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CÂNCER: UM INIMIGO BEM ARTICULADO

1.3 Os reflexos sociais

As limitações impostas por qualquer doença crônica afetam não somente o seu portador, mas também todo o seu ciclo de convivência. Elas começam a se manifestar a partir do descobrimento da doença e ao longo do tratamento, passando pelo impacto da descoberta até a escolha do cuidador. Nesse processo, estão inseridas situações que transcendem o aspecto meramente biológico da doença. Demandas sociais e emocionais farão parte do cotidiano do doente e dos envolvidos com o seu cuidado.

A partir do diagnóstico de câncer, abre-se o caminho para um tratamento incerto, doloroso, prolongado, que marca o corpo, choca a família, muitas vezes afasta os amigos e fragiliza os planos de futuro, notadamente, quando a possibilidade da morte se torna

iminente. Daí, surge uma corrida contra o tempo e a favor de tudo o que é possível ser feito para o restabelecimento do doente. Tratamentos isolados, como a acupuntura, a homeopatia, a psicologia, a fitoterapia e a nutrição são buscados pelos doentes, como uma possibilidade de cura, agudizando o desespero e a ansiedade, dele e de sua família. Do paciente, porque quer ver resultados concretos e imediatos; e da família, porque se utiliza de diversos meios para adquirir os recursos de financiamento para os mesmos.

E não apenas isso. O câncer traz outras mudanças, como tumorações deformantes, em locais visíveis, e o uso de ostomias, a alopecia (queda de cabelo), queimaduras (efeito colateral da Rt), emagrecimento descontrolado, que, entre outros aspectos próprios da doença, geram um distanciamento das pessoas dos portadores de câncer, devido à falta de conhecimento e à rejeição da doença. Marcas deixadas pela doença geram constrangimentos em seu portador que, por vezes, se sente – ou mesmo se coloca – isolado das relações familiares e sociais, devido à sua baixa auto-estima, ao medo do preconceito e da zombaria, ou mesmo ao receio de contaminação do próximo (muitas pessoas ainda vêem o câncer como uma doença contagiosa).

Esse afastamento não incidirá, apenas, sobre a dinâmica de vida do indivíduo acometido de câncer, mas também do seu círculo de convivência. Geralmente, filhos e netos não se sentem aptos e nem se dispõem como cuidadores, passando tal tarefa para aquele indivíduo que possui “tempo livre”. E uma grande dúvida nasce: de quem é a real responsabilidade pelos cuidados com o paciente: a família ou o Estado?25

A família, aqui, é compreendida como grupo de pessoas que co-habitam sob o mesmo teto. Dessa forma, podemos identificar dois grupos: o que está junto do paciente, vivenciando concretamente todo o processo de desgaste promovido pela doença; e aquele,

cujos membros são familiares consangüíneos, mas moram em suas respectivas casas, e que, após saírem da presença do paciente, deixam de vivenciar concretamente a doença.

A forma como cada paciente reage ao diagnóstico de câncer depende de diversos fatores: do seu momento de vida, de suas experiências anteriores, das informações que recebeu, no convívio social, e do ambiente familiar e cultural em que nasceu e cresceu. É comum, nos pacientes que recebem esse diagnóstico, surgirem diversos sentimentos de difícil elaboração, como ansiedade, raiva, medo, angústia, culpa e depressão, os quais são permeados pela incerteza e pela insegurança, em relação ao futuro.

A família, também, vivencia esse momento de choque, de incerteza e impotência. As famílias que já eram unidas renovam seus valores e tendem a unir-se, para atender às necessidades imediatas, para elaborar a aceitação da doença e enfrentar as dúvidas quanto ao futuro incerto. Já as famílias mais vulneráveis costumam se fragmentar. As preocupações cotidianas com a saúde acarretam uma mistura de impotência e culpa. Aparecem, aí, as dúvidas que atribuem a doença a descuidos e transgressões (ROMANO, 1999).

Essas tensões afetam o sistema familiar e, também, são impulsionadas por fatores mais significativos, como o contexto social da doença, o histórico de perdas anteriores, a natureza da doença, a posição e a função do paciente na estrutura familiar (SOARES, 2006a).

Somado a esses fenômenos, há a questão da morte. Com freqüência, os pacientes, em estado terminal, expressam que não têm tanto medo de morrer, mas temem o sofrimento relacionado ao processo da morte. Isso ocorre, especialmente, quando essa experiência é marcada por dependência, mutilações, impotência e dores, que tão constantemente

acompanham a doença terminal, ameaçando a integridade pessoal e cortando a perspectiva de um futuro (ROMANO, 1999).

