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Os sacramentos: ritos de passagem e ritos de inclusão

“[...] os ritos de passagem desempenham um papel importante na vida do homem religioso [...]. Há também ritos de passagem no nascimento, no casamento e na morte, e pode-se dizer que, em cada um desses casos, se trata sempre de uma iniciação”. (Mircea Eliade, 1996: 150).

Além de bens simbólicos, os sacramentos são ritos sagrados. Na definição do Código de Direito Canônico, eles se “constituem sinais e meios pelos quais se exprime e se robustece a fé, se presta culto a Deus e se realiza a santificação dos homens” (CIC, 1987: 381, cân. 840). De acordo com tal definição, os mesmos desempenham um papel hegemônico no fortalecimento do poder simbólico da religião como “instrumento de dominação” (Bourdieu, 1998: 16) e, “por isso, muito concorrem para criar, fortalecer e manifestar a comunhão eclesial” (CIC, 1987: 381, cân. 840). Tal comunhão significa que os sacramentos constituem a “espinha dorsal” da Igreja Católica, instituindo uma unidade na diversidade cultural onde a mesma se encontra. Afirma o CIC;

“Já que os sacramentos são os mesmos para toda Igreja e pertencem ao depósito divino, compete unicamente à suprema autoridade da Igreja aprovar ou definir os requisitos para sua validade, e cabe a ela ou a outra autoridade competente, de acordo com o cân. 838, §§ 3 e 4, determinar o que se refere à sua celebração, administração e recepção lícita, e à ordem a ser observada em sua celebração” (CIC, 1987: 383, cân. 840).

Nisso se respalda o poder simbólico da Igreja no que concerne ao domínio e controle de tais bens simbólicos. Enquanto ritos ou sinais sagrados, os sacramentos indicam uma ordem estabelecida na Igreja que, por sua vez, está ligada à idéia de harmonia e unidade que estrutura o comportamento dos fiéis no seu interior. De acordo com Aldo Natale Terrin, “a idéia de ordem incluída no conceito de rito, de fato, é extremamente importante e se torna significativa num âmbito semântico preciso, isto é, lá onde o rito se torna o ‘lugar’ da ordem de classificação” (Terrin, 2004: 19). Para Terrin, o rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá o sentido do que é importante e do que é secundário. Na Igreja Católica, os ritos sacramentais permitem que os fiéis vivam numa Igreja organizada, oferecendo-lhes segurança e permitindo que se sintam em casa quando estão nos seus espaços sagrados. Dessa forma, os ritos sacramentais são ritos de passagem que contribuem não apenas para a inclusão eclesial, mas também social.

Quando usamos aqui o conceito de ritos para os sacramentos, nós o fazemos em referência a uma ação realizada em determinado tempo e lugar. O tempo corresponde à fase da vida em que são empregados os diversos sacramentos e o espaço corresponde à esfera da igreja, os templos, nos seus diversificados desdobramentos e nomenclaturas. Os sacramentos, portanto, tratam de ações rituais realizadas no contexto da Religião Católica que as diferenciam das ações da vida cotidiana dos fiéis. Além de uma ação diferenciada, ela é praticada num espaço diferenciado, que, por estar revestido pela dimensão do sagrado, é, por excelência, um espaço social, um espaço de representação social.

Segundo Reginaldo Prandi, “em outros tempos a Igreja Católica foi – e ainda é em muitos lugares, sobretudo nas cidades menores – um lugar público por excelência, onde se vai para ser visto e para ver os demais, onde cada um se apresenta, se faz público, onde se vai com a ‘roupa de Domingo’ ”(Prandi, 1996: 267). Esta constatação de Prandi confirma a igreja como espaço de representação social e, por conseguinte, um espaço que oferece oportunidade de visibilidade e de inclusão. Essa modalidade de inclusão ocorre através dos ritos sacramentais que exercem um poder simbólico na vida do indivíduo e da comunidade da qual ele passa a se sentir parte, incorporando-se naturalmente. Sem entrar no mérito teológico dos mesmos, os ritos sacramentais são importantes do ponto de vista social, porque são ritos de iniciação ou de passagem que objetivam a inclusão, seja no espaço sagrado da comunidade ou na sociedade como um todo. À vista disso, a religião católica, através dos sacramentos, caracterizados como bens simbólicos, ritos e sinais, inserem os fiéis na comunidade. Portanto, receber os sacramentos é critério fundamental para uma pessoa ser considerada membro efetivo da religião e da comunidade, principalmente se esse sacramento se tratar do batismo. Sem os mesmos (exceto quando se trata do sacramento da Ordem ou da Unção dos Enfermos), a pessoa pode freqüentar os templos, mas está em situação irregular, tanto na religião quanto na Igreja ou comunidade, estando, à vista disso, marginalizada.

Os sacramentos na religião católica são sete11 (Batismo; Penitência ou Confissão; Eucaristia; Crisma ou Confirmação; Matrimônio; Ordem e Unção dos enfermos), e esses têm entre si, estreito vínculo, formando uma teia de significados simbólicos que perfazem o processo de inclusão dos membros na comunidade religiosa. Funcionam como “ritos de passagem”, tendo finalidades similares a outros ritos de passagem da sociedade, ou seja, sua função social é a

11 Este número tem um significado simbólico de plenitude. Uma vez recebido os sacramentos as pessoas terrão plenos direitos e deveres com a Igreja e comunidade na qual professa sua fé.

inclusão. Arnold Van Gennep (1978: 58) confirma que “os ritos de passagem desempenham um papel importante na vida do homem religioso” e Mircea Eliade (1996: 150) diz que os ritos de passagem mais marcantes da vida social são o nascimento, o casamento e a morte. Assentimos também que os sacramentos desempenham uma função relevante na vida dos católicos; Batismo, Matrimônio e Unção dos Enfermos são ritos de passagem marcantes na vida religiosa e na vida social que dela emana. Assim sendo, o paralelismo que faremos, ao analisar os sacramentos com alguns ritos de passagem da sociedade em geral, tem a finalidade de comprovar a tese de que a Religião Católica, por meio dos ritos sacramentais, exerce um domínio de inclusão ou de exclusão tão eficaz quanto outros mecanismos sociais. Nesta parte do trabalho, evidenciaremos mais o aspecto da inclusão derivada desse processo dialético que permeia os instrumentos do poder simbólico da Igreja que são os sacramentos.

