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Pseudoclementinas

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Capítulo III. Um outro olhar sobre o “mago” em Simão: uma análise a partir dos Atos de

3.1 Fontes

3.1.2 Pseudoclementinas

Esta obra possui informações sobre o cristianismo que vão além das muitas que existem e que se propõem em fazer o mesmo. Ela aborda o cristianismo entre judeus, cristãos e pagãos. Ela é completa num ponto de vista histórico-religioso, seus assuntos abordam as temáticas concernentes ao cristianismo em sua fase inicial. A sua autoria é dada a Clemente, o sucessor do apóstolo Pedro. O grego foi a língua original na qual a obra foi escrita. Quanto à data de sua conclusão, estimasse para o Século III, entre 220 e 230 da Era Comum. Dentre os diversos assuntos que as Pseudoclementinas abordam estão os duelos entre Pedro e Simão, como veremos a seguir.

O que torna Simão um personagem importante para o cristianismo primitivo é a extensão da sua presença em outros escritos, como ocorre nas Pseudoclementinas. Segundo Francisco Leite e Eduardo Reis, “narratologicamente o título Pseudoclementinas não se sustenta, pois deriva do pressuposto histórico crítico que avalia a autenticidade desses escritos” (LEITE; REIS, 2011, p. 2). Para os autores, o título é fragmentado internamente e, por isso, não representa todo o conteúdo embutido nele.

Todavia, recebe esse título o corpus literário que abarca três escritos cristãos do Mundo Antigo: Carta de Clemente a Tiago; que se trata de uma correspondência fictícia do bispo de Roma, Clemente, ao “bispo dos bispos”, Tiago que governa a igreja de Jerusalém. Nesse escrito se reúnem as palavras proferidas por Pedro quando era bispo de Roma, no que diz respeito à sua sucessão imediata pelo bispo Clemente, ali são dadas instruções para o comportamento ideal do bispo, assim como as justificativas da escolha de clemente para a sua sucessão. (...) Em seguida vem o Romance de Clemente, também conhecido como reconhecimentos, nesse escrito Clemente conta sua peregrinação em busca do esclarecimento para as suas questões existenciais, que o levou a conhecer o cristianismo e se tornar companheiro do apóstolo Pedro. (...) O terceiro item desse corpus é Kerigmata Petrou que é a reunião de sermões do apóstolo Pedro, retomando os temas apresentados nos dois escritos anteriores. (LEITE; REIS, 2011, p. 2)

As exposições feitas pelos autores ocultam de certa forma Simão, porém quando o leitor se depara com o conteúdo da narrativa, percebe que Simão é um dos personagens principais. Nos “Atos” Simão carrega o cognome “Mago” devido a inclinação da narrativa para esta classificação, porém as Pseudoclementinas retratam um Simão mais teórico e adepto das falas filosóficas, onde o cognome “Herege” ganha mais proeminência. Os duelos e embates entre Pedro e Simão são mágicos e discursivos.

Mesmo não enfatizando a magia para retratar Simão como um oponente do cristianismo, as Pseudoclementinas se utilizam da superioridade do apóstolo sobre Simão para denegri-lo e colocá-lo como exemplo de punição aos que se rebelam contra a igreja e seus representantes. Além dos dados biográficos, os testemunhos são dados sobre os ensinos de Simão, suas reivindicações pessoais, a origem da magia e o progresso da mensagem cristã (HAAR, 2003, p. 110). Simão, o mago, afirma Pedro, é o falso profeta da sua época, ele intenta afastar as pessoas da adoração do único e verdadeiro Deus, para que elas possam adorá-lo como um deus (SHUVE, 2007, p. 6). A falsa profecia ou a heresia são as marcas mais sobressalentes no Simão das Pseudoclementinas.

