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2.4 Os procedimentos de análise dos textos: a arquitetura textual

2.4.1 O folhado textual constitutivo do texto

2.4.1.1 Os tipos de discurso

A noção de tipo de discurso é umas das mais importantes contribuições do ISD para o estudo dos textos. Apesar das inovações teóricas e metodológicas advindas dessa categoria de análise, a noção não foi criada pelos investigadores do ISD. Os tipos de discurso têm origem em autores, como: Benveniste (1976 apud BRONCKART, 2008) que sustentou que os tempos verbais em francês distribuíam-se em dois sistemas distintos e complementares, que traduziriam dois planos da enunciação – o plano da história e o plano do discurso-; a noção de tipo de discurso também tem bases em Weinrich (apud BRONCKRAT, 2008). O autor também estudou os tempos verbais e estabeleceu uma distinção análoga a de Benveniste entre os tempos do comentário e os tempos da narração e, por fim, outro autor importante para a construção de tipos de discurso foi Simonin-Grumbach (apud BRONCKRAT, 2008). O autor tentou identificar o conjunto das unidades discriminativas dos mundos ou planos enunciativos, chamados de tipo de discurso.

A abordagem do ISD sobre os tipos de discurso situa-se na continuidade desses trabalhos no sentido de que consiste em descrever, de um lado, os mundos ou planos de enunciação assim como as operações psicológicas em que se baseiam e, de outro lado, as configurações de unidades linguísticas que traduzem esses mundos, no quadro de uma língua natural (BRONCKART, 1999: 151).

Para o ISD, para produzir um texto, é necessário que o agente-produtor mobilize recursos sociais como meio de participar do curso das interações humanas.

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Um texto, portanto, requer a criação de mundos coletivos nos quais as representações dos indivíduos sejam transformadas em realidades partilhadas pelos outros parceiros. É necessário, então, estabelecer zonas coletivas de interface entre as representações dos indivíduos participantes da interação que são chamados de mundos discursivos (ERNICA, 2007: 130).

Os mundos discursivos são construídos com base em dois subconjuntos de operações. As primeiras operações têm relação com as coordenadas gerais que organizam um conteúdo temático e as coordenadas gerais do mundo ordinário em que se desenvolve a ação de linguagem de que se origina um texto. As segundas dizem respeito ao estabelecimento de diferentes instâncias de agentividade e de sua inscrição espaço-temporal. Esses dois tipos de distinção caracterizam a oposição existente entre a ordem do narrar e a ordem do expor, de um lado, e a oposição entre implicação e autonomia, de outro. O cruzamento dessas duas distinções possibilita a definição de quatro mundos discursivos: 1. mundo do expor implicado; 2. mundo do expor autônomo; 3. mundo do narrar implicado; 4. mundo do narrar autônomo.

Esses mundos discursivos só são identificáveis a partir de formas linguísticas que os semiotizam, por serem, na verdade, operações psicossociais arquetípicas (ERNICA, 2007). Sendo assim, os mundos discursivos só podem ser identificados em suas manifestações empíricas, ou seja, em formas linguísticas específicas de cada língua natural. Essas formas linguísticas, que realizam os mundos discursivos, constituem os segmentos que compõem textos, sendo esses segmentos os tipos de discurso.

Seguindo a metodologia indicada por Bronckart (1999), cada texto é submetido a um recorte, depreendendo-se os segmentos que parecem pertencer a um mesmo tipo de discurso. Estes seriam segmentos de textos que traduzem uma certa relação com a situação de comunicação, através de subconjuntos de unidades linguísticas. Assim, os tipos de discursos podem ser delimitados e definidos pela combinação das operações subjacentes que se aplicam ao contexto e ao conteúdo e que se manifestam através da configuração de unidades linguísticas mais ou menos específicas a cada um deles.

Enquanto a heterogeneidade genérica é considerada como ilimitada, postula-se que há um número limitado de tipos de discurso, basicamente quatro (discurso interativo, discurso teórico, relato interativo e na rra ção), com os quais se podem construir diferentes e ilimitados gêneros de texto. Esses tipos de discurso são identificáveis na superfície textual enquanto tipos linguísticos, que se diferenciam por configurações de unidades linguísticas específicas a cada tipo, sendo esses tipos de discursos articulados por mecanismos de textualização e por

mecanismos enunciativos, que conferem ao texto coerência sequenciais e configuracional. (BRONCKART, 1999)

Na constituição de um tipo de discurso, duas categorias de operações ou de procedimentos psicológicos entram em questão. O agente produtor do texto opera a constituição de um mundo discursivo. Para isso, o agente tem duas possibilidades gerais em relação à maneira de situar as representações dos mundos formais mobilizados para a produção textual: ou situá-las em um mundo colocado como distante (ou disjunto) do mundo da interação social em curso, ou em um mundo conjunto, ou mais próximo, ao dessa interação social em que está inserido.

