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Ouvir ou escutar? A importância da Paisagem Sonora

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 29 1 INTRODUÇÃO

4 MUSICALIZAÇÃO INFANTIL E SUAS ESPECIFICIDADES

4.1 Ouvir ou escutar? A importância da Paisagem Sonora

Ao tratar da prática do ensino de música, faz-se necessário que o(a) professor(a) busque o aprofundamento da compreensão do escutar, pois a experiência da escuta é diferente da experiência de simplesmente ouvir. A escuta requer um tipo de atenção e concentração específica que ocorre por meio de uma variedade de experiências vivenciadas. Tugny (2015), ao mencionar o filósofo francês Jean-Luc Nancy, menciona que:

A diferenciação dos termos ouvir, entender e escutar na língua portuguesa não corresponde à diferenciação entre ouir, entendre, e écouter da língua francesa. Aqui estamos diante de uma ambiguidade explorada pelo filósofo carregada pela palavra entendre, que comporta ao mesmo tempo o ouvir – em uma escuta passiva – e o compreender, unindo no português os termos ouvir-entender (uma escuta passiva e outra que carrega em si uma verdade, uma compreensão). O ato de escutar, por sua vez, carrega em si a tensão do órgão do sentido, o desejo, a direção a outrem. A escuta foi então sempre o revés, o outro lado da nossa forma de pensar, entender, fazer ciência, julgar, conhecer e reconhecer. (p. 22)

Escutar, portanto, vai muito além da capacidade auditiva de cada sujeito; implica em abertura de mundo, em disponibilidade permanente de apreender este

mesmo mundo, fruto da curiosidade e do desejo de desvelá-lo. Nesse sentido, é necessário que o(a) docente compreenda que o mundo é musical e está rodeado de ritmos, em que o som se faz presente nas máquinas, nos animais, nas pessoas, na cidade, no campo, sendo audível no vento, na chuva, nos sons do mar e por meio de inúmeras outras formas, meios, lugares e materiais.

Uma das particularidades do ser humano é constituir analogias e desenvolver formas simbólicas de interação com o mundo a fim de se expressar e se comunicar por meio dos sons, cores e movimentos. A música é um recorte do vínculo que o indivíduo possui com a natureza, com a cultura e com ele próprio, pelo fato de, diariamente, lidar com a linguagem musical, mesmo que de maneira despercebida. Logo, ao se ponderar com relação à formação do ser humano, é essencial contemplar esse aspecto:

Perceber gestos e movimentos sob a forma de vibrações sonoras é parte de nossa integração com o mundo em que vivemos: ouvimos o barulho do mar, o vento soprando, as folhas balançando no coqueiro... ouvimos o bater de martelos, o ruído de máquinas, o motor de carros ou motos... o canto dos pássaros, o miado dos gatos, o toque do telefone ou o despertador... Ouvimos vozes e falas, poesia e música... SOM é tudo o que soa! Tudo o que o ouvido percebe sob a forma de movimentos vibratórios. Os sons que nos cercam são expressões da vida, da energia, do universo em movimento e indicam situações, ambientes e paisagens sonoras: a natureza, os animais, os seres humanos e suas máquinas traduzem, também, sonoramente, sua presença, seu “ser e estar”, integrado ao todo orgânico e vivo deste planeta. (BRITO, 2003, p. 17)

A música desempenha, no percurso da formação humana e, consequentemente, no do conhecimento, não somente o papel integrador, mas, igualmente, a função de vivenciar, constituir e valorizar a cultura e a própria identidade, proporcionando ocasiões de conquistas e realizações de projetos pessoais. Sendo assim:

[...] a música deixa feliz quem a pratica, embora não garanta felicidade. Se a atividade de fazer música ocorre num ambiente positivo, instigante e amigo, provavelmente, os praticantes sentirão bem-estar ao tocar, cantar, compor, criar. A música faz parte da cultura de todos os povos. Nas sociedades orais e pequenas comunidades, é parte integrante da vida e todos fazem música sem se preocupar com o fato de terem ou não talento. Nessas culturas, considera-se que tenha propriedades curativas e forças de transformação. (FONTERRADA, 2012, p. 97)

Evidencia-se que o âmago do trabalho musical, como discutido nesta pesquisa, é que o sujeito se torne sensível e perceptível ao universo sonoro,

despertando sua essência de “Ouvido Pensante” (SCHAFER, 1991). Essa essência e esse despertar para os sons do ambiente favorece a percepção para a denominada “Paisagem Sonora”, sendo esse um caminho interessante no processo de musicalização.

Portanto, para garantir que as crianças se tornem críticas aos sons, ou seja, que os escutem, o(a) professor(a) precisa despertar em si mesmo(a) esta sensibilidade aos sons, pois se nele(a) próprio(a) isso não ocorrer, como então mediará situações para que aconteça com as crianças? Importante ressaltar que o(a) docente trabalhará melhor com aquilo que conhece e compreende.

