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Outras percepções sobre o processo de implementação do PAIF

5. Resultados e discussão

5.5. Ambiguidades no processo de implementação do PAIF

5.5.4. Outras percepções sobre o processo de implementação do PAIF

Por fim, entendendo o conceito de discricionariedade como uma fonte de ambiguidade, por significar a possibilidade de escolher entre duas ou mais alternativas, a partir de critérios próprios de oportunidade, conveniência, razoabilidade, ou seja, por significar a escolha entre múltiplas formas de interpretar e de agir sobre a realidade, perguntou-se aos entrevistados sua percepção sobre o nível de discricionariedade que percebem na realização de suas atividades.

As respostas foram, em sua maioria, que existe um alto nível de discricionariedade para que o profissional realize suas atividades. Divergências ocorreram no CRAS 1, em que a agente social respondeu que percebe um baixo grau de discricionariedade no seu dia-a-dia. Pela análise de suas respostas ao longo da entrevista, o que se percebe é que seu trabalho é baseado nas legislações que tratam dos benefícios eventuais e de transferência de renda. Ela segue normativos claros sobre os critérios a serem atendidos para a solicitação de benefícios e, para tanto, existe um procedimento estabelecido, que é seguido sem multiplicidade de interpretações e necessidade de realizar escolhas. Já a assistente social do CRAS 1 respondeu que, em alguns aspectos percebe menor nível de discricionariedade do que em outros, mas que em geral esse nível é alto. Se fosse necessário atribuir uma nota de 0 a 10, sendo 0 a ausência de discricionariedade e 10 o nível máximo de discricionariedade, atribuiria uma nota 7 ou 8 ao nível de discricionariedade que percebe ao realizar suas funções no CRAS.

A psicóloga do CRAS 2 respondeu que o nível de discricionariedade que eles têm no CRAS é adequado, visto que permite que o profissional paute sua atuação em posicionamentos legais, ao mesmo tempo em que há flexibilidade para adaptações e ajustes. Já a psicóloga do

CRAS 4 discursou sobre uma “falsa liberdade”, um falso nível de discricionariedade existente em relação ao trabalho desenvolvido no CRAS:

Acho que a gente tem uma falsa liberdade, por quê? Aparentemente, existe aquela percepção de que ‘ah o trabalho eu faço da forma que me parece conveniente’. Mas existe uma leitura mais institucional. O que acontece aqui? Aqui no GDF por ser um órgão híbrido, os CRAS não têm autonomia pra fazer uma série de coisas, por isso que eu te falei que é uma falsa liberdade. Porque você, aparentemente, pode criar e a gente cria várias coisas... Como existem poucas metodologias de trabalho, então a gente acaba criando formas de se fazer. Mas existe um limitador, por conta de um aspecto institucional mesmo. Quando eu falo assim, de falta de autonomia, é uma falta de autonomia que se reflete muito na prática. Por exemplo, a gente tem lá o acompanhamento do SICON (Sistema de Condicionalidades do Programa Bolsa Família), você vai, faz um relatório e desenvolve uma série de ações pra aquela família. No entanto, para que haja resultados daquilo, para que haja efetividade dessa intervenção em um descumprimento de condicionalidade, para que haja reflexos nas condições de vulnerabilidade e risco da família, depende-se de outras gerências, por exemplo, da subsecretaria de transferência de renda. Então você restringe a autonomia por conta de uma centralização do trabalho e de informações, que não ocorre no âmbito do CRAS. Então existe essa centralização que prejudica o trabalho e a possibilidade de autonomia dentro das unidades de execução (PSICÓLOGA, CRAS 4).

Também foi perguntado aos entrevistados, qual o impacto desse nível de ambiguidade percebido na realização dos trabalhos desenvolvidos pelo profissional e qual o impacto também para o alcance dos objetivos da política. As respostas foram interessantes.

No caso da agente social do CRAS 1, que classificou como baixo o nível de discricionariedade no seu cotidiano, a percepção é a de que ter pouca discricionariedade ajuda a realização de seu trabalho, visto que tendo uma base – uma lei, uma norma – em que se pautar, ela se resguarda profissionalmente. Por outro lado, para o alcance dos objetivos da política, sob o ponto de vista dos usuários, a agente social acha que o nível de discricionariedade poderia ser maior visto que os critérios estabelecidos para concessão de benefícios são artificiais e nem sempre se destinam a quem necessita de auxílio. Se houvesse maior possibilidade de verificar a situação, ponderar os critérios, os benefícios teriam uma destinação mais justa.