O produtor também deve efetuar uma escolha em seu texto com relação ao grau de implicação da situação material de produção, tendo duas possibilidades: apresentar ou não em seu texto referências explícitas aos parâmetros da situação material de produção. Quando ele escolhe integrar essas referências ao texto, temos implicação desses parâmetros. Quando escolhe não integrá-las, o texto é autônomo em relação a esses parâmetros, não havendo, assim, marcas linguísticas que demonstrem indícios desses parâmetros de situação. Desse cruzamento, derivam os quatro tipos de discurso: discurso interativo (conjunto e implicado); teórico (conjunto e autônomo); narração (disjunto e autônomo) e relato interativo (disjunto e implicado).

Quadro 2: Tipos de discurso

Coordenadas Gerais dos Mundos

Conjunção (EXPOR) Disjunção (NARRAR) Relação ao ato de produção

Implicação Discurso Interativo Relato Interativo

Autonomia Discurso Teórico Narração

A seguir, especificamos as características linguísticas que definem os tipos de discurso. Essas características foram descritas em Bronckart (1999) e teve como base a análise quantitativa de diversos textos.

O discurso interativo é caracterizado pela presença de formas verbais e de pronomes de 1ª e de 2ª pessoa, como: eu, você, nós, que implicam os participantes da interação, bem como a presença de nomes próprios e do pronome indefinido em francês on, em português do pronome a gente. Apresenta também referências explícitas aos parâmetros da situação de ação, com a presença de dêiticos espaciais e temporais, como aqui, hoje, agora, etc. Tempos verbais que colocam os conteúdos verbalizados relacionados em relação ao momento da produção, como verbos no presente e no pretérito perfeito com valor dêitico, imperativo e etc. Assim, para caracterização desse tipo de discurso, necessitamos verificar a exploração de um subsistema de tempos dos verbos (os tempos do plano do discurso, de Benveniste), composto essencialmente pelo presente e pelo passado composto/pretérito perfeito do indicativo co m valor dêitico; aos quais se acrescenta regularmente uma forma de futuro perifrástico. Esses três tempos de base exprimem a relação que é estabelecida entre o momento dos acontecimentos verbalizados no texto e o momento da tomada da palavra da interação; em termos de valor, exprimem, respectivamente, a simultaneidade, a anterioridade e a posterioridade. Na caracterização desse tipo de discurso, verifica-se também a presença de unidades que remetem ou a objetos acessíveis aos interactantes ou ao espaço ou ao tempo da interação.

Quer se apresente na forma de um diálogo, quer tenha sido produzido oralmente ou por escrito, o discurso interativo caracteriza-se pela presença de unidades que remetem a própria interação verbal em curso, quer seja real ou encenada. Nas formas dialogadas, a interação é marcada pela alternância de turnos de fala e pela presença de numerosas frases não declarativas.

O discurso teórico caracteriza-se pela ausência de marcas de referência aos participantes da interação, ao tempo e ao lugar de interação. Podemos identificar a presença do presente genérico e de frases passivas e declarativas, estabelecendo uma relação de disjunção temporal. A exploração do mesmo subsistema de tempos dos verbos do discurso interativo, mas com duas características diferenciais: a presença do futuro do pretérito, ausência quase total de formas do futuro; a presença dos dois tempos de base, o presente e o pretérito perfeito, tem nesse tipo de discurso um valor genérico, nitidamente distinto do valor dêitico, que geralmente tomam no discurso interativo. A presença de múltiplos organizadores com valor lógico-argumentativo (como, de outro lado, de fato, primeiro, mas etc.), procedimento de referência intratextual e de referência intertextual. A ausência de nomes próprios e de pronomes de 1ª e 2ª pessoa do singular com valor exofórico, ou ainda de verbos

na 1ª e na 2ª pessoa do singular, podendo observar, entretanto, a presença de formas de 1ª pessoa do plural, de on, que remetem aos polos da interação verbal em geral. A presença de numerosas modalizações lógicas (de um modo geral, é evidentemente difícil, aparentemente etc.) e da presença do auxiliar de modo poder (estas poderiam desempenhar (...), podemos fazer etc.). A presença de frases genéricas e passivas.

