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Outras possibilidades e aportes necessários na trajetória singular de Michel Pêcheux

2. O GESTO DE ANÁLISE DO DISCURSO: COMO INTERPRETAR A QUESTÃO DA

2.4. Outras possibilidades e aportes necessários na trajetória singular de Michel Pêcheux

A Análise do Discurso inicia os passos de sua consolidação enquanto disciplina dos estudos da linguagem no contexto francês do final dos anos 60, em que muitas questões estavam sendo colocadas ao estruturalismo. Uma grande preocupação do autor e dos pensadores que atuaram no nascedouro da disciplina compreendia teorizar um dispositivo de leitura que colocasse em pauta a questão do sujeito e da ideologia, criando um ponto detonador de questões que trouxessem as contribuições do materialismo histórico para o campo da Linguística.

Michel Pêcheux acreditava que estas eram questões importantes que haviam sido deixadas de lado na Linguística. Neste sentido, o período inicial do percurso teórico traçado constitui-se em um de forte tentativa de construção de um dispositivo para compreender aspectos do sujeito e a sua relação com língua, com claras influências do materialismo histórico e uma ancoragem importante na psicanálise lacaniana.

O primeiro grande texto teórico de Michel Pêcheux, datado de 1969, intitulado Análise

Automática do Discurso (2010) mostra uma forte preocupação com a construção de um

dispositivo que possibilitasse uma análise de corpora bastantes extensos, auxiliados por mecanismos computadorizados que cada vez mais eram aperfeiçoados. Neste sentido, o interesse de Michel Pêcheux por procedimentos informatizados, máquinas e bancos de dados é também uma temática recorrente em sua produção, ainda que muitas das tentativas iniciais presentes em 1969 não sigam tão fortemente marcadas.

Outros conceitos gestados na Análise Automática do Discurso e que discutem os modos como Pêcheux vê a linguagem e a sua relação com o sujeito dizem respeito à discussão sobre a metáfora, bem como a possibilidade de deslizamentos metafóricos, a partir de potenciais pontos de deriva deixados pela construção do sentido. Ainda que se trate de um texto em que muitos conceitos foram revistos, a Análise Automática do Discurso mostra que a possibilidade de o sentido tornar-se outro, dada a sua relação com uma realidade histórica e ideológica, é um dado fundamental na construção de discursividades.

Para Pêcheux (1995; 2010), tal problema é central para conceber uma ciência que dê conta de analisar os processos de subjetivação realizados pelo discurso, pois é precisamente o nível

semântico aquele que revela um ponto de contato crítico entre a linguística e a teoria do materialismo histórico, bem como a possível contribuição de um descentramento do sujeito totalmente consciente operado pela psicanálise.

Em um primeiro momento, as mudanças de sentido realizadas por deslizamentos metafóricos, assim, refletem, o modo como o sentido é fundamentalmente instável, e que a aparência inerte pela qual ele se nos apresenta se constitui por uma série de processos que condicionam a sua realização. Não se trata, então, de apenas um dado basal no funcionamento das línguas naturais, mas também de estados das possíveis inflexões que a história exerce sobre as possibilidades da língua. Em nosso trabalho, os deslizamentos de sentido operados entre enunciados como o controle social da mídia e a democratização da mídia no corpus construído em torno de um meio massivo brasileiro são dados importantes, pois mostram como tais enunciados estiveram submetidos aos conflitos entre grupos políticos e enunciadores das grandes mídias, bem como permite ver o modo pelo qual sua interpretação e produção foram constrangidas no embate a respeito do que se pôde e se deveu dizer em nossa sociedade sobre regular a mídia.

Na trajetória inicial de Pêcheux (2010), todas estas questões culminaram na teorização de um objeto que pudesse abarcar tais rigores pensados pelo autor. Em sua visualização inicial de uma teoria para analisar o discurso, o objeto sob o qual lançar o olhar, estão presentes fortes sentidos do campo da informática e da lógica. Em relação à lógica, vemos resquícios de tal preocupação, por exemplo, no seu último texto publicado (O discurso – estrutura ou

acontecimento), no modo como Pêcheux descreve a existência de pequenos sistemas lógico-

semânticos que fazem parte da relação do sujeito com a história e a língua, culminando na concepção pecheutiana de sujeito pragmático, já tratada neste trabalho.

