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Vivem sem cama e sem teto,

Na fome e na solidão:

Pedem um pouco de afeto,

Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?

Têm pejo? Têm confusão?

Parai quando os encontrardes,

E dá-lhes a vossa mão!

Guia-lhes os tristes passos!

Dá-lhes, sem hesitação,

O apoio de vossos braços,

Metade de vosso pão!

Não receies que, algum dia,

Assalte-vos a ingratidão:

O prêmio está na alegria

Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,

Órfãos de toda a afeição:

E sereis abençoados

Por um pedaço de pão...

(Olavo Bilac, 1929)

No decorrer do primeiro capítulo, tratamos da infância desvalida e das realidades culturais existentes em nosso país, desde a Colônia até a República. No decorrer dessa trajetória de longa duração, identificamos aspectos basais para revelar as condições a que os expostos estavam submetidos, desde o abandono selvagem até a implantação de leis que lhes garantissem um mínimo de sobrevivência, segundo os princípios cristãos.

Nessas apreensões, podemos afirmar que, dentre as formas de assistencialismo geradas pela união do Estado com a Igreja e com as entidades particulares (religiosas ou não), nos deparamos com a criação de Internatos, Externatos e Orfanatos.

No presente capítulo, abordamos a história do Orfanato Cristóvão Colombo, desde sua fundação até 1953. No entanto, para contextualizarmos sua criação, fez-se imperioso aclarar as imbricações entre o projeto religioso e social de amparo aos imigrantes, elaborado pelo Beato João Batista Scalabrini, e a imigração italiana no Brasil, especificamente na cidade de São Paulo, que teve como pedra angular a edificação do Orfanato Cristóvão Colombo.

A vinda dos primeiros missionários Scalabrinianos42 para o Brasil ocorreu no penúltimo ano do período imperial, em 1888, quando foram designados dois sacerdotes e um irmão leigo43 para a cidade de Santa Felicidade, próxima a Curitiba, e três sacerdotes e um irmão leigo para o Estado do Espírito Santo. No entanto, no que tange aos trabalhos prestados aos imigrantes italianos, a atuação dos padres Marcellino Moroni D’Agnadello (ex-capuchinho) e Pedro Colbachini antecedem a essa data. Eles mantiveram correspondência constante com o Beato Scalabrini e, posteriormente, professaram seus votos perpétuos à Congregação de São Carlos Borromeu44 (AZZI, 1987).

Durante o Império, o Estado tinha quase o controle completo sobre a Igreja. Segundo a Constituição Política do Império do Brasil, de 182445, a Igreja era submissa ao Estado, sobretudo através do regime do Padroado e do Beneplácito. O clero secular era pago pelo Estado que coletava os dízimos devidos à Igreja. Sendo assim, os bispos e padres eram considerados agentes do Executivo e os assuntos da Igreja eram regulados pelos decretos do Estado. Essa afirmação foi feita pelo Pe. Colbachini, em carta enviada ao Beato Scalabrini, datada de 23 de julho de 1889: “recorri à autoridade civil, da qual é escrava aqui a autoridade eclesiástica” (COLBACHINI, 1889 apud AZZI, 1987, p. 148).

42 Os congregados inicialmente foram conhecidos como Colombinos, pois, em 1892, a Congregação recebeu o

nome de Instituto Cristóvão Colombo. Num segundo momento, passaram a ser denominados como Carlistas e, a partir de 1905, após a morte de seu fundador, passaram a ser conhecidos como Scalabrinianos, em homenagem ao Beato João Batista Scalabrini (AZZI, 1987).

43Por leigos entende-se aqui o conjunto de fiéis, com exceção daqueles que receberam a ordem sacra ou

abraçaram o estado religioso aprovado pela Igreja, isto é, os fiéis que por haverem sido incorporados em Cristo pelo batismo e constituídos Povo de Deus, e por participarem a seu modo do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo realizam na Igreja e no mundo, na parte que lhe compete, a missão de todo o povo cristão”. Concílio Vaticano II, Lumen Gentium apud STEINWASCHER NETO, Helmut, s/d, p.25.

44 Congregação fundada por João Batista Scalabrini em 28 de novembro de 1887.

A obediência e dependência da Igreja em relação ao Estado acabaram com a República, momento em que o clero nacional passou a estreitar os laços com a Sé Romana. No âmbito educacional, o ensino passou a ser leigo e oferecido nas escolas públicas, o que acarretou numa reação de setores da Igreja inconformados com a quebra secular do domínio educacional católico.

