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1. Psicologia Teórica

1.7 Verdade

1.11.4 Outras Faculdades da Alma

Depois da investigação das principais faculdades da alma resta-nos analisar as capacidades de unidade, identidade, simplicidade e receptividade, elementos que concedem ao ânimo a sua substancialidade e permanência.

Se é um facto que alma pode ter múltiplas manifestações não deixa, também, de ser uma realidade que ela é una quer ao nível da essência, quer da substância, quer, ainda, do fim, de onde se pode concluir que as diferentes explanações não provocam rupturas no seu ser. São apenas “aspectos diversos da alma, exprimindo cada faculdade somente uma parte determinada da sua essência”334 e, por isso, não constituem regras diversas.

Em conexão com a propriedade de unidade surge-nos o atributo da identidade. Se a unidade da alma é uma realidade, isso significa que na multiplicidade da sua actividade ela se mantém una e idêntica; se os conceitos, as sensações e o movimento volitivo se sucedem tal não se deve a uma mudança, ou fraccionamento, nas faculdades, porque “o espírito, um na substância e no fim, permanece sempre o mesmo no meio dessa variedade e multiplicidade fenomenal [isto é, dos fenómenos], e continua fundamentalmente a ser no presente o que fora no passado, e o que espera ser no futuro”335. Por outro lado, a função da memória não encontraria explicação sem a identidade e unidade do eu, o mesmo se passaria em relação à consciência, como seria possível a sua manifestação sem a unidade e identidade da alma, ou seja, sem a unidade

334 Rodrigues de Brito, Philosophia do Direito, § 174, p. 120.

335 Idem, Ibidem, § 175, p. 121. O que o filósofo se esquece de atestar é que a unidade e identidade da

alma dependem, em primeira instância, da unidade e identidade do ente, quer dizer, da unidade e identidade da essência ou substância, ou do fim como seria do seu agrado, que compõe o ente, o que é o mesmo que dizer que coincidem com o ser. A prova cabal da unidade e identidade será, em resumo, a unidade e identidade das principais categorias da razão.

e identidade da personalidade do indivíduo. Tudo isto leva Rodrigues de Brito a concluir que “a consciência e a memória, esclarecidas pelos princípios da razão, dão

testemunho infalível da unidade e identidade do espírito”336.

Em terceiro lugar, a alma define-se como simples em sua natureza. Ela não é passível de se dividir em partes. Se isto fosse possível a unidade da alma não seria uma realidade, e por essa razão, poderemos certificar que a simplicidade da alma é função quer da unidade, quer da identidade do ânimo. Por outro lado, “a reunião de sensações diversas em um só conceito e afirmadas ao mesmo tempo, a harmonia e acordo que há nas ideias, sentimentos e volições, manifestam visivelmente a – simplicidade do sujeito que preside a essas manifestações”337.

Finalmente, encontramos na alma o poder de receber as impressões sensíveis, sem esta potencialidade o espírito estaria completamente desligado do mundo exterior. É este poder que na análise da personalidade é apelidado de sentimento de si, é, em resumo, o que poderíamos chamar o contacto da alma com o mundo. Esta receptividade consiste num senso comum que é propriedade da alma e que enforma tudo que existe, possibilitando as relações recíprocas entre os seres. É em função desta receptividade que a alma tem acesso à existência em toda a sua plenitude, podendo, desse modo, “apropriá-las e assimilá-las através da inteligência, vontade e sentimento [isto é, por meio da personalidade]”338.

Tudo o que fica dito permite-nos concluir que a alma se caracteriza como substância e causa porque a múltipla actividade do espírito demonstra que ela é, de

336 Idem, Ibidem. Para corroborar o que se disse atrás, veja-se aqui a introdução dos princípios da razão

como luz que permite alumiar a consciência e a memória. No entanto, o essencial do que se disse não sofre contestação, pois é a memória e a consciência que servem de testemunho e não as categorias.

337 Idem, Ibidem, § 176, p. 122.

338 Idem, Ibidem, § 177, p. 122. Se os termos apropriação e assimilação se referem a coisas sensíveis nada

teríamos a objectar. Porém, o sentido próprio da afirmação deixa entender que essas operações se podem estender aos seres humanos, pois eles também podem ser objecto do conhecimento e, neste caso, as ideias de apropriação e assimilação parecem-me excessivas.

facto, “o sujeito das faculdades e de suas manifestações, um substractum que lhes serve de esteio e fundamento, e ao qual estão inerentes, substância; e – uma força íntima e permanentemente activa, causa desses actos, sempre uma, idêntica, simples e pessoal, enquanto à substância, fim e causação; e persistindo uma e a mesma no meio das suas manifestações”339. Além disso, a necessidade de ostentar a sua essência leva a que esteja em constante progresso, ou seja, em constante aperfeiçoamento, em todas as facetas da sua existência, Brito admite mesmo que esse desenvolvimento não é interrompido no sono e nos “estados anormais”340.