Em termos de objetos a serem tomados para a análise, vemos um grande interesse no discurso político como um lugar importante de construção de efeitos de verdade, representado, por exemplo, no olhar lançado a textos doutrinários e uma forte relação com o PCF (Partido Comunista Francês), demonstrando inclusive filiação a uma posição militante.

Em seu trajeto teórico, Pêcheux teve diferentes encontros que foram marcantes em seu percurso. Podemos apontar como protagonista a sua relação com as ideias de Louis Althusser,

atuando como devoto aluno, ligação que se mostrou decisiva para o modo como Pêcheux conceberá a relação entre o sujeito e a ideologia, uma marca que se estenderá por toda a produção do autor enquanto linguista e filósofo, mas que se encontra materializada sobretudo no seu grande texto, datado de 1975, intitulado Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1995). Neste momento a reflexão de Pêcheux encontra caminhos que trazem discussões teóricas importantes para a autoria de nosso trabalho.

As perguntas levantadas por Pêcheux que têm uma ancoragem no campo da lógica demonstram que o nível semântico é um ponto crítico na análise da língua, justamente pela maneira como o significado e a produção de sentidos de alguma maneira escapam às possibilidades de uma análise estrutural, trazendo a necessidade de pensar uma relação entre a ideologia e a língua. O nível semântico seria, então, o ponto nodal em que língua e história se relacionam, mostrando a incapacidade até então da Linguística em articular uma teoria materialista com uma teoria dos processos de significação, exigindo a construção (e mesmo a incessante reelaboração) de mecanismos e dispositivos que pudessem dar conta de tal descrição.

Em uma densa discussão sobre como os estudos da linguagem e da lógica se constituíram, o autor mostra que existem mecanismos materializados na língua que possibilitam a construção de efeitos ideológicos, de modo que a concepção pecheutiana de ideologia tem a ver com formas de identificação e construção de efeitos de evidência na língua.

Assim, um dos mecanismos descritos pelo autor é o pré-construído. A análise pecheutiana demonstra que este é um fenômeno ligado ao encaixe sintático, muito importante para mostrar como a língua é o lugar onde potencialmente se dá a construção de alguns efeitos de evidência. O pré-construído traz para a materialidade do texto um dado aparentemente assentado, um já-lá que é tomado com certo valor de verdade; nos textos que analisamos, a noção do pré-construído será importante para descrever relações de paráfrase com os dizeres emergentes na mídia, ajudando- nos a construir o olhar que lançamos aos textos que compõem o corpus que delimitamos. É uma contribuição primordial para uma análise que busca um diálogo entre a história e a linguística, fazendo com que algumas manobras linguístico-discursivas possam ser descritas pelo analista.

Claramente, a disciplina tomou diferentes rumos e o seu arcabouço teórico-metodológico se organizou em torno de um emaranhado de propostas e tentativas. Parece-nos importante buscar

o pensamento de Pêcheux sobre o pré-construído neste texto de 1975 pelo modo como o autor se esforçou em demonstrar que a estrutura da língua (não a da linguagem e não a da comunicação, senão a da língua) possibilita efeitos discursivos que articulam, no gesto da construção de subjetividades ao enunciar, a instância da língua – de caráter sistemático, composta por recursos finitos – e a da história e do acontecimento. Olhando para o nosso objeto de análise, temos uma temática delicada pela relação da censura com um período histórico em que este gesto se deu muito marcadamente.

Mais tarde, a disciplina ganhou o estatuto institucional de fazer parte dos campos de atuação do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique, órgão público francês de pesquisa científica e tecnológica), fortalecendo o trabalho dos estudos que se centraram na importante figura do filósofo. Em uma espécie de visada geral, podemos ver que durante praticamente vinte anos muitos conceitos foram colocados em pauta, rediscutidos e reformulados de acordo com os caminhos epistemológicos tomados. Trata-se, evidentemente, de uma construção de caráter plural que foi ganhando contornos peculiares. Chegaria, também, o momento derradeiro de sua recepção em outras conjunturas, de modo que a Análise do Discurso francesa encontrou fora de seu gérmen grandes possibilidades.

Tendo em conta o modo como reverbera a questão da regulação da mídia (e potencialmente da censura), sobretudo quando posta em pauta pela própria mídia, admitimos que os diversos textos que levantam a questão são de grande interesse ao analista do discurso. Em uma análise que busca um diálogo entre o histórico e o linguístico, podem ser pontuadas as maneiras pelas quais estes enunciados retomam enunciados outros, como vimos ser o caso da censura durante a ditadura militar, no Brasil.

