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A Religião Católica e os bens simbólicos Função social dos ritos e

“Função é a contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total da qual é parte. A função de determinado costume social é a contribuição que este oferece à vida social total como o funcionamento do sistema social total”. (Radcliffe-Brown, 1973: 224).

De acordo com Pierre Bourdieu, bens simbólicos são aqueles tipos de bens que, a princípio, não deveriam ser comercializados por se tratar de algo com importância abstrata, como, por exemplo, os objetos de valor sentimental e os bens culturais, nos quais se insere a religião. Entre esses bens simbólicos, com importância abstrata, estão os sacramentos. Contudo, na concepção de Bourdieu (1992: 102), os bens simbólicos se constituem realidades de dupla face, ou seja, são ao mesmo tempo significações e mercadorias. Mercadorias porque a relação de troca no campo religioso fez deles um comércio semelhante a outro qualquer (Bourdieu, 2004b: 20), criando, dessa forma, um comércio de bens com os quais não se deveria fazer

comércio (Bourdieu, 2004b: 19) por se tratar de algo simbólico. Significações porque, embora negociados através das relações de trocas simbólicas, não se esvaziam de seu significado metafórico e emblemático, agindo, portanto, com características comerciais como se não agissem, o que, na concepção de Bourdieu (2004b: 19), é classificado como “denegações práticas” das relações econômicas convencionais.

Essa categoria de relação que ocorre no campo religioso com os sacramentos só é possível porque, além da mesma funcionar por representações, ela só acontece porque há negação de que de fato ela ocorra como uma relação comercial, ou seja, que envolva o aspecto econômico, o que é confirmado por Bourdieu ao analisar as economias de bens simbólicos baseadas na negação do econômico.

“O desafio desferido pelas economias fundadas na denegação do ‘econômico’ a toda a espécie de economicismo reside precisamente no fato de que elas só funcionam e, na prática – não somente nas representações -, só podem funcionar mediante um recalcamento constante e coletivo do interesse propriamente ‘econômico’ e da verdade das práticas desvendadas pela análise ‘econômica’” (Bourdieu, 2004b: 19).

Bourdieu reporta sua análise ao comércio das obras de arte. Adequamos sua teoria para analisar as relações de troca que ocorrem no catolicismo, especialmente com os sacramentos, porque são tratados por muitos como um produto, cuja finalidade vai além da inclusão religiosa no referido espaço da comunidade a que o indivíduo pertence, mas também como uma carapaça simbólica protetora de diversos males, tendo, desse modo, um valor inestimável. Quanto à relação de comércio, embora haja entre o fiel e a Instituição Católica dissimulação dos aspectos mercantis desta práxis, ela não está isenta de tal perfil, uma vez que ambas as partes contribuem para que suceda essa relação de troca com os bens simbólicos. Conforme Bourdieu (1997: 157), os bens simbólicos possuem alocabilidade espontânea que é decorrente das dicotomias existentes na essência dos mesmos, por exemplo, a dimensão material-espiritual, que evidencia, dessa forma, a complexidade da análise no campo científico dessa relação mercante, uma vez que as fronteiras entre o material e o espiritual se confundem por se tratarem de fenômenos que ocorrem no universo social da religião. Tais dicotomias desafiam o resgate dos elementos básicos da economia de bens simbólicos que acontece na Igreja e, à vista disso, somente uma análise dos sacramentos, em todos os seus

desdobramentos, pode oferecer um cabedal teórico para a compreensão dos mesmos como ritos que concorrem para a inclusão nos espaços sociais da Religião Católica. Não vamos adentrar os exemplos da referida economia que ocorre nos espaços sagrados, como, por exemplo, a troca de dádivas, as promessas, os ex-votos, etc., porque isso demandaria tempo e desfocaríamos nosso objeto de pesquisa que são os sacramentos na respectiva religião que envolve, além do corpo e do espírito, preceitos racionais e emocionais, como sugere Franz Boas (2004a: 314).