Diante disso, entendemos que percorrer os caminhos de uma doença “incurável”, com piora progressiva até a morte, nos cânones de uma sociedade que valoriza o vigor e a beleza, a produção e o consumo, exige do ser humano formas de superações sucessivas, difíceis de alcançar, na sua condição de doente, dependente, carente, diferente, ele mesmo tornado ente supremo de um saber sobre a vida que se acaba. A chegada da morte, com implicações gestadas pelo medo, pela recusa, pelos sentimentos de fracasso, que ameaçam e culpam, deve ser considerada como a solenidade final de uma existência.

No bojo dessa questão, a família, além de todos esses aspectos, tem que lidar com uma nova situação de vida e relacionamento familiar. Nas classes menos favorecidas economicamente, aquele que não trabalhava se submete a condições insalubres, informais e de insegurança, em algum trabalho, para complementar a renda familiar, que está sendo consumida pelo alto custo do tratamento (principalmente, nos gastos com medicamentos e exames) (SOARES, 2006b). Muitos desses membros ainda são crianças e (ou) adolescentes que, em alguns casos, abandonam os estudos ou se dividem entre a escola e o trabalho. Os aposentados retornam à ativa, e o doente, a cada dia que se passa, fica mais sozinho e dependente de favores alheios; e, quando se encontra com os seus familiares, no fim do dia, absorve o estresse da rotina de cada um, sentindo-se um peso para a família.

Nas classes mais ricas, os pacientes e seus familiares submetem-se a uma rotina turbulenta, composta por viagens, realização de uma bateria de exames diários, contratação de profissionais especializados para os cuidados com o paciente, participação em experiências com novos tipos de medicamentos, dentre outros. Esse segmento possui a facilidade de acesso aos tratamentos, devido às possibilidades de financiá-los. Contudo, a

reação dos portadores de neoplasia supera as desigualdades de classe e os une no espectro da dor, da mutilação e da desmotivação, na luta pela vida.

Contudo, os impactos da doença não atingem somente os grupos ligados aos portadores, mas toda a sociedade. Um dos impactos visíveis é no campo do trabalho. A redução do potencial de trabalho humano gera custos relacionados ao déficit de produção, decorrente do tempo potencial de trabalho perdido por causa da morbidade, da incapacitação e da morte provocadas por essa doença. Os impactos gerados na economia do país, oriundos dessa perda na força de trabalho e refletidos no quantitativo na população ativa, são muito expressivos, pois representam milhões de anos de vida perdidos.

Outro impacto, no campo do trabalho, se refere ao próprio trabalhador, que depende, exclusivamente, da venda de sua força de trabalho para a sua sobrevivência, e, por isso, a doença se transforma em um fator de exclusão que o incomoda duplamente, pois afeta não apenas a sua saúde, mas também a sua capacidade produtiva. Dessa forma, implicações socioeconômicas afetam a percepção da doença, e o doente, muitas vezes, abusa dos seus limites para continuar trabalhando, como meio de obter recursos para restabelecer a sua saúde e zelar pelos seus familiares, uma vez que não pode contar com um sistema de proteção social que lhe garanta a saída, ou mesmo a licença do trabalho, sem ônus para o seu salário.

Esses são alguns dos exemplos, entre milhares de outros, os quais estão na mídia e expressos nos relatos e nas percepções dos pacientes, de seus familiares e círculo de convivência e dos profissionais da área da saúde inseridos no cotidiano do tratamento oncológico. Fatos que caracterizam um processo de desequilíbrio da família, aguçado pela deficiente infra-estrutura de políticas sociais, implantadas pelo Estado, as quais seguem, fielmente, o receituário neoliberal de enxugamento das políticas públicas.

Esse receituário transforma o Estado Provedor em Estado Mínimo, que fortalece o mercado e restringe as ações públicas do Estado para os ditos “miseráveis”, criando um forte “darwinismo social”, no qual a inserção social dos indivíduos se define pelo mercado, que visa o acúmulo de capital e proporciona a expulsão dos “menos aperfeiçoados”. Em outras palavras, “sobrevive o mais forte”. Assim, em relação à saúde, prevalece o modelo hospitalocêntrico, que associa o processo de adoecer à morte. Para a população usuária do sistema público de saúde brasileiro, resta o sonho de receber um atendimento eficiente e eficaz, de forma universal, conforme garantido pela Constituição Federal.

A união desses fatores biológicos, associado aos econômicos, sociais e políticos, tornam o câncer um "inimigo bem articulado" e um fortalecedor da “questão social”26, no país.

CAPÍTULO 2

“No lugar da velha sociedade burguesa,