Outras modificações significativas entre o vínculo da Igreja com o Estado podem ser observadas na legislação da Primeira República. Constatamos, por exemplo, que para que os casamentos fossem legalizados, passou a ser obrigatória a sua realização também nos cartórios civis, não bastava apenas a cerimônia religiosa; os cemitérios, por exemplo, deixaram de ser administrados pela Igreja e passaram para a tutela do Estado; e a religião católica, que antes da República era a única oficial seguida pela população, passou desde então a dividir seus fiéis com outras religiões e doutrinas que tiveram seus cultos autorizados.

Com a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889), as transformações sociais, culturais, econômicas e políticas ganharam maior relevância. Essas questões foram complexas, visto que o país estava iniciando seu processo de consolidação da produção capitalista. Na agricultura, o café tornou-se o principal produto alavancador das exportações; momento em que a mão-de-obra escrava estava sendo substituída pelo contingente de imigrantes vindos da Europa, principalmente da Itália.

As mudanças sociais, políticas e econômicas não se restringiam apenas ao Brasil, podendo ser constatadas num cenário global, conforme explana Eric Hobsbawm “a economia capitalista era, e só podia ser, mundial” (HOBSBAWM, 1988, p. 66), ou seja, a nova fase do sistema econômico para funcionar de maneira eficaz não poderia se deter às fronteiras:

Muitos dos países ultramarinos recentemente integrados à economia mundial conheceram um surto de desenvolvimento mais intenso que nunca [...]. O investimento estrangeiro na América Latina atingiu níveis assombrosos nos anos de 1880, quando a extensão da rede ferroviária argentina foi quintuplicada, e tanto a Argentina como o Brasil atraíram até 200 mil imigrantes por ano (HOBSBAWM, 1988, p.59, grifo nosso).

Podemos perceber que a economia global alcançou os rincões do mundo, assegurando uma rede de transações econômicas e comunicacionais, além de atrair grandes levas de migrantes e imigrações, sobretudo para os países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.

Ferdinand Braudel salientou que para que o capitalismo sobrevivesse precisaria haver uma sincronia entre os países capitalistas e aqueles que ainda vivem como uma sociedade servil

e escravista, isto é, “o capitalismo vive dessa sobreposição regular: as zonas externas alimentam as zonas medianas e, sobretudo, as centrais. E o que é o centro senão a ponta dominante, a

superestrutura capitalista do conjunto da construção?” (BRAUDEL, 1987, p.60).

Em relação ao Brasil, especificamente na Primeira República, sua inserção no mercado internacional teve seu apogeu pela exploração de matérias-primas. Caio Prado Junior descreve essa nova fase econômica como um desejo de prosperar:

[...] a República, rompendo os quadros conservadores dentro dos quais se mantivera o Império apesar de todas suas concessões, desencadeava um novo espírito e tom social bem mais de acordo com a fase de prosperidade material em que o país se engajara (PRADO JUNIOR, 1979, p. 209).

No final do século XIX, o café se tornou o produto mais rentável para a economia brasileira, que teve os Estados Unidos como um dos principais consumidores46. No Estado de São Paulo, Campinas47 foi o berço da expansão cafeeira que adentrou o oeste paulista e para isso necessitou de elevado contingente de mão-de-obra para suas lavouras, exercida a princípio pelos escravos e após a Abolição da Escravatura pelo trabalho livre dos imigrantes europeus (principalmente italianos, espanhóis e portugueses) que chegavam em larga escala. Sobre as características das fazendas de café, Sérgio Buarque de Holanda explica:

É particularmente no Oeste da província de São Paulo - o Oeste de 1840, não o de 1940 – que os cafezais adquirem seu caráter próprio, emancipando-se das formas de exploração agrária estereotipadas desde os tempos coloniais no modelo clássico de lavoura canavieira e do “engenho” de açúcar. [...] Decai rapidamente a indústria caseira e diminuem em muitos lugares as plantações de mantimentos, que garantiam outrora certa autonomia à propriedade rural (HOLANDA, 1995, p. 173-174).

