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3. Normas iniciais e a tradução de poesia

3.1. Os títulos

O corpus de poesia em apreço é composto por três livros: (i) Paisagem com grão de areia de Szymborska, vertido por Gomes, um volume constituído por 100 poemas; (ii) Alguns

gostam de poesia, uma coletânea de 70 poemas de Miłosz e Szymborska, selecionados

pelos tradutores Milewska e Neves, e (iii) Instante de Szymborska com 13 poemas, traduzidos por Milewska e Neves.

A aferição da estratégia dominante nas traduções começa com a análise dos títulos, partindo do suporte teórico proposto pelo tradutor polaco Jerzy Jarniewicz (1999/2007). O título, a designação dada por um autor à sua obra literária, não surge por si só, designando algo que lhe é extrínseco. O título identifica e anuncia outro texto, a obra literária em si (poema, romance, coletânea), funcionando como um bilhete de identidade que dá nome a um livro (indicado na capa e na lombada). A sua importância funcional é destacada por Jarniewicz (1999/2007: 411), que compara os títulos dos livros aos nomes próprios das pessoas, graças aos quais é possível identificá-las facilmente. Na tradução literária, o título pode ser traduzido literalmente ou substituído por um título completamente diferente:

Apesar de ser amiúde tratado como parte integral do texto, também goza de grande autonomia. Daí que existam modos diametralmente opostos de traduzir os títulos: por um lado, deparamo-nos com uma prática que consiste em deixar o título na sua forma original, dando azo a uma ausência efetiva de tradução; por outro lado, há tradutores que dão à

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obra traduzida um título completamente novo, não relacionado nem formalmente, nem semanticamente com o título original (Jarniewicz, 1999/2007: 410. T. n.).

Passando à análise dos títulos das obras poéticas do corpus em apreço, constata-se que o título do volume poético Chwila foi vertido por correspondência como Instante, pelo que não suscita reflexão tradutológica, a não ser a inferência de que a sua tradução literal possa anunciar uma estratégia de aproximação à LP, ou seja, de adequação. Já os títulos dos restantes volumes poéticos, suscitam considerações não só a nível das técnicas aplicadas, mas também da problemática tradutória envolvida e daí decorrente.

O título da antologia de Szymborska Widok z ziarnkiem piasku [Vista com grão de areia] foi traduzido como Paisagem com grão de areia. O facto de a tradução ter sido feita por equivalência através de um sinónimo de vista, paisagem, levanta um problema que se situa não a nível da frase, mas da obra integral, pois tanto o texto como o contexto da antologia excluem a opção paisagem ‘krajobraz’. O problema tradutório em causa tem a ver com o contexto da UT widok que não se restringe à frase e deve ser alargado ao conjunto dos poemas da antologia. Não se traduzem palavras isoladas, mas palavras que integram frases e frases que, por sua vez, constroem textos, configurados por redes lexicais. Existem contextos tradutórios, em que a UT widok pode ser indiferentemente traduzida por vista ou paisagem, como p. ex., na exclamação proferida perante um belo panorama: Co za

widok! Neste caso, a expressão pode ser traduzida para PE como ‘Mas que vista!’ ou ‘Mas

que paisagem!’ Na primeira versão é aplicada a tradução literal; na segunda, a tradução é feita através de um sinónimo. Na tradução de Gomes, ambas as técnicas são aplicadas indiferenciadamente, porque o tradutor toma a UT widok apenas no seu contexto frásico, conforme o atestam os seguintes exemplos:

(1)

(…) i odsłoni się widok - ależ tak! na ogród, (..) WS1: 130

e destapa se vista mas sim! para jardim

(…) e desvenda-se – claro – a vista para o jardim, (…) JG: 131 (2)

(…) no i widok jak w kinie: (…) WS1: 164

bem e vista como em cinema

111 (3) Pożegnanie widoku WS1: 304 despedida de vista Despedida da paisagem JG: 305 (4)

Widok z ziarnkiem piasku WS1: 204

vista com grão de areia

Paisagem com grão de areia JG: 205

Na tradução de Gomes, a palavra widok é vertida para português ora como vista ora como

paisagem; porém, quando no TP ocorre a palavra krajobraz ‘paisagem’, Gomes tradu-la

