• Nenhum resultado encontrado

Os profissionais diferenciados em uma era de jornalismo mecânico

2. Ser jornalista, ser escritor: a difícil tarefa de traduzir o cotidiano em

2.1. Jornalista: o produtor de notícias

2.1.1. Os profissionais diferenciados em uma era de jornalismo mecânico

“O jornalista é reduzido a um compilador de monólogos, a um aplicador de aspas em série. Especialmente se só pode contar com palavras transmitidas por telefone ou por e-mail. Fulano disse, sicrano afirmou. A vida é bem melhor do que isso. O dito é, muitas vezes, tão importante quanto o não-dito, o que o entrevistado deixa de dizer, o que omite. É preciso calar para ser capaz de escutar o silêncio.” (Eliane Brum)

Na contramão da tendência de mercantilização da notícia, é possível encontrar na imprensa brasileira repórteres com sensibilidade e talento linguístico, que conseguem enxergar as peculiaridades dos fatos cotidianos e ser efetivamente poetas do dia a dia. São profissionais que se permitem refletir sobre o fato e conseguem provocar reflexões no leitor contando histórias. Conhecedores da técnica jornalística, não prendem os escritos a uma forma, ultrapassando o comum. Ao encontrar fatos que possam se transformar em informação – requisito básico para que se considere um fato publicável nas páginas dos jornais –, mergulham na pauta. Afinal, é preciso “dar ao público a sensação de que a vida não é apenas uma sequência de fatos ocasionais” (VICCHIATTI, 2005, p.57), ser um “jornalista pluralista, (...) enxergar algo mais, além daquilo que a realidade apresenta em seu cotidiano” (p.51). Isso porque “o jornalista que só pensa na precisão do dado, esquece a necessidade de imprecisão

7 Anunciada em agosto de 2006 durante a Festa Literária Internacional de Parati (Flip) pelo documentarista João

Moreira Salles e pelo editor da Companhia das Letras Luiz Schwarcz, a piauí (o nome é totalmente grafado em letras minúsculas) é uma revista de grandes reportagens, que preza por boas histórias.

da forma. Assim, informa menos por querer comunicar mais” (SILVA, 2002, p.50). Observamos isso na escrita dos cinco repórteres que produzem os cadernos de Fortaleza –

Sentidos da cidade.

Na definição de Carlos Alberto Vicchiatti (2005), vivemos hoje uma época de jornalismo mecânico. Para o autor, uma maneira de romper com essa prática é unir elementos estéticos ao escrito jornalístico. É preciso olhar – e viver – o mundo de outra maneira, traduzindo isso em palavras para os leitores, “levar a sério” o ideal do repórter como um escritor e modificar o cotidiano profissional, no qual “o corpo-a-corpo com a realidade estaria sendo substituído por uma relação puramente instrumental com a informação” (COSTA, 2005, p.188).

A história da imprensa no Brasil demonstra que o encontro das linguagens é possível. O jornalismo nasce no País com auxílio da “mão-de-obra” da literatura. A chegada da primeira tipografia acontece em 1808, com a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro (cf. LUCA; MARTINS, 2006). No começo do século XIX, quando são impressos por aqui os primeiros livros e jornais, escritores passam a visualizar nas nascentes redações uma alternativa para sobreviver através da palavra, ganhando visibilidade e, claro, um “salário” no fim do mês. “Poder-se-ia dizer que o escritor procura o jornal para ganhar a vida, empregando para isso sua virtuosidade em utilizar certo instrumento de trabalho – a língua – que se faz imprescindível na orquestra da Redação” (JOBIM, 1992, p.42). Segundo Felipe Pena (2006), nesse período “escritores de prestígio tomaram conta dos jornais e descobriram a força do novo espaço público. Não apenas comandando as redações, mas, principalmente, determinando a linguagem e o conteúdo dos jornais” (p.28).

Ronaldo Salgado (2006), em pesquisa sobre a escrita híbrida do repórter/escritor Paulo Barreto, o João do Rio, afirma que “a presença e o trabalho dos escritores nas redações de jornais têm um incremento considerável na virada do século [XIX para o XX], estendendo-se significativamente até o final dos anos 20 do século passado” (p.53). Os escritores, como o próprio João do Rio, além de José de Alencar, Machado de Assis e tantos outros8, eram editores, redatores, repórteres – atividades reconhecidas como jornalísticas –, além de autores

8 Sobre o tema, recomenda-se a leitura de Pena de aluguel – Escritores jornalistas no Brasil 1904 – 2004, de

Cristiane Costa (Companhia das Letras, 2005). O livro esmiuça a relação que se estabelece entre jornalismo e literatura na imprensa desde o começo do século XX. Na obra, a jornalista reconta a história de pesquisa realizada em 1904 pelo escritor e jornalista João do Rio com os principais intelectuais da época, como José de Alencar, Machado de Assis e Olavo Bilac. João do Rio questionava a influência dos gêneros e o que a aproximação entre as duas escritas representava para a arte literária.

de folhetins e crônicas, gêneros híbridos de jornalismo e literatura. “Publicar narrativas literárias em jornais proporcionava um significativo aumento nas vendas e possibilitava uma diminuição nos preços, o que aumentava o número de leitores e assim por diante” (PENA, 2006, p.29).

