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Os pintores da segunda metade de Oitocentos, entre o Naturalismo e o

Capítulo 2: Arte e Cultura, da Regeneração às Vésperas da República

2.4. Os pintores da segunda metade de Oitocentos, entre o Naturalismo e o

Na década de 50 destacam-se dois pintores que vão ser precursores do naturalismo em Portugal: Tomás de Anunciação (1818-1879)175, e J. Cristino da Silva176 (1829-1877). O primeiro, Professor de Paisagem na Academia Nacional de Belas-Artes, foi sobretudo um pintor animalista, e no final da sua carreira fará registos de pintura ao ar livre. Com efeito, Tomás Anunciação revoltar-se-ia em 1844 contra os métodos de ensino conservadores utilizados na Academia e defende que se pintasse do natural ,e não a partir de modelos e gravuras. Esta revolta teve êxito e já em 1852,o vamos encontrar então com trinta e quatro anos, como assistente na Academia e, a partir de 1857, como Professor da Cadeira de Paisagem. Os seus alunos e discípulos já puderam seguir o seu método de pintura a partir do natural. Quase no fim da sua vida e carreira, deu-se a sua consagração ao ter sido nomeado director da Academia em 1878 e também director da Real Galeria de Pintura do Palácio da Ajuda.

O segundo artista mencionado, J. Cristino da Silva177, compôs o quadro Cinco Artistas

em Sintra (1855), em que presta homenagem ao Mestre Anunciação. Está aqui prefigurado, como assinalámos anteriormente, o início do naturalismo em Portugal, da pintura de paisagem e da pintura ao ar livre.

Nas décadas de 60 e 70, enquanto pintores retratistas e especialistas em pintura de História, destacar-se-iam, o Visconde de Menezes (Luís Miranda Pereira de Meneses, 1820-1878), Francisco Metrass e Miguel Ângelo Lupi (1826-1883).

O Visconde de Meneses dedicou-se ao retrato, sendo o seu quadro mais célebre o retrato da sua mulher, Retrato da Viscondessa de Menezes (em 1862), que nos ficou como uma das imagens mais belas do romantismo. Para além destes retratos aristocráticos foi

175Vide José Luís Porfírio e Maria Helena Barreiros, Da Expressão Romântica à Estética Naturalista,

Décimo Quinto Volume, Arte Portuguesa, Da Pré-História ao Século XX (Coord. de Dalila Rodrigues), A. Alves – Arte e Edições, Lda., Tipografia Peres, 2009, pp. 26-42.

176 Idem.

177Vide Maria de Aires Silveira, João Cristino da Silva, 1829-1877, Museu do Chiado, Instituto Português

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também autor de pinturas “costumbristas” (costumes populares). Viajou até Paris e Roma juntamente com Francisco Metrass e aí puderam conhecer os seus museus e arquitectura, um repositório matriz da arte ocidental. Francisco Metrass foi professor substituto da aula de pintura histórica na Academia Nacional de Belas Artes. Ficou conhecido pelos seus quadros de grande dramatismo, teatralidade e sentimento, como Só Deus! (de 1856), e pelos quadros de composições históricas idealizadas como Camões na Gruta de Macau

(1853).

Miguel Ângelo Lupi, pintor de origem italiana, ficou conhecido como retratista e pintor de História. Fez parte da geração que frequentou a Academia de Belas Artes – no seu caso particular o Curso de Pintura – e ali foi professor, inicialmente mestre de desenho em 1864 e a partir de 1867, professor de pintura de História. Explorou a arte do retrato, compôs temas históricos e patrióticos com uma grande carga sentimental. Nos anos 70 Miguel Ângelo Lupi pinta uma galeria de retratos e satisfaz uma última encomenda para a Câmara Municipal de Lisboa, um retrato do Marquês de Pombal, examinando os planos da nova cidade de Lisboa.

