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Saúde

À análise do material empírico sobressaíram contradições entre as concepções e a organização do trabalho de vigilância, no nível local e no distrital, já que a forma como estão postas as práticas de saúde cria uma grande lacuna para a implementação da vigilância à saúde como compreendida pelos entrevistados.

O termo vigilância foi fortemente relacionado à prática mais presente nesse campo, que se refere às ações de vigilância epidemiológica. Este fato pode ser atribuído às raízes históricas da vigilância epidemiológica no Brasil, como retratado no capítulo introdutório, em que esta se centra na prevenção e no controle das doenças transmissíveis, além do controle e saneamento do meio ambiente (São Paulo 1998).

Por outro lado, a proposta de vigilância à saúde vem sendo discutida mais recentemente (desde a década de 90), permeando, principalmente, o campo teórico. Considera-se, como ponto importante, a dificuldade de se distinguir as proposições dentre os diferentes termos inscritos na literatura, a

exemplo da fala de uma gerente de UBS:

“É, até esse termo me incomoda, porque assim, pra você ver... vigilância à saúde, vigilância em saúde, vigilância da saúde... Por quê que não usam o mesmo... Ãh, por quê? né. Tem diferença? Não tem diferença? Aí eu já tentei (....) entender “ (GerB69).

A dificuldade em ultrapassar o horizonte teórico e alcançar o prático é expressa no depoimento:

“(...) eu, particularmente, eu entendo que a vigilância, no sentido amplo, como a gente gostaria de trabalhar... dificilmente, às vezes, o serviço consegue se organizar pra fazer isso” (GerB70).

De modo geral, o entendimento sobre o termo vigilância relacionou-se à instituição de medidas sobre o indivíduo e o meio ambiente, para o controle de doenças transmissíveis, conforme se colocam as bases da “vigilância epidemiológica clássica”. Esse tipo de prática está assentada na concepção de Vigilância Epidemiológica, inscrita na Lei nº 6.259, de 1975, que é definida como “conjunto de atividades que permite reunir a informação indispensável para conhecer em todo momento o comportamento ou história natural da doença, detectar ou prever qualquer mudança que possa ocorrer por alterações dos fatores condicionantes com o fim de recomendar oportunamente, sobre bases firmes, as medidas indicadas, eficientes, que levem à prevenção e ao controle da doença” (Barata 1992, p.63). É importante destacar que ainda que se coloque uma possibilidade de vislumbrar práticas que podem conduzir à noção “ampliada” de vigilância, a referência aos fatores condicionantes, assim como a idéia de ações pontuais, que levem ao controle específico do efeito “doença”, corrobora a concepção de vigilância epidemiológica.

Conforme lembra a autora, a referida Lei não se restringe ao controle de doenças transmissíveis, mesmo que o sistema de vigilância privilegie esse grupo de enfermidades. Entretanto, remete à concepção multicausal de

saúde-doença, tomando a História Natural da Doença, em que se considera a tríade: agente, hospedeiro e ambiente, em detrimento da determinação social do processo saúde-doença.

Os depoimentos denotam, portanto, compreensão que evidencia a prática proposta pelo próprio Sistema de Vigilância Epidemiológica, restringindo seu objeto ao evento como um resultado que se materializa na doença.

A denominada “Vigilância Ampliada” já incorpora outras dimensões do objeto, para além das doenças transmissíveis e agravos, como doenças não transmissíveis e situações específicas de saúde (gestação, amamentação, vacinação, controle de faltosos portadores de doenças crônicas transmissíveis ou não, exames alterados, dentre outros), sempre voltadas è esfera do indivíduo, ou da somatória de pessoas, ou conjuntos populacionais que não constituem um coletivo.

Vale destacar que essa interpretação parece integrar as ações de assistência e informação em saúde gerada nos serviços. Tal concepção, que representa o horizonte prático, vai de encontro à proposição teórica de Waldman (1993) sobre a Vigilância em Saúde Pública, termo utilizado pelo mesmo autor. Nessa perspectiva, o pesquisador defende que a Vigilância se caracteriza como instrumento de Saúde Pública, e que procede à análise de situações de saúde e de condições de vida de grupos populacionais. Defende, ainda que, dessa maneira, amplia-se a investigação, assim como a elaboração de bancos de dados e a monitorização de agravos à saúde, para além das doenças transmissíveis.

Em relação à vigilância de doenças crônicas não-transmissíveis, Bastos (2005) aponta poucos avanços nessa área, ressaltando a importância de se articular a assistência com o sistema de informação. Nesse sentido, caminha-se para a arquitetura de uma nova especialidade em vigilância, na medida em que se ampliam e aprimoram as possibilidades de utilização de bases de dados secundários, de dados que incluem as doenças de notificação compulsória, ademais de registros de base populacional e hospitalar, além de inquéritos epidemiológicos.