A religião, segundo Boas, é definida “como aquele grupo de conceitos e atos que surge da relação do indivíduo com o mundo exterior [...] e cuja forma depende da imaginação e da emoção” (Boas, 2004a: 314). Esses conceitos que se originam desta relação do indivíduo com seu mundo exterior formam, segundo Boas, os princípios de qualquer religião, que podem estar baseados em preceitos racionais ou emocionais, sem que sejam, necessariamente, distinguidos pelo agente. Na conjuntura dos sacramentos, classificados aqui como bens simbólicos, trata-se, portanto, de atos religiosos que podem estar movidos por considerações racionais ou estar determinados pela imaginação e a emoção. De igual modo, a partir de um modelo sugerido por Boas, comparamos que, quando um pai (ou uma mãe) procura a igreja para batizar seu filho, “seus atos podem sugerir que ele está seguindo racionalmente opiniões baseadas em grande parte no raciocínio, embora afetadas, na sua origem, por emoções como o medo e o amor” (Boas, 2004a: 313). Mesmo sendo neste caso, uma busca por um bem simbólico (religioso), essa ação, segundo Boas, pode ser executada sem razão consciente, apenas pelo fato de ser requerida pelo costume, por ser um ato tradicional no seu grupo, comunidade ou sociedade, portanto, um ato social que o coloca no nível dos demais membros da comunidade.

Sempre que discorremos acerca da religião católica, com seus bens simbólicos como os sacramentos, que são susceptíveis de propiciar um processo de inclusão social, não podemos menosprezar o fato de que a mesma ainda é predominante nessa sociedade (73,8%) e que, de certa forma, ser católico faz parte da cultura de uma significativa parcela do povo brasileiro. Portanto, receber os sacramentos, especialmente o sacramento do batismo, faz parte do ethos e da visão de mundo dos católicos que está arraigada no imaginário religioso, consistindo, dessa maneira, em algo cultural. O conceito de cultura ao qual nos reportamos está de acordo com o conceito empregado por Clifford Geertz que “denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas

expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (Geertz, 1989: 66) e, neste caso específico, em relação à religião católica, com seus sete sacramentos, que são ritos repletos de símbolos e de significados porque o homem é, por si mesmo, um “animal simbolizante” (Geertz, 1989: 102). Como sugere Durkheim (1989: 287), a Religião é compreendida, nessa perspectiva, como capacidade suprema de simbolização do ser humano, ou ainda, como “expressão máxima dessa capacidade de simbolizar que distingue os seres humanos; e ela é diferenciada somente por grau, não por natureza, em outros processos de simbolização” (Gallino, 2005: 548). Quando nos referimos aos sacramentos como bens simbólicos, aplicamos tal conceito porque o mesmo “serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o significado do símbolo” (Geertz, 1989: 68). Contudo, os sacramentos, concebidos como ritos que concentram uma gama de símbolos que nos autorizam a classificá- los como bens simbólicos, uma vez que significam para o fiel, bens concedidos no decurso de cerimônias litúrgicas compreendidas como sagradas, configuram-se, dessa forma, com um valor mercantil.

Embora pareça não existir, a princípio, essa relação de mercado, contudo, também se paga por eles, seja em moeda real, do mercado comum ou por intermédio de formas simbólicas de troca. Dessa maneira, ao objeto religioso passa a ser conferido pelas leis do mercado o status de mercadoria, na medida em que tem um preço para batizar, casar, para as intenções de missa, etc. É o que Bourdieu chama de “comércio das coisas que não se faz comércio” (Bourdieu, 2004b: 19), em que são formados consumidores, bem como produtores destes mesmos bens simbólicos. Os consumidores são os fiéis católicos que, por razões diversas, buscam os sacramentos e por isso carecem passar por um processo de preparação que visa incutir as significações dos mesmos como, princípios, validade, relevância, utilidade e méritos, entre outras. O produtor é a própria Igreja, na figura de seus representantes legais (padres e bispos), que transformam, assim, o comércio de bens religiosos em um comércio semelhante aos outros (Bourdieu, 2004b: 20). Há certa valia para ministrar os sacramentos sob a justificativa de custear as despesas concernentes aos mesmos.

Os bens simbólicos e os símbolos propriamente ditos estão de tal maneira amalgamados nos ritos dos sacramentos o que os torna de difícil distinção; é difícil distinguir quando, na religião de um modo geral, um ato é racional ou religioso. Segundo Franz Boas, “encontramos em toda parte essa falta de divisão nítida entre formas racionalistas e religiosas da atividade”

(Boas, 2004a, 313). Isso sucede não só na relação dos fiéis com os sacramentos, mas também com as relações que sobrevém no interior das famílias, derivadas destas relações originadas nos espaços sagrados dos templos que transcendem os atos de troca, como veremos mais adiante na relação de compadrio advinda da ocasião do batismo, crisma, casamento ou mesmo de situações parasacramentais. Bourdieu chamou esse tipo de transação com bens simbólicos de “economia da oferenda” (Bourdieu, 1997: 158), nas quais uma oferta, um presente, um mimo ou mesmo um gesto, remete à sua retribuição ou mesmo uma obrigação com a outra parte. A relação econômica com bens simbólicos cria, portanto, obrigações entre as partes envolvidas.