O que não muda é a oposição entre Pedro e Simão, como ocorre também nos Atos dos Apóstolos e nos Atos de Pedro. Essa oposição de Pedro a Simão revela a importância do samaritano para a historiografia cristã primitiva, pois como percebido em Atos 8, Pedro não vai sozinho para Samaria, João o acompanha, mas é Pedro que se opõe a Simão. O mesmo se assemelha nos Atos de Pedro, onde a igreja de Roma estava sob a liderança de Paulo, porém antes da chegada de Simão se retira para a Espanha. Logo em seguida, Pedro retorna para Roma e vai diretamente em busca de Simão. Para Leite e Reis esse comportamento reverso de Pedro contra Simão também é externado nas Pseudoclementinas.

Os personagens que fazem papel de oponentes na narrativa são Simão, o Mago e sua equipe.Simão era outro personagem redondo, “samaritano da vila de Gitá”, chamado por Pedro de “canalha e malfeitor” casado com Helena e ex-discípulo de João. Apenas esses fatos já são suficientes para demonstrar a antipatia projetada nesse personagem. Além de ser o vilão da história, Simão também faz alusão a um personagem não referido na narrativa – a saber – o apóstolo Paulo. (LEITE; REIS, 2011, p. 4)

A ideia que está proposta nas Pseudoclementinas é clara no que diz respeito a repressão discursiva de Simão diante de Pedro. Os ensinos de um mago precisam ser desconsiderados assim como as magias de um herege. A imagem que as Pseudoclementinas produzem sobre Simão é a de um oponente encurralado, vencido pelas apologias de Pedro e dos demais cristãos e evidentemente próximo de seu fim. Segundo os autores, a antipatia de Pedro com Simão está relacionada também a sua história de vida, por ser ele um samaritano, casado com uma prostituta e ex-discípulo de João.

As Pseudoclementinas também contêm testemunhos dispersos sobre Simão fornecido por numerosas testemunhas (HAAR, 2003, p. 111). A disposição em denegrir a imagem de Simão não se limita somente a Pedro, seu oponente direto. Esta atitude se espalha entre os cristãos de modo que outros personagens assumem publicamente a sua aversão a Simão e aos seus ensinos. Para exemplificar, Haar destaca um fatídico episódio envolvendo Faustiniano, o segundo bispo de Bolonha no Século IV, que sofreu forte perseguição do imperador Diocleciano, conhecida como a “Grande Perseguição”.

O peso coletivo dessas testemunhas oculares serve para denunciar Simão; culminando em um clássico pedaço de propaganda cristã, quando Faustiniano, vestindo o rosto de Simão, confessa ao povo de Antioquia: seja lá o que você estiver, pergunte-me o que foi feito, não por meio da verdade, mas pelas mentiras e truques de demônios, para subverter a sua fé e condenar a minha própria alma. (Ree. X 66) (HAAR, 2003, p. 111)

Tendo em vista a repercussão das batalhas envolvendo Pedro e Simão, esses tipos de manifestações acontecem aleatoriamente nas Pseudoclementinas. Fato que na verdade causa um efeito consideravelmente negativo e depreciativo para Simão, mas que ao mesmo tempo reforça a ideia de que Simão tinha a sua força religiosa como ameaçadora para o cristianismo. Tanto em textos diretos quanto em textos indiretos Simão, seus ensinos e suas magias despertaram preocupações para os cristãos de sua época, principalmente para os seus líderes.

3.1.3 Atos de Pedro

Dentre os escritos cristãos primitivos já mencionados, separamos para a análise da nossa pesquisa os Atos de Pedro que trazem em sua estrutura informações mais abrangentes sobre Pedro e Simão. A ausência de um final lógico para Simão em Atos 8 despertou e desperta o interesse de pesquisadores acerca deste episódio canonicamente inacabado. Desconsiderando a classificação apócrifa, utilizaremos nesta pesquisa os Atos de Pedro não como uma extensão textual dos Atos dos Apóstolos somente, mas como uma narrativa legítima e apta para colaborar com a proposta de visualizar Simão não como um mago em um sentido pejorativo, mas como um concorrente direto, um cristão autônomo e ameaçador para a cúpula cristã primitiva e seus propagadores imediatos.