Nessa perspectiva, o conceito de “Paisagem Sonora” criado pelo educador e compositor Murray Schafer, em meados de 1970, parece adequado ao trabalho com as crianças pequenininhas. Este educador estudou os sons que cercam o ser humano (os da natureza: animais, chuva etc.) e aqueles por ele produzidos (carros, máquinas, músicas etc.). Esta expressão refere-se também a todos os sons historicamente registrados na trajetória de vida dos sujeitos. Para o autor, a paisagem sonora é sinônimo de estar receptivo à acústica dos lugares e só se consegue perceber esta acústica ao estipular um trajeto a ser percorrido e atentar aos sons que os envolvem, como por exemplo, ao atravessar “[...] uma floresta densa. Outro rio perdido na neblina. Tecedores de cestos estão indo para casa com seus carros (a roda) [...]. Antes de dormir, muita coisa ainda vai passar pela memória, pois, mesmo uma viagem curta como esta, é cheia de impressões” (SCHAFER, 1991, p. 93).

Em entrevista concedida à Molina e Terahata (2012), Fonterrada declara que as considerações quanto à “sonoridade do mundo em geral” e, portanto, do conceito de paisagens sonoras, surgiu devido à atenção de Schafer com o ambiente sonoro e que, após ter lecionado em uma universidade do Canadá, em um curso de comunicação, os(as) alunos(as) discorriam sobre o som e sobre a poluição sonora e esse “[...] foi o pontapé inicial para uma pesquisa enorme que ele desenvolveu por muitos anos, que é a paisagem sonora mundial [...]” (ibid., p. 108). Desta forma, Schafer pesquisou na história mundial como era o ambiente sonoro e desta pesquisa concluiu que já no quarto mês de gestação o indivíduo vive num ambiente sonoro e que as impressões iniciais, após o nascimento, também são sonoras:

Ele mostra também que, até a revolução industrial que eclodiu no século XIX, a relação homem/meio-ambiente sonoro era equilibrada. Foi no século XIX, e depois do século XX, e está cada vez aumentando mais no século XXI, que fomos desequilibrando esta relação. (FONTERRADA apud MOLINA; TERAHATA, 2012, p. 108)

Fonterrada esclarece que, com este desequilíbrio sonoro ocorreu uma série de perturbações sonoras e que uma das formas de convivência com essas perturbações, de acordo com Schafer, seria uma “autodefesa”, isto é, aprender a se concentrar no que interessa, ignorando aquilo que não interessa e, desse modo, aprender a escutar. Segundo Fonterrada (apud MOLINA; TERAHATA, 2012), na obra de Schafer, denominada: Educação Sonora, ele trata do resgate da escuta, compreendendo como é o som, como se estabelece e se organiza, se é grave ou agudo, longo ou curto, se é feio ou bonito para o(a) ouvinte, se espanta e/ou o deixa feliz ou chateado etc., pelo fato de inicialmente o som ser afetivo e depois ser um componente racional e mental:

A esse respeito, Brito (apud MOLINA; TERAHATA, 2012), esclarece:

Eu acho que essa questão do foco da escuta é fundamental; é aprender a escutar. Quando elas começam a escutar, muda alguma coisa. É a passagem do ouvir para o escutar. Ouvir é um processo fisiológico. Se nosso corpo está funcionando a gente ouve, mas nem sempre escuta. Quando você começa a colocar a atenção, você começa a transformar a escuta. Para o professor que não é especialista, a primeira coisa importante é se voltar para isso. Começar a detalhar a escuta, perceber o que ele tem, o que ele pode fazer, como ele lida com essas coisas, estimular esses jogos

de escuta com os alunos.(p. 112)

Percebe-se assim que, de acordo com Schafer (1991), o conceito de paisagem sonora foi concebido como forma de uma “possível solução” à falta de percepção que os indivíduos têm quanto aos sons que os rodeiam. Dito de outra forma, segundo as ideias do autor, pode-se verificar que se utilizam o órgão auditivo apenas para ouvir e não para escutar os sons e com a ausência de reconhecimento da necessidade do desenvolvimento desta sensibilidade auditiva, houve, e ainda há, o conceito socialmente aceito de que o fazer musical é atribuído a um possível “dom” e que apenas os(as) musicistas possuem acesso a esta arte.

Ao encontro dessa evidência, Fonterrada (2012) afirma que o “[...] distanciamento em relação à música é um fenômeno da sociedade ocidental dos últimos séculos, que sofisticaram tanto a sua prática, que ela se tornou reduto de especialistas” (p. 97). Para a autora, este fato distanciou os indivíduos ditos

“comuns” da oportunidade do fazer musical, pois acabaram por recear a possibilidade de serem “[...] executantes e só se permitem ser consumidores (ouvintes passivos)” (FONTERRADA, 2012, p. 97). Entretanto, se a música for compreendida como experiência a ser vivida, admissível e praticável por quaisquer indivíduos, esta passará a ocorrer de maneira prazerosa e sua compreensão obterá outra óptica, que modificará o sentimento das pessoas ao tocarem, dançarem e cantarem.

Compreende-se, então, que o conceito de “Paisagem Sonora” deve ser bem assimilado pelo(a) professor(a), pois mediar situações que viabilizem a compreensão pelas crianças em relação à diferenciação entre o ouvir e o escutar, é o primeiro passo no trabalho com musicalização infantil nos ambientes educacionais de creche.

4.2 Explorações, escutas e criações sonoras e musicais: o despertar da