De acordo com o que já trabalhamos anteriormente, os espaços geográficos que escolhemos para colher os dados que demonstram a inclusão a partir dos sacramentos foram bem distintos. O primeiro, como já citamos, localiza-se na região Sé da Arquidiocese de São Paulo, nas paróquias do Setor Pinheiros, local das camadas média e média alta. O segundo, também já destacado, é o Setor Santo Antônio, na Diocese de Osasco, região metropolitana de São Paulo, entre as camadas mais desfavorecidas que formam as comunidades da periferia, como as do Jardim São Pedro e Jardim Flor de Primavera. Um dos dados que ajudam a comprovar nestas áreas a tese da inclusão a partir dos sacramentos se expressa pela manifestação do desejo da pessoa em buscá-los nos locais que tenham certa visibilidade social, como, por exemplo, as igrejas que estejam situadas nos bairros mais centrais, das camadas sociais mais elevadas, o que ajuda a reforçar a cerimônia ou rito sacramental como um ato socialmente relevante que oculta os indícios de miserabilidade social a que o indivíduo está sujeito, ao mesmo tempo em que o projeta em um espaço melhor que o seu. Os dados estatísticos dos quatro principais sacramentos ministrados na região Sé da Arquidiocese de São Paulo durante o ano de 2003 confirmam tais afirmações, como podemos conferir na tabela abaixo.

Tabela 31:

Dados estatísticos de alguns sacramentos realizados nos Setores da Região Episcopal Sé de São Paulo - Ano 2003.

Setores Batizados Casamentos 1º Eucaristia Crismas

Aclimação 693 89 287 154 Bom Retiro 522 330 144 92 Brás 398 35 210 103 Catedral 558 43 150 105 Cerqueira César 603 193 562 151 Jardins 2122 980 687 275 Paraíso 584 160 300 123 Pari* 446 141 225 59 Perdizes 1496 592 476 173 Pinheiros 807 286 438 103 Santa Cecília 1244 399 324 255 TOTAL 9473 3248 3803 1593

Fonte: Informativo da Região Episcopal Sé – Arquidiocese de São Paulo, Boletim Testemunho, Ano VII, nº 63, Junho de 2004, p. 4. *A partir do ano de 2005 o Setor Pari foi anexado ao setor Bom Retiro.

O setor Jardins, que compreende as paróquias do Divino Salvador, Nossa Senhora do Brasil, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Santa Tereza de Jesus, São Dimas, São Gabriel Arcanjo e São José são todas paróquias de freqüência de camadas mais elevadas. Elas tiveram durante o ano de 2003, como podemos conferir no quadro, uma soma de 2.122 batizados, número relativamente alto para bairros em que as famílias quase não têm filhos ou quando têm, dificilmente ultrapassam o número de dois, segundo dados do último censo. Se estes são bairros com baixo índice de natalidade, como podem as paróquias deste setor ter realizado o maior número de batizados? Encontramos a resposta quando buscamos nos livros de registro a origem das crianças que são batizadas nessas paróquias. A maioria vem de outras regiões e municípios periféricos, como Campo Limpo, Pirituba, Taboão da Serra, Carapicuíba, Osasco entre outras. O mesmo se repete com os demais sacramentos, nomeadamente o matrimônio. Grande parte dos casamentos realizados nessas paróquias é de pessoas oriundas das cidades da região metropolitana. Mais uma vez as paróquias do Setor Jardins lideraram no número de casamentos realizados durante o ano analisado. Foram 980 casamentos realizados neste setor em 2003 enquanto que no Setor Brás, de maioria operária e trabalhadores informais, foram realizados apenas 35 casamentos neste mesmo ano.

Outros setores da Arquidiocese em que as paróquias se destacam em número de sacramentos realizados são Perdizes e Santa Cecília. Ambos são bairros em que residem camadas mais favorecidas. O setor Perdizes aparece em segundo lugar, com 1.496 batizados, 592 casamentos, 476 primeiras eucaristias e 173 pessoas crismadas. Em terceiro, vem Santa

Cecília, com 1.244 batizados, 399 casamentos, 324 primeiras eucaristia e 255 crismas, número que supera o Setor anterior. Em quarto lugar, está o Setor Pinheiros, com 807 batizados, 286 casamentos, 438 primeiras eucaristias e 103 crismas. De todos esses, a grande maioria não reside nas paróquias em que os sacramentos foram realizados, mas sim nas paróquias da periferia ou municípios circunvizinhos, com predominância de catecúmenos e nubentes de paróquias da diocese de Osasco.

Dessa forma, a investigação dos sacramentos como ritos de passagem, visibilidade e de inclusão social é um mecanismo eficaz que contribui para comprovar a tese do poder simbólico que a religião exerce na vida das pessoas no que se refere à sua aceitação na sociedade. É isso que buscamos fazer a seguir, ao analisar, a partir do prisma das Ciências Sociais, os sete sacramentos da Igreja Católica. Começaremos com o principal e mais elementar de todos os sacramentos: o batismo.

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