A aludida evolução é dependente, em grande medida, da indispensabilidade de execução do bem, porque o homem, ser limitado, tendo urgência em manifestar a sua essência, descobre-se como um vir a ser e “procura por todos os modos de sua actividade, preencher esta falta de ser, que sem cessar o instiga e impele ao trabalho.”341. Por esse motivo, o ser humano tem tendência a procurar um determinado bem que o preencha, bem esse que só o trabalho pode proporcionar. Por outro lado, a nossa limitação originária, a grandiosidade do fim e a vontade de o abranger são o fundamento dessa ânsia de evolução gradual do ser humano, fim esse que, como objecto de aspiração contínua para a realização de determinado bem, nos fornece o próprio horizonte do nosso desenvolvimento.

339 Idem, Ibidem, § 180, p. 125. Parece haver, nesta ocasião, uma abertura do espírito em relação às

categorias da razão, mas demasiado ténue para que se possa consistir em prova suficiente.

340 Cf. Idem, Ibidem, § 181, p. 125.

341 Idem, Ibidem, § 182, p. 126. Esta pressuposição do ser humano, essencialmente, como um vir a ser, a

expressão é nossa embora inferida do que se acaba de expor, é determinante para toda a construção antropológica e doutrina do direito de Brito, pois, isso parece-nos evidente. É esta permanente aspiração ao absoluto e ao ser que vai fundamentar a centralidade do conceito de finalidade e a sua hipervalorização em relação às outras categorias da razão, por um lado, e a concepção da solidariedade social e da mutualidade de serviços, por outro.

1.12 “O Reino Hominal”

Um último assunto ficou pendente durante a análise efectuada à antropologia de Rodrigues de Brito, questão que hoje é mais polémica do que no século XIX. É a distinção entre o homem e o animal. A citada distinção cifra-se, em grande parte, na concepção do reino hominal342 que se distinguiria do animal pelas seguintes características: maior desenvolvimento do sistema nervoso (funções de relação), posição erecta, as funções do espírito e a sua aplicação.

Se mais provas houvesse de aduzir para corroborar a existência do citado reino, bastaria dizer que “os sentimentos do bem moral, do justo, da verdade e do belo; a fé em Deus, na própria personalidade e na superioridade do próprio destino; e os deveres de sociabilidade e de moralidade – são completamente estranhos a todo o animal, e só

património do homem”343.

Porém, o argumento decisivo é o facto dos animais não caminharem para a perfeição, nem que fosse em passo muito lento. Essa não tendência à perfectibilidade

342 Quatrefages, segundo Tiberghien, afirmava que a humanidade formava um reino separado, por isso

completamente distinto do reino animal. Também para Ahrens “il [l’homme] ne peu être rangé dans le règne animal pour en constituer l’ordre supérieur, mais qu’il forme un règne distinct, le règne hominal, réunissant en lui toutes les perfections qui sont distribuées séparément aux divers classes de l’animalité” (Cours de Droit Naturel, 7ª ed., Tome I, p. 109, o itálico é nosso). Darimon, similarmente, faz também referência a um mundo hominal (cf. Exposition Méthodique des Principes de L’Organisation Sociale –

Théorie de Krause – Précédée d’un Examen Historique et Critique du Socialisme, pp. 41-42).

343 Rodrigues de Brito, Philosophia do Direito, § 8, p. 8, o itálico é nosso. Já nas Lições de Direito Natural era sua convicção que “a espécie humana pelo contrário existe sob um verdadeiro tipo de unidade harmónica e a sua organização é, segundo diz o mesmo filósofo [Ahrens], a síntese da criação. Organizado segundo um princípio superior forma um reino aparte – o reino hominal; e ainda que se diga que a organização das diferentes raças não é a mesma, contudo a anatomia e a fisiologia nos mostra, que essas diferenças não são fundamentais” (p. 258, o itálico é nosso). Para aquilatar as posições hodiernas bastará dizer que existem autores, por exemplo Peter Singer, que têm defendido a existência de um senso moral, pelo menos, entre os mamíferos superiores (vd., por hipótese, “All Animals Are Equal”, Animal

rights and human obligations, pp. 148 a 162 e Ética Prática, capítulo 3 “Igualdade para os animais?”, pp. 75 a 102 e capítulo 5 “Tirar a vida: os animais”, pp. 129 a 153).

moral e social é o traço distintivo do animal344. Este argumento é decisivo, na perspectiva do autor, pois como se viu no último capítulo a tarefa do ser humano é completar-se, preencher o vazio de ser pela indústria e pelo trabalho. Desta forma, almejamos constantemente a um bem que nos eleve, metamorfoseando a nossa fraqueza na nossa maior força, o caminho para a perfeição.

Encerramos, desta forma, o exame da parte inicial da doutrina antropológica do professor de filosofia do direito, cabendo-nos como tarefa na parte subsequente a disquisição do conceito de psicologia prática, cuja missão, como veremos mais em pormenor, consiste na precisão de aquilatar o conteúdo do bem, principalmente na maneira que reveste quando se acomoda à actividade do ser humano.

344 Afirma Tiberghien em La Science de L’Âme… em sintonia com Brito, “de l’âme qui s’ignore [animal]

à l’âme qui se connaît [homme] la distance est incommensurable, et nous ne concevons aucune possibilité de la combler, puisque le brute n’est pas perfectible” (p. 109, itálico nosso).

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