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O mago

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Capítulo III. Um outro olhar sobre o “mago” em Simão: uma análise a partir dos Atos de

3.1 Fontes

3.2.3 O mago

Na primeira participação de Simão na narrativa canônica ele recebe implicitamente um rótulo que o acompanha até os dias de hoje. Por mais que notemos as investidas dos Pais da Igreja em acrescentar o título de herege que também o desqualifica frente aos cristãos, a primeira impressão indiciada por Lucas como um mago foi bem mais contundente e propagada pelos apologistas do cristianismo primitivo. Por mais que tentemos não acreditar na intencionalidade de Lucas sobre a rotulação de “Mago” posta em Simão, a posição religiosa do autor pode ser tendenciosa, dá para suspeitar que é o escritor quem estabelece a diferença entre o uso técnico e o aspecto pejorativo (MARGUERAT, 2003, p. 146).

Segundo Haar, “estudos mais recentes concluíram que nunca houve um significado inequívoco, universalmente aceito de magia no mundo greco-romano” (HAAR, 2003, p. 133). Há uma ambiguidade no que diz respeito à magia que, por sua vez, pode se estender ao mago.

No ponto de vista do autor o relato de Atos 8 classifica as atividades de Simão como mágicas, portanto, ao classificar as atividades de Simão automaticamente o classifica também. Na verdade, Simão não está só na narrativa, primeiro ele aparece com Felipe e logo em seguida com Pedro, onde todos realizam atividades sobrenaturais. Simão não é o único a fazer magias. Em vez disso, um exame atento da história original em luz das estimativas greco-romanas contemporâneas da magia revelaria Felipe, ao invés de Simão, para ser mago (HAAR, 2003, p. 158).

A partir deste breve relato surgiram as tradições centenárias sobre Simão – o chamado mago. Esta imagem de Simão foi sustentada na imaginação cristã popular principalmente por traduções do Novo Testamento que decifra o particípio presente mageu,wn em Atos 8:9 como prática mágica/feitiçaria. Isso permanece tão independentemente do fato de que praticar como um ma,goj tem muito pouco a ver com “magia” moderna, é mais popularmente entendido o sentido de alcançar efeitos no reino natural através da agência sobrenatural, ou truque de mão. (HAAR, 2003, p. 158)

Percebemos que os pressupostos para a titulação de Simão como um mago surgem na narrativa canônica e, a partir de então, a sua imagem sempre estará atrelada as suas atividades mágicas que por sinal, tem um caráter elevado a feitiçaria. Dentre as observações de Haar, a compreensão da magia moderna não deve ser a mesma do mundo greco-romano. Feitas as comparações aparecerão as diferenças, principalmente no objetivo para o qual era designada. O termo para a magia na literatura cristã primitiva tem outra conotação, ela é posta ao pé de igualdade à feitiçaria. Simão não é um mago semelhante aos apóstolos, mas um mago/feiticeiro e uma ameaça ao cristianismo.

Nos Atos de Pedro, a imagem de Simão está associada às suas atividades. A narrativa não o classifica como “Mago”. A ausência do “Mago” nos Atos de Pedro nos permite olhar Simão a partir de outra perspectiva. Ele, no entanto, não é visto como um mago propriamente dito, porém são as suas atividades sobrenaturais que são tachadas como magias. O personagem está acima de suas atividades, assim como Pedro. Em Atos 8, Simão é submisso e inferior a Pedro e se converte ao cristianismo. Porém, nos Atos de Pedro, Simão é um personagem forte que luta em pé de igualdade com o apóstolo, tanto em magias quanto em discursos, a ponto de suplantar Pedro em alguns momentos.

A obra editada por Jan Bremmer The Apocryphal Acts of Peter: Magic, Miracles and Gnosticism, é uma das raras que tratam especificamente os Atos de Pedro e, sendo assim, trabalha mais o personagem, propondo uma versão sobre Simão longe da que foi posta pelos Atos dos Apóstolos. Nesta obra, Simão é cortejado literariamente, a visão de Bremmer sobre o personagem é mais narrativa e não se prende tanto às suas atividades mágicas.

No que tange o caráter das atividades sobrenaturais nos Atos de Pedro, Bremmer faz um apanhado geral sobre os acontecimentos envolvendo Pedro e Simão que defende a realidade e o entrelaçamento entre a magia e os demônios, principalmente nas magias produzidas por Simão.

Segundo Bremmer:

Nos Atos de Pedro, estamos em vários momentos confrontados com demônios e magias. Em princípio, estas são, naturalmente, categorias muito diferentes, mas no mundo antigo muitas vezes foram associadas através do emprego da magia em demônios exorcizantes. A mistura destas duas categorias aparece claramente na disputa entre Pedro e Simão Mago, que ainda é chamado de Simão nos Atos canônicos e, presumivelmente, recebeu seu epíteto dos cristãos. (BREMMER, 1998, p. 10)

A exposição de Bremmer sobre Simão nos Atos de Pedro se restringe ao fato de suas magias serem potencializadas por demônios, por serem práticas vigentes no mundo greco- romano. A titulação de Simão como um “Mago” não é vista claramente na obra canônica, destarte, há indícios de que é a partir dela que essa nomenclatura pejorativa é dada a Simão e isso se dá por decorrência de suas atividades serem julgadas por autores e defensores do cristianismo.

Embora a estratégia narrativa de não rotular explicitamente o título de “Mago” em Simão seja semelhante entre os dois “Atos”, os Atos dos Apóstolos têm um cunho mais historicista, já os Atos de Pedro se valem do gênero novelístico – os valores narrativos e literários entre ambos são iguais, isto no ponto de vista do conceito de rede textual –. Portanto, a depreciação sobre Simão está estabelecida totalmente sobre a literatura canônica dos Atos dos Apóstolos, que mesmo ausentando a rotulação clara de Simão como um “Mago”, ela pressupõe literariamente que os sinais praticados por ele são magias/feitiçarias.

A narrativa canônica deixa escapar a adesão de Simão à fé cristã, isto é, Simão é um cristão. Por outro lado, ela abafa a sua conversão na objeção de Pedro sobre ele. Não obstante, nos Atos de Pedro essa conversão não é abafada, ela é tenuamente percebida pela aceitação de Simão na ausência da liderança apostólica. A autonomia cristã de Simão pôs à prova a legitimidade apostólica, portanto, Simão é cristão e mago assim como os demais apóstolos, mas é justamente a falta de legitimidade apostólica que descredencia as suas magias.

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