“A troca de dádivas pode se dar entre iguais, contribuindo para reforçar a ‘comunhão’, a solidariedade, através da comunicação que cria os laços sociais. Mas pode também dar-se entre agentes real ou virtualmente desiguais, como no potlatch que, a crer nas descrições dele feitas, institui relações de dominação simbólica duradouras” (Bourdieu, 1997: 167).

Dentre os símbolos mais evidentes, temos o exemplo da cruz que, de acordo com Geertz, pode ser “falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze, dedilhado quando pendurado numa corrente” (1989: 68) e que está, nestes diversos modos, presentes nos ritos sacramentais, com toda a sua força simbólica. Citamos também outros, dentre os tantos presentes nos sacramentos, como, por exemplo, a água (usada no batismo, para aspersão ou imersão do catecúmeno); o fogo (presente nas velas do batismo, como luz ou como chama, símbolo também do Espírito Santo no sacramento da confirmação); as cores litúrgicas (além do branco das vestes batismais, das vestimentas usadas no sacramento do matrimônio, o vermelho das celebrações de martírio ou das vestimentas dos cardeais, como símbolo de poder, ou o verde da esperança, ou ainda, o roxo ou preto dos ritos funerais, entre outras); os odores (exalados do incenso e dos santos óleos utilizados, não apenas nas cerimônias do Batismo e do Crisma, mas também nas cerimônias solenes e em determinadas bênçãos); os gestos (reverência, genuflexão, prostração, palmas, danças, etc.) e posturas (em pé, sentado, de joelhos, etc), os cantos (de louvor, aclamação, ação de graças, réquiem, etc) e todos os outros elementos que, envoltos nos rituais, são resignificados nos sacramentos, propiciando a introdução ou confirmação dos fiéis na respectiva religião. Todos, conforme Geertz, “são símbolos, ou pelo menos elementos simbólicos, pois são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes, julgamentos ou crenças” (Geertz, 1989: 68), que estão absorvidos nos ritos

sacramentais, conferindo-lhes valores que, por não serem palpáveis ou contabilizados em cifras, só podem ser expressos através de representações. Esses bens são conferidos aos fiéis mediante uma relação de troca que ocorre dentro ou fora do espaço sagrado. Tais vínculos são atribuídos através dos sacramentos e mantidos mediante a fidelidade aos mesmos, como um pacto, um compromisso do fiel com a igreja, instituição sagrada detentora de semelhantes bens simbólicos. Entretanto, isso faz parte da atividade cultural que envolve os agentes receptores dos sacramentos, isto é, uma atividade, segundo Geertz (1989: 68), “na qual o simbolismo forma o conteúdo positivo”, que, nos dizeres do mesmo, “são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como o casamento e tão observáveis como a agricultura”. Sendo públicos e observáveis, são também, de acordo com Durkheim (2003: 13), fatos sociais, porque não deixam de ser uma maneira de fazer, ou de agir que exerce no fiel uma coerção, além de possuir existência própria, independente de suas manifestações individuais. Isso tudo nem sempre são ações ou ritos desempenhados de forma compreendida, mas, muitas vezes, simplesmente por tradição. Segundo Franz Boas, “muitas ações são executadas sem razão consciente, apenas pelo fato de serem requeridas pelo costume” (Boas, 2004a: 313). É o que pode ocorrer com os sacramentos na religião católica quando se requer os mesmos apenas por tradição, simplesmente para não ser considerado diferente da maioria do seu meio social.

Podemos afirmar em sintonia com Geertz que, “se os símbolos são estratégias para englobar situações, então precisamos dar mais atenção a como as pessoas definem as situações e como fazem para chegar a termos com as mesmas” (Geertz, 1989: 102). Para a compreensão das referidas situações e das relações entre sacramentos e valores, passemos agora ao relato dos ritos sacramentais como crenças associadas ao bom êxito da vida social dos adeptos, bem como às diversas dimensões dos sacramentos vistas pelos fiéis como garantia de segurança. Para tanto, analisaremos as funções sociais dos ritos sacramentais e as cerimônias dos referidos sacramentos.

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