Enquanto o panorama português se alterava lentamente, chegavam ecos da pintura ao ar livre, da pintura de observação directa da natureza, através de nomes como Courbet, Millet ou Corot. A Escola de Barbizon (anos 30 e 40) era já uma memória e o Impressionismo tornava-se na grande tendência da pintura francesa. Serão assim Silva Porto e Marques de Oliveira, ambos nascidos na década de 50, os responsáveis pela introdução da paisagem naturalista em Portugal.

Em França a Escola de Barbizon, opunha-se à apreensão estática da paisagem e defendia a captação da impressão registada no momento. A luz, a cor, o movimento, o tempo eram questões fundamentais da pintura impressionista. Em Portugal a questão física da luminosidade é muito diferente. Sob o sol inclemente peninsular os contrastes de luz são feitos através de um claro-escuro, que define os elementos da paisagem. Mas de uma forma geral passa-se de uma leitura pictórica rústica idealizada (de quem não conhece verdadeiramente as suas paisagens naturais), para um lirismo rústico, o que naturalmente dificultava e impedia a sensualidade própria do impressionismo e a paixão pelos pedaços de vida retirados da realidade visível.

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Em 1873 Silva Porto, que fizera os seus estudos na Academia de Belas-Artes do Porto, e Marques de Oliveira partem como pensionistas para Paris. Silva Porto recebe uma bolsa como pintor de paisagem e Marques de Oliveira como pintor de história. Silva Porto regressará em 1879. Em Paris foi aluno de Daubigny (1817-1878), pintor ligado à escola naturalista de Barbizon. Em Paris tomou contacto com uma nova forma de pintar, utilizando os modelos da Natureza. Tendo regressado com uma aura de Mestre (os seus quadros iam sendo enviados para exposições nacionais), foi convidado para professor interino da cadeira de paisagem substituindo Tomás da Anunciação e Cristino da Silva. Quando esteve em Paris, o Impressionismo (a primeira exposição impressionista realizara-se em 1874 no atelier do fotógrafo Félix Nadar) já se afirmava, mas Silva Porto adoptou sobretudo o naturalismo, que já estava plenamente oficializado em Paris e em pouco tempo se oficializaria em Portugal. A atenção à natureza, aos temas pitorescos e animalistas, tratados com outra objectividade, através da pintura ao ar livre, vão encontrar eco numa crítica, que via nesta um exemplo a ser seguido pelos jovens pintores. Silva Porto e Marques de Oliveira seriam aplaudidos pelo público conhecedor, num gosto nacional que se revia nas suas composições rústicas e intimistas, e na sua sensibilidade para a luminosidade e a cor ambiente.

Como já vimos o romantismo, teve dificuldades em impor-se na pintura de paisagem portuguesa. Tanto Silva Porto como Marques de Oliveira seguirão de perto os cânones naturalistas, ignorando o impressionismo e acentuando ainda mais o anacronismo em relação a França.

O impressionismo pouco eco teria em Portugal, mas terá influenciado claramente artistas como Malhoa e Henrique Pousão178. A partir de 1880 o naturalismo instala-se definitivamente na arte em Portugal, defendendo uma representação realista da natureza, e impondo a pintura de paisagem, ou retratando a vida camponesa e operária, com a sua dureza e dignidade.

José Malhoa179 vai ser o artista do século XIX mais admirado em Portugal, com vários seguidores e discípulos. Mesmo que agora as modas e os preconceitos da

178Vide Abel Salazar, Ensaio sobre Henrique Pousão, Livraria Tavares Martins, Porto, 1947, 1ªedição,

Colecção Pintores e Escultores Portugueses.

179Vide Nuno Saldanha, José Malhoa, Tradição e Modernidade, Scribe, Lisboa, 2010 e também AAVV,

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contemporaneidade o façam culpado de uma estética que se arrastou demasiado no tempo e quase sempre alheia a influências estrangeiras. Daí a exploração e o aproveitamento do seu legado durante o Estado Novo.