Ao longo de toda a narrativa, nota-se nas entrelinhas todo um contexto teológico desde a partida de Paulo até o martírio de Pedro. Os Atos de Pedro não pretendem, em nenhum momento, ser um tratado teológico, mas uma novela cristã edificante (PIÑERO; DEL CERRO, 2012, p. 498). O que se pode considerar também é que o teor da narrativa não a qualifica como uma obra antignóstica, seu objetivo se fixa dentro da rivalidade prática entre Pedro e Simão, há na verdade algumas discussões teóricas entre ambos, mas não é o suficiente para taxá-la como um tratado contra o gnosticismo simoniano. O fato de tê-la como “uma novela cristã edificante” refere-se à lição tirada da vitória de Pedro sobre Simão, deixando com isso um modelo didático para quem ousar afrontar a Jesus, a Pedro e o cristianismo.

A maneira com que os textos seccionados retratam a história faz com que os Atos de Pedro se encaixem no gênero novelístico. Para Christine Thomas, “os Atos de Pedro embelezam seus personagens usando os mesmos meios que as novelas, mas a relação com a historiografia difere consideravelmente” (THOMAS, 2003, p. 88). O fato de o texto ter características de uma novela não tira a sua validade histórica, haja vista que seus episódios refletem acontecimentos passados sobre seus personagens principais, não obstante, não fogem de uma realidade presente vivida por seus contemporâneos.

O gênero novelístico dos Atos de Pedro ajuda a expor mais sobre a vida destes importantes personagens para a historiografia cristã. Os episódios contidos em cada seção se misturam com tons reais e imaginários, deixando o leitor da narrativa desejoso para o seu final. Segundo Thomas, o enfeite imaginativo e criativo de uma narrativa “histórica” é uma das características que os Atos de Pedro e os textos relacionados compartilham com uma literatura novelística (THOMAS, 2003, p. 89).

É justamente esta definição que Piñero e Del Cerro defendem, isto é, um gênero novelístico que discorre sobre uma trama que não envolve somente os personagens, mas principalmente os objetivos que são expostos por eles. A liderança cristã em Roma estava em perigo, o líder poderia ser alguém que não se enquadrava no formato existente, o que não era viável para eles. Como é de costume na maioria das novelas, o vilão perde e a honra é dada ao herói. É assim que termina a narrativa e, talvez por isso, é classificada como uma novela.

Os Atos de Pedro inscrevem-se perfeitamente dentro desse gênero novelístico cristão peculiar que temos intentado delimitar nessa introdução geral. Os Atos de Pedro pretendem também entreter, ensinar e edificar, tudo simultaneamente. Ainda que influenciado pela segunda parte da obra de Lucas, não são uma simples continuação dos textos canônicos dos Atos canônicos, nem um relato similar e

paralelo, já que sua intenção teológica é distinta. O autor, reunindo e ordenando uma série de tradições orais já fixas (cf. supra), e adicionando muito de sua imaginação, tenta ampliar e dar corpo para os seus leitores ao que pode ser uma parte importante da vida de Pedro. Se trata, por conseguinte, de uma novela edificante, que pretende transmitir uma visão peculiar da vida cristã baseada fundamentalmente no ascetismo e na misericórdia divina. (PIÑERO; DEL CERRO, 2012, p. 506)

No tocante à sua autoria, os Atos de Pedro não têm um autor definido. Das análises internas da mesma obra podemos deduzir simplesmente que era um homem da igreja, ortodoxo, com uma mentalidade mais “popular” que conhecia a teologia, com formação retórica e um certo verniz filosófico (PIÑERO; DEL CERRO, 2012, p. 514). O latim e o grego são as línguas que compõem os Atos de Pedro. Em um dado redacional, o latim possui uma participação maior no livro, enquanto a língua grega se apresenta no relato de martírio do apóstolo.