Os gêneros crônica e folhetim são, inclusive, o princípio de uma história de interseção das linguagens jornalística e literária. “De acordo com Massaud Moisés, a brevidade, a subjetividade, a ambiguidade e a efemeridade são as principais características do gênero [crônica], às quais se podem agregar outros atributos essenciais, tais como: o diálogo, o estilo entre o coloquial e o literário, a temática do quotidiano etc” (SALGADO, 2006, p.135). Já os folhetins, “narrativas romanescas cujos capítulos eram publicados nos periódicos e atraíam um grande número de leitores” (PENA, 2006, p.40), permitiam o acesso deles à literatura ficcional. Cinco minutos, de Machado de Assis, por exemplo, foi publicado, primeiramente, em folhetim, no Diário do Rio de Janeiro, onde o escritor era editor-chefe. A publicação de literatura na imprensa cumpria com os objetivos do escritor e da empresa: “os jornais precisavam vender e os autores queriam ser lidos” (PENA, 2006, p.32).

Na década de 1950, com as transformações estilísticas e gráficas dos jornais, a mudança já está consolidada. A objetividade e a concisão substituem as belas narrativas. A preocupação com a novidade e os fait divers assume a função principal na pauta. A Literatura é apenas um suplemento (PENA, 2006, p.40).

Na história do jornalismo mundial, o chamado New Journalism (Novo Jornalismo) é exemplo da proximidade entre jornalismo e literatura (cf. WOLFE, 2005). Surgida nos Estados Unidos na década de 1960, a linguagem híbrida representou uma ruptura com os formatos engessados até então praticados na imprensa americana. Escritores como Tom Wolfe, Trumam Capote, Norman Mailer e Gay Talese consagraram-se propondo uma nova maneira de fazer jornalismo, uma ruptura numa época de efervecência social.

O mundo ainda vivia uma espécie de “ressaca” da Segunda Guerra Mundial, que de 1939 a 1945 destroçou diversos países e matou milhões de pessoas. Naquele cenário, a contracultura tomava força. Questionava-se muito: as instituições, a organização e a lógica das sociedades, a maneira como se governava, o jeito de pensar. Os hippies, coloridos e entorpecidos, pregavam paz, amor livre e sexo – também – livre. Retorno ao primitivismo. Culto à espiritualidade e ao misticismo, muitas vezes personificado em gurus orientais. Redescoberta dos escritores beatniks – Allan

Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs – e sua literatura que, na década anterior, fugia de padrões formais e abordava temas controversos. Isso tudo ecoou no jornalismo (NECCHI, 2007, p.6).

O Novo Jornalismo é uma fase do jornalismo que “respingou” na imprensa brasileira com o surgimento da revista Realidade. Nascida em 1966, a publicação contava histórias do Brasil e de brasileiros em reportagens extensas e aprofundadas, reunindo todos os elementos daquilo que aqui chamamos de jornalismo narrativo, sendo colocados em prática por repórteres que se tornaram ícones do jornalismo brasileiro, como José Hamilton Ribeiro. Cumpria-se aquilo que Alceu Amoroso Lima (1960) chama de “tríplice sinal do bom jornalismo”: a ênfase estilística, a informação social e a formação moral (p.62).

Desde o fenômeno Realidade, pouco se praticou jornalismo literário no Brasil – pelo menos na grande imprensa. Os dirigentes dos jornais costumam alegar equipes reduzidas, falta de espaço para textos caudalosos, orçamentos minguados a impedir que um repórter permaneça semanas ou meses investigando uma história e falta de interesse dos leitores por textos longos. Para este último argumento, cabe um comentário: é impressionante como se propaga a tese de que o leitor brasileiro não quer textos de maior fôlego. O poder generalizante da afirmação risca das possibilidades uma gama de pessoas que querem e apreciam narrativas mais elaboradas (NECCHI, 2007, p.8).

Atualmente, raros são os escritores que permanecem nas redações. Normalmente, cronistas, contistas e romancistas são colaboradores das publicações, escrevendo em espaços reservados para as narrativas literárias, como as colunas, ou em suplementos culturais e literários. No cotidiano das redações, permanecem os jornalistas, profissionais formados – ou não – e conhecedores da dinâmica produtiva do jornalismo.

Essa dinâmica, inclusive, parece ser, para a maioria dos autores estudados nesta pesquisa, o fator determinante para o distanciamento percebido entre as linguagens jornalística e literária e a ausência de escritores nas redações. Para Vicchiatti (2005),

a atividade jornalística, marcada por forte ritmo de periodicidade, repetida a intervalos relativamente curtos, obriga os veículos de imprensa a recortarem o tempo em frações limitadas, a debruçarem-se sobre o hoje, tentando explicar acontecimentos cuja origem, em muitos casos, desenhou-se num tempo distante e cuja consequência prosseguirá além do horizonte temporal imediato (p.25).

Apesar desse contexto no qual está inserida a imprensa, alguns jornais permitem aos repórteres a quebra da rotina produtiva e a utilização de um “olhar narrativizante” (cf. LEAL, 2006) na construção textual. Em textos híbridos, os jornais abrem espaço para a subjetividade, permitindo que repórter e leitor caminhem juntos pela narrativa, ora jornalística, ora literária. Fatos reais ganham toques poéticos. Foge-se da fôrma; supera-se a pressão do tempo e do espaço; e produzem-se textos que são obras de arte, na ideia de Antonio Olinto (1960). Assim como o autor, acreditamos que “o importante é que o repórter conquiste uma linguagem pessoal e consiga libertar-se da imitação, porque a obra de arte – seja conto, romance ou reportagem – tem de ser uma mensagem individual, extraída de uma realidade comum a todos” (p.104). É preciso ser um repórter que vai além. Acreditamos que elementos da escrita literária são capazes de proporcionar tal superação.