sempre como paisagem. A variação linguística surge somente com a palavra widok. A hipótese explicativa para o fenómeno reside na assunção de que o tradutor cinge o contexto da tradução à frase e não o estende à obra integral, cujo título estabelece uma relação concetual com o seu conteúdo, constituindo um indício da cosmovisão de Szymborska. A alternativa tradutória entre vista e paisagem não se situa a nível das relações entre as palavras no eixo paradigmático da frase, mas a nível concetual na totalidade da obra. O título, Paisagem com grão de areia, apaga o indício concetual subjacente àquele que é o alicerce da poesia de Szymborska, o sentido da visão, a partir do qual a poetisa extrapola para o domínio intelectual. Sobre este assunto, abordado mais amplamente por Swiatkiewicz (2000: 40-52), destaca-se o poema Do Arki [Para a arca], no qual a poetisa, face à aproximação do dilúvio, de entre seres e objetos que pretende salvar, chama para a arca, ochot[a] oglądania rzeczy z sześciu stron ‘a vontade de ver as coisas dos seis lados’, i. e., a vontade de ver as coisas de cima, de baixo, de lado, de perto, de longe e por dentro. Observar é o método eleito pela poetisa para descrever o mundo empírica e sensorialmente; é através da descrição do mundo visível que Szymborska alcança aquilo que os olhos não veem, mas o intelecto vislumbra. Entre as diversas formas de ver o mundo, a sua preferida é vê-lo de perto. Por esta razão, o escritor polaco, Julian Przyboś (apud Bikont e Szczęsna, 1997: 177), chamou míope a Szymborska, cuja poesia se encontra repleta de verbos e nomes do domínio concetual VER: widzieć ‘ver’; przewidzieć ‘prever’;

patrzeć ‘olhar’; wygladać ‘ver debruçando-se’; wpatrywać się ‘fixar o olhar’; spojrzeć ‘dirigir

o olhar para alguém ou algo’; zajrzeć ‘espreitar’; rozejrzeć ‘olhar em redor’; ujrzeć ‘vislumbrar’; gapić się ‘ficar a olhar’; przyglądać się - przyjrzeć się ‘observar algo ou alguém

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de todos os lados’; podglądać ‘espreitar às escondidas’; obserwować ‘observar’; widok ‘vista’; wzrok ‘visão’; spojrzenie ‘o olhar’; oko – oczy ‘olho – olhos’; widzieć oczami ‘ver com os olhos’; widocznie ‘pelos vistos’; widać ‘vê-se (presumivelmente)’; na widok ‘ao ver’, etc.. A ocorrência significativa de verbos, nomes e expressões do campo lexical da visão, ajusta- -se à noção de redes de significantes subjacentes de Berman (1985/1997: 51):

Qualquer obra contém um texto “subjacente”, onde alguns significantes-chave se respondem e se encadeiam, formam redes sob a “superfície” do texto, quero dizer: do texto manifesto, dado à simples leitura. É o sub-texto, que constitui uma das facetas da rítmica e do significado da obra. Assim, de vez em quando, regressam palavras que formam, nem que seja pela sua semelhança ou pela sua perspetiva, uma rede específica (Berman, 1985/1997: 51).

Na poesia de Szymborska, uma das redes concetuais de significantes é formada por palavras dos domínios VER e VISTA, que o tradutor não identificou ou não valorizou; logo, não a transmitiu. Por falta de uma visão global da obra, Gomes aplicou a técnica de tradução por sinonímia, que não leva em linha de conta o contexto do volume poético de Szymborska. A tradução de widok como paisagem revela que o tradutor não prestou a devida atenção às redes lexicais da obra. A consequência é aquilo que Berman (1985/1997: 52) tão frontalmente aponta: «[a] tradução que não transmite tais redes destrói um dos tecidos significantes da obra» [Destaque do autor]. Face ao exposto, a tradução do título, que criaria no leitor a expetativa adequada ao conteúdo da obra seria ‘Vista com grão de areia’, pois, como observa Jarniewicz (1999/2007: 411), «os títulos (…) anunciam o tema da obra, preparam o leitor para o encontro com o texto, suscitam nele uma certa disposição, despertam expetativas» (T. n.).

A distinção semântica entre vista e paisagem é relevante, pois widok ‘vista’ denota o espaço visto, o ato e o efeito de ver (cf. SJP III: 697), enquanto krajobraz ‘paisagem’ refere o que é dado a ver, uma extensão de terreno existente na natureza vista a partir de um ponto (cf. SJP I: 1036). Se a função do título é indiciar o conteúdo da obra, Paisagem com

grão de areia não estabelece elo concetual com o teor do livro. Já ‘Vista com grão de areia’

contemplaria a rede concetual de significantes estruturante da cosmovisão da poetisa. A reflexão tradutológica em torno de Paisagem com grão de areia, título de um poema homónimo, é importante porque, conforme alerta Jarniewicz (1999/2007: 411) qualquer

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alteração na tradução do título original pode ter influência na interpretação da obra. Para provar que apenas a palavra vista seria o procedimento tradutório adequado neste caso, recorre-se às traduções paralelas efetuadas para inglês, francês, italiano, catalão e alemão:

View with a grain of sand; Vue avec un grain de sable; Vista con granello di sabbia; Vista amb un gra de sorra; Ausblick mit Sandkorn. Todas as traduções preservam o vocábulo widok / view, vue e vista. Já a tradução alemã opta por acentuar o aspeto concetual

descrito, a importância da ação de ver, acrescentando movimento à ação de ver: Ausblick é um olhar para o exterior, o que privilegia a perspetivação.