Assim como a definição do autor é imprecisa, o mesmo ocorre com o local de sua composição. Por ser a cidade onde ocorrem as principais cenas, Roma é a primeira opção local da autoria do livro, há algumas evidências que atribuem o local de redação para Alexandria e Ásia Menor. Quanto à importância de sua historicidade, os Atos de Pedro não podem ser postos acima de outros documentos, a não ser aqueles que historicamente são mais plausíveis como suas pregações, seus duelos com Simão e o seu martírio.

Os Atos de Pedro em sua composição geral possuem textos que em conjunto sequenciam a história de modo construto e lógico, porém a última seção que trata o martírio não é única, visto que existem outras versões sobre o mesmo assunto, como a copta, a siríaca, a armênia, a eslava, a etíope e a árabe. A primeira seção (1-4) se inicia com o anúncio da partida de Paulo de Roma para a Espanha, em seguida o apóstolo faz sua oração, transmite as últimas recomendações e, por fim, parte. Para Stephen Haar, “o autor delineava os antecedentes necessários e os detalhes para definir o cenário para a competição futura entre Simão Mago e o apóstolo Pedro” (HAAR, 2003, p. 113).

Já a segunda seção (5-6), os cristãos de Roma se alvoroçam com a chegada de Simão, pois ele alcançara uma boa popularidade e apostatou muitos cristãos, menos o presbítero Narciso. Pedro, no entanto, segue a caminho de Roma e no decorrer de sua jornada converte e batiza Teón, o capitão do barco, que tentou convencer o apóstolo a ficar com ele em sua cidade. No conteúdo da terceira seção (7-15), Pedro chega em Roma e faz o seu primeiro sermão de exaltação a Cristo e de afrontamento a Satanás (o mentiroso). Ao ter ciência da

apostasia do senador Marcelo, ocasionada por Simão, Pedro vai até a casa do senador em busca de Simão, pois Simão morava na casa de Marcelo. Marcelo se converte, abandona Simão e o expulsa de sua casa.

A quarta seção (16-21) se preocupa em legitimar o comportamento de Pedro com uma aparição de Jesus ao apóstolo, quando ele pede ajuda ao seu Senhor nos embates contra Simão. Pedro realiza milagres e mais uma vez faz sua pregação exortando os seus ouvintes para que estejam íntimos das Sagradas Escrituras e que permaneçam resistentes às investidas de Simão. A quinta seção (22-29) mostra as visões que o senador Marcelo passa a ter em sonhos e em uma dessas visões Simão é comparado a uma mulher feia, negra, coberta de farrapos, com um colar de ferro e com correntes em suas mãos e pés e, logo em seguida, Marcelo ouve vozes dizendo que essa mulher (Simão) é um demônio. Na sexta e última seção

(30-33) há um novo enfrentamento entre Pedro e Simão, onde relata também o fim das ações

de Simão e o martírio de Pedro.

3.2 Simão: samaritano, herege e mago

Elaborar um relato consistente sobre a vida de Simão e seus desdobramentos não é uma tarefa fácil, porém quando se faz um ajuntamento de informações de documentos que fazem menções a Simão surgem as possibilidades para tal ato. Simão possui uma importância redacional para a historiografia cristã do Século I bastante considerável. Cada documento sobre Simão traz informações novas e algumas conhecidas que preenchem algumas lacunas da sua história de vida.

Tanto o seu local de origem quanto às titulações recebidas ao longo de sua vida são pressupostos narrativos. Alguns documentos, ao citar sua estada em Samaria, criaram a possibilidade de ele ser natural da cidade, o que não é aceito por todos. Se natural ou não, Simão estava em Samaria, e ali realizou muitos sinais e ganhou sua fama, que por sinal não era muito boa. Seus ensinos foram classificados como heresias e seus feitos foram postos literariamente como magia. Mesmo não preenchendo todas as lacunas, os documentos sobre Simão são proveitosos para a pesquisa acadêmica e as incertezas sobre ele não tiram o valor de suas participações nem o desqualifica como um personagem da história cristã primitiva.

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