senta, abre, faz ele subir... ABADE – Donatien, Madame de Montreuil pediu que... SADE (cortando) – Por favor, meu tio. Se estas são palavras de deus, mande-o escovar os dentes urgentemente. ABADE – Donatien, você sabe que a situação financeira não está das melhores. Donatien, faz pouco mais de dois anos que você casou e... Madame de Montreuil... Ela disse que... SADE – Por favor, não repita o nome... BEAUVOISIN – Da minha mãezinha. Os dois a olham. BEAUVOISIN – Eu não sou esposa do marquês? (Ri). ABADE – A situação está crítica. A polícia atrás de você, um monte de processos. Você ainda inventa de construir um teatro em sua própria casa! BEAUVOISIN – O senhor precisa conhecer! Ficou ótimo! Quem sabe o senhor não prega seus sermões por aqui de vez em quando? SADE (rindo, bonachão) – Está vendo!? De que outra forma eu teria a atriz mais inteligente e gostosa... BEAUVOISIN – E talentosa... SADE – E talentosa da França ao meu lado? Como faria meus espetáculos? Meu tio, ainda serei conhecido como um grande escritor! 33.

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