Inspirado pelas leituras dos romances ingénuos de Júlio Dinis, escritor portuense, Malhoa defendeu um lirismo rústico, um povo que seguia de perto o ciclo da natureza, um povo camponês, bom e trabalhador, sensual e religioso, supersticioso e pagão, rude e sensível, solar e desbragado. Mas não nos podemos também esquecer da vasta galeria de retratos da burguesia e aristocracia da época que compôs, para além de cenas mais urbanas, à beira-mar (com um toque próximo do impressionismo), ou em jardins citadinos. O que nos fica sobretudo de Malhoa é uma exaltação pitoresca de um povo, um registo folclórico de uma nação, em quadros como “A Procissão”, “Os Bêbados”, ou o “Fado”. Malhoa é também um grande desenhador, com um sentido da cor natural muito pessoal. A sua visão pitoresca dos costumes portugueses tornar-se-ia oficial e chegou até aos filmes de Leitão de Barros, já durante o Estado Novo. Este regionalismo populista ficou de facto como a cartilha cultural e política durante muito tempo. Como nos diz José- Augusto França180, Malhoa representa a face soalheira, natural e sensual do País; em contraposição Columbano, é o lado sombrio, angustiado, ensimesmado de Portugal, numa vasta galeria de espectros em que nem sempre os portugueses se reviam.

O rei D. Carlos I181 (1863-1908) faz já parte de uma segunda geração naturalista, que fará prolongar no tempo este estilo artístico. Denegrido por alguns sectores da sociedade portuguesa que achavam que o monarca não poderia executar os quadros que assinava, alguns diziam serem obra do mestre Casanova182, o que manifestamente é falso. Expôs ao lado dos artistas da sua geração, assinando como Carlos de Bragança, e foi um dos principais cultores de marinhas e de paisagens alentejanas, em pintura a óleo e em pastel.

180Vide José-Augusto França, Malhoa e Columbano, Bertrand Editora, Lisboa, 1987. Veja-se também do

mesmo autor, O Romantismo em Portugal, Estudo de Factos Socioculturais, Livros Horizonte, Lisboa, 1991 e O Essencial sobre José Malhoa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008.

181Vide o catálogo Margarida Magalhães Ramalho e Victor Crespo (comiss.), D. Carlos de Bragança - A

Paixão do Mar, Lisboa, Expo 98, 1998.

182Sobre Casanova e a faceta artística do Rei, vide Rui Ramos, D. Carlos, Círculo de Leitores, Casais de

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Não podemos deixar de citar Rafael Bordalo Pinheiro183 (1846-1905), irmão mais velho de Columbano, caricaturista e ceramista, e a sua criação da figura simbólica do Zé- Povinho. O Zé-Povinho surgiria em 1875, na revista Lanterna Mágica, revista da autoria de Gil Vaz, e que duraria apenas três meses. Nesta publicação efémera colaboraram personalidades como Guilherme de Azevedo, Artur Loureiro, Guerra Junqueiro, mas a sua alma criadora foi Rafael Bordalo Pinheiro, tanto que quando parte para o Brasil a revista termina a sua publicação.

O Zé-Povinho, que se tornaria depois muito popular em cerâmicas criadas por Rafael na fábrica das Caldas da Rainha, não possui as qualidades do John Bull britânico, ou do Tio Sam norte-americano. É um símbolo do povo português nas suas qualidades e defeitos, na sua desconfiança, na tristeza, numa certa melancolia ou apatia, numa certa preguiça ou esperteza, numa alegria báquica e esfusiante, ou numa capacidade de troça e de sarcasmo, ou mesmo num certo pragmatismo, que está talvez mais próximo da personagem literária cervantina, de Sancho Pança.

O Zé-Povinho iria ser o símbolo do contexto social português de fim de século. Nascido quase ao mesmo tempo que o Partido Republicano, o Zé-Povinho iria assistir à crescente urbanização de Lisboa, e ao desaparecimento das suas hortas e quintas, numa cidade que ainda evidenciava marcas da ruralidade. Em 1876 o escritor Ramalho Ortigão criticava duramente a vida cultural portuguesa que acusava de não ter escola, público ou crítica, atacando o ensino oficial, os críticos de arte e as revistas da especialidade (não deixando de elogiar o escritor Guilherme de Azevedo, ou o pintor Silva Porto, o”Garrett da pintura Portuguesa” como lhe chamava).