A ampliação do elenco de agravos a serem monitorados pressupõe a reorganização dos processos de trabalho em saúde, o que foi evidenciado, no presente estudo, através da modificação do objeto que parece ampliar-se do indivíduo para grupos populacionais e pela incorporação de novos instrumentos, tais como fichas do SIAB, do SIS Pré-Natal, além de fichas de controle da vacinação, de controle de faltosos, entre outros; e pela inserção de sujeitos que, antes, não integravam essa área de práticas, como o agente comunitário de saúde, os trabalhadores de equipes de saúde mental, as assistentes sociais e os gerentes. Destaca-se que, nessa concepção de Vigilância Ampliada, estende-se o uso de instrumentos antigos como a visita domiciliária, que passa a ser realizada, por exemplo, pelo agente comunitário de saúde para monitorar a vacinação, o desmame precoce, além de sua aplicação em outras situações. É importante também apontar que essas práticas requerem a integração dos sujeitos no trabalho através de reuniões de equipe que debatem temas e problemas em comum.

Ressalta-se, dentre os depoimentos, que a tradição em vigilância epidemiológica clássica, desenvolvida em um dos serviços, estimulou a organização de ações e informações em torno de práticas de vigilância mais amplas, enfatizando-se este ponto de partida para a vigilância à saúde (EnfC9). Ou seja, há uma idéia que subjaz à Vigilância Epidemiológica, de insuficiência que conduz à proposição de novas práticas de trabalho. Já não se coloca, portanto, como estática no serviço, mas como uma possibilidade de integrar ações que ampliem para além do efeito/resultado: doença/problema de saúde.

No que diz respeito às práticas de vigilância que se orientam para uma versão ampliada, foi identificada nos depoimentos dos entrevistados dos serviços que têm como característica a interlocução com a Universidade, através do ensino de campo de escola de enfermagem junto ao Programa de Saúde da Família, ou por ser serviço vinculado à USP, no caso de instituição de saúde-escola, ou no depoimento oriundo de trabalhador que atuava no nível municipal da vigilância.

Ademais, todos os gerentes entrevistados mostram, em sua trajetória profissional, cursos de pós-graduação senso lato e/ou estrito e apresentam experiência anterior em vigilância epidemiológica, o que pode condicionar os depoimentos, apontando-se que estes refletem situações do cotidiano, ou seja, assentadas na realidade. Essas pessoas entrevistadas mencionaram haver distinção entre a vigilância epidemiológica ampliada e a vigilância à saúde, marcada pela capacidade desta última em orientar a organização do serviço assentada nos pilares: caracterização das condições de vida e saúde da população residente no território adstrito a UBS; relacionar as questões individuais e coletivas; contemplar a participação da população na detecção dos problemas e necessidades de saúde e no planejamento de estratégias de intervenção, que incluem a prevenção de doenças e a promoção da saúde; assim como incorporar a intersetorialidade e o trabalho em equipe considerando as características culturais, políticas, educacionais e de acesso da população aos serviços de saúde (GerF29, EnfC18, GerA46; EnfC9,6; GerC8; GerC48, EnfC21).

Evidencia-se, portanto, que esses pilares apresentados pelos trabalhadores aproximam-se à concepção de Vigilância à Saúde proposta por Mendes (1995) e Teixeira, Paim e Vilasbôas (1998), que parecem incorporar a interpretação dos determinantes do processo saúde-doença, com base na denominada Epidemiologia Crítica (Breilh 1995), articulando-os em um esquema operacional que integra ações sociais organizadas por diferentes sujeitos, ações de prevenção de riscos e agravos, bem como outras, direcionadas à recuperação e reabilitação de doentes.

Para Mendes (1995), a Vigilância à Saúde deve operar com base em sistemas geográficos de informação, a partir da microlocalização de problemas, e subsidiar o planejamento local em saúde. O território constitui- se em elemento-chave, tratando-se de um cenário onde se dão, processualmente, as relações de vida e trabalho de uma população. Para tanto, no sentido de apreender um recorte desses aspectos, num dado território, é necessário que se reúnam informações demográficas, socioeconômicas, político-culturais, epidemiológicas e sanitárias. A partir

daí, torna-se possível identificar e analisar os problemas, os perfis epidemiológicos e as necessidades de saúde das pessoas, para definir prioridades de atenção à saúde, com base na intersetorialidade, na integralidade e na eqüidade.

Conforme Teixeira, Paim e Vilasbôas (1998), a vigilância à saúde coloca-se como modelo assistencial destinado a superar a dicotomia entre as práticas coletivas e individuais, e que tem como objeto, os modos de vida dos diferentes grupos sociais e as diversas expressões do processo saúde- doença. Tal concepção propõe a incorporação de novos sujeitos como a população organizada, assim como outras áreas de conhecimento que vem apoiar o entendimento da saúde a partir de uma perspectiva mais ampla, dentre as quais, a geografia, o planejamento urbano, a epidemiologia social, o planejamento estratégico situacional e as ciências sociais em saúde. Integra, ainda, novas tecnologias, como a comunicação social, para estimular a mobilização e a organização de diferentes grupos na “promoção e na defesa das condições de vida e saúde”, de forma a transcender os espaços institucionalizados dos serviços de saúde e envolver ações de órgãos governamentais e não governamentais.