Colocando em pauta uma visada foucaultiana, possibilitaria descrever uma filiação a domínios associados, cuja evocação é simbolicamente efetiva no gesto da retomada. Uma das preocupações do autor é mostrar que a reaparição da materialidade de um enunciado é um acontecimento singular; ou seja: o analista dirigiria seu olhar ao momento em que um enunciado abre espaço para ser interpretado em relação a outro(s). Assim, os enunciados funcionariam como pontos nodais, encontros dessa materialidade proferida com um determinado domínio de enunciados já ditos.

O enunciado não estaria, então, isolado em um ambiente inerte, mas sua própria definição é estabelecida sempre em relação a enunciados outros. Também, não seria um elemento que encontrar-se-ia estável, sem que forças tenham efeito sobre si, e tampouco que este não exerça efeitos em relação a outros. Segundo esta visada que lançamos, a questão principal para o analista seria o porquê de ter aparecido este enunciado e não outro em seu lugar; a potencial retomada seria também um dado peculiar, de modo que o acontecimento de sua volta é algo a indagar-se. Nas palavras do autor, temos de interpretá-lo como “um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre a um jogo enunciativo […]” (FOUCAULT, 2008:112).

Assim, é bastante claro que quando falamos dos percursos de Michel Foucault e Michel Pêcheux estamos diante de dois caminhos que, muitas vezes, se entrecruzam. No entanto, é prudente que tenhamos em conta que, por razões de diversas ordens, tais encontros se dão de forma pouco amistosa, de modo que não poderíamos congregar ambas as contribuições sem o gesto de problematizar algumas de suas semelhanças e diferenças.

Pêcheux, em sua trajetória, preocupou-se de perto com os caminhos que a linguística tomaria, sendo o pivô de um resgate das contribuições do materialismo histórico e da psicanálise para o bojo desta nova ciência que emergiu, a Análise do Discurso. Foucault, por outro lado, ainda que tenha dialogado intensamente com a linguística saussureana e com o materialismo histórico, mostra-nos uma preocupação mais direcionada à história, às problemáticas da historiografia (PUECH, 2014) e – em especial n'A arqueologia do saber (2008) – com os modos como pelos quais se constroem discursivamente saberes em nossa sociedade, sobretudo os que ditam separações muitas vezes tênues. Neste sentido, a construção destas segregações se dá contemporaneamente em superfícies de emergência privilegiadas, como é o caso do discurso político e midiático.

Desta maneira, importam-nos as contribuições de ambos os autores. Em um primeiro momento, o caminho traçado por Pêcheux mostra-nos o papel da luta de classes na construção destes conflitos discursivos, no trabalho simbólico relacionado sobretudo ao poder de propagar-se informação no contexto brasileiro. A visada que constrói Foucault, por sua vez, nos é relevante não apenas na edificação de um gesto de análise, mas também na descrição de regularidades e na

construção do corpus: estamos diante, antes de tudo, de um meio massivo de grande poder e velocidade, uma superfície de emergência de estatuto, que se vale de seu poder e dinamicidade para ditar determinadas leituras destes acontecimentos. O modo como a FSP insta interpretações, assim, relaciona-se intimamente não apenas à construção do que é hegemônico e majoritário no Brasil, mas também à constituição de uma memória discursiva e ao teor das lutas que se engendram para estabelecê-la, significações de direta influência para o sujeito brasileiro que interpreta o discurso político.

Assim, investindo novamente nos pensamentos de Michel Foucault (2008) e de Michel Pêcheux (1995), no capítulo seguinte discutiremos as contribuições de Jean-Jacques Courtine (2009; 2013) para o nosso trabalho, estudioso que se dedicou ativamente à construção da disciplina e ao debate das ideias de Michel Pêcheux e Michel Foucault na Análise do Discurso. Sobretudo, o caminho traçado por Courtine mostra-nos que o sujeito se depara não apenas com um fluxo incessante de comentários verbais sobre tais propostas, mas também com uma circulação de imagens, relacionando visualidade e verbo – circulação que, de fato, se materializou na FSP a respeito da regulação da mídia.

3. A ANÁLISE DO DISCURSO E A SEMIOLOGIA HISTÓRICA: BASES PARA