Pelo ponto de vista da psicóloga do CRAS 2 que considerou que o nível de discricionariedade é adequado, existe a percepção de que ele facilita a prestação do serviço, ao apresentar uma legislação em que se basear no dia-a-dia, mas que não garante impactos positivos em relação ao alcance dos objetivos da política: “isso depende do perfil da gestão e da questão pessoal de cada um”.

Já a psicóloga do CRAS 4, ao defender a existência de uma falsa noção de liberdade, deixou pistas em seu discurso de que essa falsa liberdade auxilia a prestação do serviço – o profissional sabe o que lhe compete fazer e tem liberdade para criar -, mas não é benéfica em relação à efetividade da política, visto que o CRAS depende de outras unidades para que as criações, as soluções desenvolvidas pelos profissionais ganhem vida.

Nos demais casos, os entrevistados concordaram que há um alto nível de discricionariedade, no entanto houve alta variação quanto aos impactos que essa alta discricionariedade causa na realização das atividades do profissional e nos resultados da política, conforme ilustra o quadro abaixo:

Alto nível de discricionariedade Impactos positivos para o profissional na realização de suas atividades Impactos negativos para o profissional na realização de suas atividades Impactos positivos para o alcance dos objetivos da política Impactos negativos para o alcance dos objetivos da política Assistente Social CRAS 1 X X Agente Social – CRAS 2 X X Assistente Social CRAS 2 X X Agente social – CRAS 3 X X Psicóloga CRAS 3 X X Agente social – CRAS 4 X X Assistente Social CRAS 4 X X Psicóloga CRAS 4 X X Agente social – CRAS 5 X X Assistente Social CRAS 5 X X Psicólogo CRAS 5 X X

Quadro 22: Impactos do alto nível de discricionariedade Fonte: Elaboração própria

Para a assistente social do CRAS 1, a discricionariedade facilita tanto a realização do seu trabalho quanto, numa perspectiva macro, o alcance dos objetivos da política, visto que há uma orientação a ser seguida, que possibilita adaptações, mas que dá coesão ao trabalho.

A posição da agente social do CRAS 2 é contrária; para ela, esse alto nível de abertura que a política dá, faz com que os agentes sociais não saibam exatamente o que fazer, o que resulta na existência de políticas diferentes sendo implementadas nos CRAS, não em uma única política pública. Essa configuração relembra as práticas de favor, filantropia, caridade, associadas ao conceito de assistencialismo.

A assistente social do CRAS 2 afirmou que o alto nível de discricionariedade auxilia o profissional a desenvolver suas atividades, mas não soube avaliar como impacta nos objetivos da política, se melhora ou se atrapalha o alcance dos resultados pretendidos.

Já a agente social do CRAS 3 considera que deve haver mais padronização e uniformidade nos atendimentos:

Eu acho que se tivesse direcionado, ele poderia favorecer, padronizar e até melhorar, entendeu? Por quê? Às vezes a gente recebe uma demanda de uma pessoa que foi atendida em outro local que vem pra cá achando que aqui vai ter um atendimento diferente. Então se fosse algo padronizado, fosse um entendimento só, facilitaria (AGENTE SOCIAL, CRAS 3).

Da mesma forma, acha que prejudica o alcance dos resultados da política, visto que acabam ficando à mercê dos interesses e valores dos implementadores, o que não garante efetividade da política.

Quando você dá liberdade para várias interpretações, pra várias tomadas de decisões, você pode atingir o objetivo do atendimento que é esperado, do atendimento...como você pode fugir, não atender. Se fosse uma linha única de direcionamento, eu acho que facilitaria sim. Porque quando se une todos os agentes sociais ou então todos os servidores e a gente vai falar de um atendimento, você vê as diferenças, as inúmeras diferenças de um atendimento a uma mesma questão. Às vezes você fala ‘poxa, eu podia ter atendido assim’, se tivesse algo que falasse ‘tal questão, você direciona assim’. Então você vê que há uma distância no atendimento. Às vezes, a pessoa não se importa. A pessoa não atende o que era pra atender (AGENTE SOCIAL, CRAS 3).