Em 1881 na Cervejaria Leão d’ Ouro, local onde se reuniam os jovens estudantes das Belas Artes, bem perto do antigo Convento de S. Francisco, seria criado um grupo, como já antes referimos, que ficaria conhecido como o Grupo do Leão, epíteto posto pelo escritor Mariano Pina. O grupo, criado em torno do mestre Silva Porto, incluía os pintores

183Vide José-Augusto França, Rafael Bordalo Pinheiro, o Português Tal e Qual, Bertrand Editora, Lisboa,

1981; veja-se também AAVV, A Rolha. Bordalo. Política e Imprensa na Obra Humorística de Rafael Bordalo Pinheiro, Hemeroteca Municipal de Lisboa, Lisboa, Março de 2005 e João Paulo Cotrim, Rafael Bordalo Pinheiro, Fotobiografia, Assírio e Alvim/El Corte Inglés, Câmara Municipal de Lisboa/Museu Rafael Bordalo Pinheiro, Lisboa, 2005.

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João Vaz, António Ramalho, Ribeiro Cristino, José de Figueiredo, o caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, o entalhador Leandro Braga, o actor João Anastácio Rosa, os jornalistas Alberto de Oliveira e Mariano Pina, Emídio de Brito (secretário do Grémio Artístico), Monteiro Ramalho (irmão do pintor António Ramalho), o jornalista e escritor Fialho de Almeida, Abel Botelho, o poeta Bulhão Pato, o escultor Soares dos Reis e mais tarde Columbano Bordalo Pinheiro, que regressaria de Paris em 1883. Era um grupo informal, sem presidente nem estatutos, que lutava contra o academismo e defendia uma estética mais naturalista e ar livrista. Seria esta confraria de artistas que daria o mote para o célebre quadro de 1885, baptizado com o nome do grupo de Columbano, em que este homenageia, o Mestre Silva Porto (1850-1893), artista da cidade do Porto, com obra concentrada sobretudo na década de 80, em composições rústicas e intimistas, pintor que retrata o País rural a que não pode resistir pelo peso da tradição e pelo ruralismo. Silva Porto, como vimos, fora aluno da Academia Portuense, e partira juntamente com Marques de Oliveira, para Paris e para Itália. Ambos frequentaram os ateliers de Ivon e de Cabanel. Já regressado a Portugal, Silva Porto será professor de Paisagem na Academia de Lisboa, onde forma gerações de pintores influenciados pela sua paleta, exemplo e ideário estético. O seu compagnon de route, Marques de Oliveira (1853-1927) será Professor de Pintura de História, na mesma Academia.

Em Portugal a questão do romantismo/naturalismo/impressionismo nunca ficou inteiramente resolvida. Os pintores de que dispunhamos não inscreveram a paisagem184 verdadeiramente no seu imaginário. Mas já não estavam interessados em ser pintores de

atelier, mas sim partir para o campo, para o local, pintando in situ captando momentos, instantâneos da realidade, e não encenando paisagens idílicas a partir de gravuras, ou de justaposições e montagens de gravuras trabalhadas pela imaginação. A paisagem é vista como um cenário ou um habitat, e não tanto como um sujeito ou tema na pintura. Assim, o animalismo e as cenas de costumes vão marcar toda a pintura portuguesa.

De 1851 a 1910 as mudanças no quadro mental cultural português são lentas e quase imperceptíveis, e são consequência ainda de um atraso endémico que já vinha de trás. Estavam assim criadas as condições para que o Oitocentismo se prolongasse para além

184Vide Joana Cunha Leal, Margarida Acciaiuoli e Maria Helena Maia, Arte & Paisagem, Instituto de

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da República, e em que os géneros da natureza-morta, retrato, quadros de flores, fossem praticados e glosados.

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