Dando o benefício da dúvida a Gomes, pode pressupor-se ainda que o título possa ter sido sugerido pelo editor, tanto mais que Paisagem com grão de areia representa um título mais apelativo e mais comercial. De qualquer modo, a problemática da tradução do título em análise parece enquadrar-se na recomendação de Newmark (1988: 84), defensor da tradução literal: «A synonym is only appropriate where literal translation is not possible and because the word is not important enough for componential analysis». A técnica da tradução por sinonímia empregue por Gomes, ao afastar-se da letra e do espírito do TP, traça indícios de aceitabilidade, por procurar opções mais comuns na LC.

Por último, o título escolhido por Milewska e Neves para a coletânea da sua responsabilidade, Alguns gostam de poesia, provém de um poema de Szymborska e, do ponto de vista do conteúdo da obra, coaduna-se com o volume poético, visto que a poesia é uma forma literária menos popular do que a prosa, destinando-se a um círculo mais restrito de leitores. O título exerce a função esperada, estabelecendo um elo não só com o teor do livro como também com o leitor. A problemática tradutória coloca-se em relação à técnica de tradução aplicada, pois o título é a tradução literal decalcada da construção sintática polaca, Niektórzy lubią poezjȩ.

(5)

Niektórzy lubią poezję WS1: 278; WS2

Alguns gostam de poesia

Alguns gostam de poesia JG: 279; M&N1

Registe-se, porém, que nem toda a tradução literal denota decalque e que o decalque ocorre quando se observa uma interferência linguística da LP:

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This strategy covers both the borrowing in individual items and the borrowing of syntagma. Like the other strategies, it refers to a deliberate choice, not the unconscious influence of undesired interference (Chesterman, 1997: 94).

Não é possível determinar se a tradução em (5) resulta de uma escolha deliberada ou fortuita (interferência linguística inconsciente do PL no PE), mas constata-se que o poema, que intitula a coletânea de Milewska e Neves, foi primeiramente traduzido por Gomes como Alguns gostam de poesia. O facto de Milewska e Neves conhecerem a antologia de Gomes não é um fator desprezível na análise, pois as memórias das leituras efetuadas pelos tradutores reflete-se na escrita tradutória, sob a forma de reminiscências e ecos.Importa aqui assinalar que tanto Gomes como Milewska e Neves traduzem o título do poema de Szymborska do mesmo modo e que considerar tal como opção tradutória deliberada e consciente – e não como interferência linguística da LP – implica identificar as opções alternativas que presumivelmente surgiram durante o processo de tradução e que a seguir se reconstituem. O problema tradutório em foco consiste na tradução literal de uma construção sintática típica do PL, conotada com espanto e ironia [NIEKTÓRZY + V + O] para a qual se afiguram três soluções possíveis: ‘Alguns gostam de poesia’; ‘Há quem goste de poesia’ e ‘Não falta quem goste de poesia’. A opção dos tradutores recaiu sobre a primeira solução, um decalque da construção sintática polaca, que, embora aceitável em termos gramaticais em PE, não é corrente em situações comunicativas e pragmáticas na LC por não constituir uma “frase nativa” («a ‘native’ utterance» – Toury, 1995/2012: 124):

(…) solutions were sought on a level which is lower than the one on which they would have been selected in the case of a pragmatically equivalent (…) the source-text’s status as composed of lower-rank elements was preferred to its role as a codified entity, which would be a fair characterization if any kind of so-called ‘literal’ translation (Toury, 1997/2012: 122).

As soluções alternativas, ´Há quem goste de poesia’ e ‘Não falta quem goste de poesia’, produzidas com a técnica da modulação (Molina e Albir, 2002: 510), implicam mudanças estruturais que contemplam aspetos pragmáticos, levando em conta o público-alvo:

By pragmatic strategies I mean those which primarily have to do with the selection of information in the TT, a selection that is governed by the translator’s knowledge of the prospective readership of the translation. If syntactic strategies manipulate form, and semantic strategies manipulate meaning, pragmatic strategies can be said to manipulate de message itself (Chesterman, 1997: 107).

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O tipo de relação que se estabelece entre Niektóry lubią poezję e Alguns gostam de poesia é de correspondência morfossintática, enquanto a relação entre Niektóry lubią poezję e ‘Há quem goste de poesia’ ou ‘Não falta quem goste de poesia’ é de equivalência linguística e pragmática, porque remete para modos de expressão típicos do repertório do uso do PE. Nas soluções propostas, o significado irónico da mensagem é reforçado com a utilização de estruturas da LC, habitualmente usadas para o efeito: [HÁ QUEM…] e [NÃO FALTA QUEM…] que podem ser descritas como entidades codificadas (Toury, 1997/2012: 122).

Se a tradução dos títulos é o primeiro indicador da norma inicial, os títulos traduzidos por Milewska e Neves com uso da tradução literal e do decalque sintático (interferência da LP) indiciam a escolha prévia da estratégia da adequação, enquanto o título traduzido por Gomes por sinonímia sugere que o tradutor tenderá a aplicar a estratégia da aceitabilidade.