Podemos constatar pelo relato acima que houve mudanças significativas não apenas quanto à questão da troca de produtos agrícolas, mas também na rotina das fazendas em relação à forma como eram supridas as necessidades primordiais para a sobrevivência de seus moradores. O poder e a autoridade do proprietário da terra não foram alterados, ou seja, sua figura continuou sendo o epicentro dos domínios rurais; suas ordens eram seguidas à risca e tudo era consoante à sua vontade.

46 Os Estados Unidos absorviam 50% da sua produção de café do Brasil. Em 1880-90, essa quantia chegou a cerca

de 70%.

47 Podemos verificar esse predomínio do café nos discursos do senador José Manuel da Fonseca, realizado na

Sessão de 27 de agosto de 1858: “Entretanto todo esse município de Campinas, e outros, estão hoje cobertos de café, o qual não permitte ao mesmo tempo a cultura dos generos alimentícios, salvo no começo quando novo; mas quando crescido, nelle nada mais se póde plantar, e mesmo a terra fica improductiva para os gêneros alimentícios, talvez para sempre, salvo depois de um pousio de immensos anos” [sic] (BRASIL, 1858, p. 253).

Outras transformações sofridas no cenário da sociedade brasileira na Primeira República foram ocasionadas pelas crescentes correntes migratórias, uma vez que grande parcela desses imigrantes teve como principal destino trabalhar nas lavouras de café nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo e na Região Sul do país, sendo que “a maior parte ia para São Paulo, ora diretamente, atraída pelas promessas dos fazendeiros, ora partindo, ou melhor, fugindo do Rio de Janeiro e da febre amarela” (BASBAUM, 1976, p.142), o que ocasionou a dispersão desses imigrantes pelos grandes latifúndios.

As transformações também ocorreram na malha urbana na cidade de São Paulo: “o centro histórico supera [ou] os seus limites seculares, irradiando-se para o oeste e leste, para o além-Anhangabaú e o Tamanduateí, e urbanizam-se [ram-se] enormes extensões de terra livre” (MONARCHA, 2011, p. 102). Uma das porções de terras livres, ou mesmo devolutas, à qual o autor faz menção localizava-se nos arrabaldes do bairro do Ipiranga, local do nascimento do primeiro prédio do Orfanato Cristóvão Colombo, como veremos a seguir. No entanto, para que essa nova onda de transformações não se convertesse em um imenso vale de vidas aniquiladas pela falta de organização urbanística e higiênica, algumas providências foram de vital importância, a saber:

[...] A instalação do Instituto Bacteriológico, do Instituto Vacinogênico, Hospital de Isolamento, e o início de redes de esgotos, nas principais cidades do interior, no que foi auxiliado por abalizados cientistas como Emílio Ribas, Adolfo Lutz, Bonilha de Toledo e outros, foram as armas que se valeu para o combate às epidemias de febre amarela, peste bubônica e varíola que assolavam periodicamente as populações do Estado, ceifando, anualmente, dezenas de milhares de vidas (FREYRE, 1962, p. 193).

Essa mudança econômica, urbanística e populacional ocorrida não só na cidade, mas também no Estado de São Paulo, impulsionada, sobretudo pelo cultivo do café e pelo incremento da mão-de-obra estrangeira advinda, levou a um novo modelo de trabalho assalariado, muitas vezes previamente acordado pelos agenciadores contratados pelos fazendeiros ou pelo Estado. Em 1892, na Itália, existiam cerca de trinta agências de emigração; seus agentes eram incumbidos de arregimentar as famílias italianas para emigrar para o Brasil (SCALABRINI, 1979). No panfleto abaixo (Figura 10), podemos observar como era feita a propaganda que incentivava a emigração, incutindo a ideia de uma vida próspera.

Figura 10: Panfleto distribuído na Itália incentivando a emigração para o Brasil.

Crédito: Assunta de Paris.

Acervo: Arquivo Histórico Municipal de Bento Gonçalves

Disponível em:<http://www.bentogoncalves.rs.gov.br/a-cidade/historia-da-imigracao>. Acesso em: 15 Ago.2014.

A vinda dos missionários da Congregação Scalabriniana ao país estava intrinsecamente ligada à chegada de elevado contingente de imigrantes italianos. Nessa perspectiva, acreditamos ser relevante apresentar, mesmo que sumariamente, os aspectos que fomentaram o projeto de João Batista Scalabrini no plano religioso e principalmente educacional voltados aos imigrantes lotados no Brasil, foco da presente pesquisa, e que serão apresentados a seguir.

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