O discurso relato interativo desenvolve-se em uma situação de interação que pode ser real ou posta em cena; implica um dos participantes da interação por meio de unidades linguísticas como formas verbais e pronomes de 1ª pessoa, além do par pretérito perfeito- imperfeito, que coloca os fatos narrados distantes do momento de produção, havendo, assim, uma relação de disjunção. A exploração de um subsistema de tempos do verbo que constitui uma variante do sistema de tempos da história descritos por Benveniste (2006a; 2006b) ou ainda dos tempos narrativos descritos por Weinrich (apud BRONCKART, 1999), que é caracterizado pelo pretérito perfeito e o imperfeito, aos quais às vezes, são associados o mais- que-perfeito, o futuro simples e o futuro do pretérito. A presença de organizadores temporais, que decompõem o narra r desenvolvido a partir da origem espaço-temporal, explícita ou não (quando eu tinha treze anos (..), outro dia, (...), já se passaram três dia s (...) etc.). A presença de pronomes de 1ª e 2ª do singular e do plural, que remetem diretamente aos protagonistas da interação verbal em cujo quadro o relato se desenvolveu;

Por último, temos o tipo de discurso narração. Este tipo de discurso é geralmente escrito e comporta predominantemente frases declarativas. Neste tipo de discurso, não há qualquer unidade linguística referente aos participantes da interação ou ao tempo e espaço da interação, havendo uma tendência de referência temporal absoluta (em 1999, no ano seguinte, certo dia etc.). O discurso narração apresenta a exploração do subsistema dos tempos da história ou dos tempos narrativos, composto por dois tempos de base nitidamente dominantes, o pretérito perfeito simples e o imperfeito, presença de organizadores temporais, que decompõem o narrar que se desenvolve, a partir da origem espaço-temporal, explícita ou não e ausência de pronomes e adjetivos de primeira e segunda pessoa do singular e do plural, que remetem diretamente ao agente produtor do texto ou aos seus destinatários.

Bronckart (1999), também faz referência a varia ntes, fronteiras e fusão dos tipos de discurso. Nesse sentido, com relação ao discurso interativo, o autor identifica o discurso direto como sendo pertencente a esse tipo de discurso. Assim, em gêneros escritos24, como

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romances, contos, crônicas, que são frequentemente encaixados nos segmentos de relato interativo ou narração, os discursos diretos são encaixados nos discurso principal ou encaixante.

Com relação ao discurso teórico, Bronckart (1999), afirma que, embora a autonomia seja, neste tipo de discurso, marcada linguisticamente, ela nunca é completa. O discurso teórico tende para a autonomia, sem jamais atingi-la. O autor fala, então, em diferentes graus de autonomia.

Ainda sobre o tipo de discurso teórico, o autor encontrou, em muitos segmentos do mundo do expor, uma não delimitação clara entre os tipos de discurso interativo e teórico, havendo, assim, uma fusão dos dois tipos de discurso. Essa não delimitação entre esses tipos de discurso é chamada por Bronckart (1999) de fusão de tipo de discurso misto, interativo- teórico.

Com relação, especificamente, ao relato interativo, é possível distinguir os relatos interativos primários dos relatos interativos secundários. Os primários aparecem no quadro de gêneros orais, como o discurso político, a conversação e a entrevista. Já os secundários, são encontrados no quadro de gêneros originalmente escritos, como romances e peças, quase sempre encaixados em segmentos de discurso interativo secundário.

Com relação ao discurso narração, em alguns textos, há a presença de pronomes de primeira pessoa, que poderíamos atribuir ao autor do texto empírico. No entanto, a noção de narrador, que designa a instância formal que assume e gerencia a atividade narrativa. Se em última análise o narrador é uma criação do autor, entretanto, não se confunde com este último: ele constitui uma das propriedades do mundo narrativo construído e não do mundo ordinário.

Diferente dos tipos de discurso da ordem do expor, os tipos de discurso da ordem do narrar não podem sofrer fusão, uma vez que o relato interativo articula-se com um mundo que implica os parâmetros materiais da a ção de linguagem, enquanto a narração articula-se com um mundo cujas instâncias de agentividade são autônomas em relação a esses mesmos parâmetros.

Bronckart (1999), no decorrer da exposição dos tipos de discurso, trata sobre a noção discurso indireto e discurso indireto livre. Para o autor, o discurso indireto e o discurso

indireto livre, ao contrário do discurso direto, mostram modalidades diversas de fusão dos mundos do discurso interativo e do discurso principal25.

Estas fusões e encaixamentos descritos por Bronckart são muito importantes na nossa investigação, uma vez que elas são uma constante em nosso corpus, como teremos oportunidade de demonstrar em nossas análises.