A psicóloga do CRAS 3 possui um entendimento contrário. Para ela, o alto nível de discricionariedade facilita o desenvolvimento dos trabalhos, visto que existem leis que dão suporte e que estabelecem um rumo comum a ser seguido. Em termos de efetividade, afirma que o alto nível de discricionariedade permite adaptação da política às características do território. A assistente social do CRAS 3 respondeu a essa questão de uma forma diferenciada, sem fazer alusão às categorias acima apresentadas. Ela afirmou que o que atrapalha a prestação do serviço e os objetivos da política é a falta de entendimento da rede,

a dificuldade de entendimento da rede, a rede entendida de forma ampla, como uma única rede. Não é a rede da educação, a rede da assistência social, é “a” rede...Sabe esse tanto de rede? É uma rede. Então eu acho

que deveria haver uma troca entre as políticas setoriais, a compreensão da necessidade disso, para evitar principalmente esse empurra-empurra da pessoa, ‘ah não é aqui’, então você vai lá e não é lá também (ASSISTENTE SOCIAL, CRAS 3).

Já no CRAS 4, todas as entrevistadas concordam que o alto nível de discricionariedade facilita a realização das atividades profissionais, mas discordam em relação aos impactos nos resultados da política. Enquanto a assistente social considera que facilita o alcance dos resultados, a agente e a psicóloga acreditam que atrapalha. A posição da psicóloga já foi apresentada: a “falsa liberdade” faz com que medidas sejam iniciadas, mas não tenham continuidade porque o CRAS não possui autonomia para efetivá-las. Já a agente social aponta que, numa perspectiva geral, a falta de comprometimento de uma parcela dos profissionais com a causa da assistência social, inviabiliza o alcance dos resultados. Se houvesse um menor nível de discricionariedade e maior controle, poder-se-ia aumentar a efetividade da política.

No CRAS 5, todos concordaram que o alto nível de discricionariedade impacta negativamente o alcance dos objetivos da política. A agente social defendeu a existência de normas a serem seguidas para garantir a coesão do trabalho e a assistente social relatou a existência de uma lacuna de responsabilidade que tem que ser preenchida pelo profissional:

Acho que atrapalha porque se a gente tivesse algo, uma resolução, instituindo que ‘se o idoso solicitar remédio, o CRAS deverá encaminhá- lo para a Saúde que é responsável por essa compra’, seria melhor porque a gente sabe que existe essa possibilidade, mas fica uma lacuna de responsabilidade que tem que ser preenchida pelo profissional, quando deveria ser preenchida por uma norma, de forma impessoal (AGENTE SOCIAL, CRAS 5).

Quanto à realização das suas atividades, a agente social comentou que é bom que haja essa liberdade por parte do profissional, pois os formuladores da política não têm a vivência de quem trabalha na área. É no dia-a-dia que se tomam as decisões sobre o deve ser feito. Já a assistente social afirmou que, no seu dia-a-dia, conta muito com a rede informal para garantir a qualidade de suas atividades. Reconhece que, às vezes, é bom ter um procedimento estabelecido, burocrático, mas conta muito com “auxílios informalizados, amizade, quebra galho e jeitinhos que a gente pode dar” na realização de suas atividades. Comentou que conta com a sua rede de contatos pessoais, por exemplo, para conseguir emprego para os usuários do PAIF. Por fim, o

psicólogo do CRAS 5 defendeu a diminuição da discricionariedade para evitar que as pessoas atuem em desacordo com o que deveria ser feito.

As falas dos profissionais do CRAS 5 revelam a existência de delegação de importantes aspectos de decisões políticas para os ramos administrativos do governo, assunto abordado por Pandey e Wright (2006) e por Matland (1995). De fato, várias passagens demonstraram que os implementadores da política são responsáveis por tomar importantes decisões que deveriam ter sido tomadas pelos formuladores, visto que são questões estruturais da política, atuando de forma a “preencher lacunas de responsabilidade”. Tais decisões foram passadas para a etapa da implementação, em que o processo decisório não ocorre de maneira formal e explícita como na formulação, mas de maneira informal e desestruturada, com variações ao longo do tempo e entre diferentes implementadores. Os assuntos que, nesta pesquisa, se revelaram negligenciados pelos formuladores da política e que foram repassados aos implementadores, são os relativos à atuação dos agentes sociais e os relativos ao papel e às responsabilidades dos órgãos públicos quanto à sua atuação para superar condições de vulnerabilidade e risco. Na falta de uma orientação, os agentes sociais não possuem uma atuação homogênea, fazendo com que haja variações no atendimento prestado aos usuários. Já no caso da interdisciplinariedade necessária entre as políticas públicas,existe dificuldade em estabelecer relacionamentos e definir responsabilidades, o que acaba sendo feito com base em contatos pessoais e afinidades, remontando a estrutura do assistencialismo.