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51 pólvora» como sinónimo de inteligência. E os historiadores

fazem dessa invenção — juntamente com a da imprensa, os descobrimentos, e a queda do ramo bisantino do Império Romano— um dos acontecimentos que marcam o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna. Podemos então dizer que a Física atómica conquistou o direito à consideração de toda a gente — do «homem da rua», como hoje usa dizer-se — pois inventou uma pólvora bem mais terrível do que a dos nossos avós. E, se dessa Invenção não vier a resultar a supressão da história, pelo caminho radical da supressão de historiados e historiadores, bem poderá a história de amanhã tomá-la para início de um novo período na evolução da Humanidade.

Mas, chegados a este ponto, é lícito perguntar se ainda poderá falar-se de «utilidade» da Ciência. Tanto mais que a Ciência tem permitido outros inventos menos espectaculosos nos seus resultados, mas não menos apavorantes. Basta lem-brar que, se não conseguiu ainda animar uma máquina e fazer dela um homem, já, pelo menos, consegue abolir num homem a luz da Inteligência e o poder da vontade, e reduzi-lo a um autó-mato que obedece docilmente, passivamente, às sugestões do exterior. Vem assim pôr em risco, não só a vida do Homem e talvez da Humanidade, mas também a sua dignidade de ser racional e livre.

Utilidade técnica e utilidade moral

Para responder a este ponto, é necessário um momento de reflexão sobre o significado da palavra «utilidade». Podemos referi-la a um fim próximo, de ordem técnica; e então julgo bem que tudo quanto disse prova a utilidade indiscutível e emi-nente da ciência pura. Podemos também referi-la a um fim remoto; por exemplo, para tudo o que respeita à sociedade humana no seu conjunto, ao bem comum da humanidade.

Temos então uma utilidade de outra ordem, a utilidade moral;

é essa que nos resta considerar.

Saímos, portanto, dos domínios da técnica, em que os

pro-gressos são recentes e temos de procurar exemplos e opiniões

nos factos ou escritos contemporâneos; e entramos nos duma ciência que atingiu há muitos séculos o seu apogeu. Não é por isso de estranhar que eu procure o parecer de um insigne colega nosso no professorado universitário, morto há perto de 700 anos. Abramos a sua obra capital, na primeira metade da segunda parte, tratado «de virtutibus», Questão 57, art." 1.°^

«Se os hábitos intelectuais especulativos são virtudes». Aí, na conclusão, encontramos o seguinte: Uma coisa «pode dizer-se virtude de duas maneiras: uma, porque dá a faculdade de bem operar; outra porque, com essa faculdade, dá também o fazer dela bom uso. O que... pertence só àqueles hábitos que dizem respeito à parte afectiva, pois é esta que determina o uso de todas as nossas potências e hábitos. Como os hábitos intelectuais especulativos não dizem respeito à parte afectiva..., podem dizer-se virtudes porque nos dão a faculdade de fazer o bem...; mas não podem dizer-se virtudes do segundo modo, como se nos fizessem usar bem dessa faculdade. Pelo facto de alguém ter o hábito da ciência especulativa, fica com a faculdade de procurar a verdade nas coisas que a sua ciência abrange; mas o uso que faz da ciência que tem depende da vontade que o move» (

1

). É essa a sã doutrina. Em linguagem moderna, podemos dizer equivalentemente que a utilidade da ciência pura para o bem comum da humanidade é condicionada, relativa; é como uma quantidade determinada em módulo, mas indeterminada quanto ao sinal. A Ciência representa a possibi-lidade de um grande bem, mas ao mesmo tempo, e na mesma medida, o risco de um grande mal, conforme o uso a que os homens a aplicarem.

A sua utilidade em relação ao fim remoto fica assim dependente da vontade e do carácter dos homens em geral, e, em particular, dos dirigentes dos povos. O que mostra bem ser indispensável, ao mesmo tempo que se ensina a ciência, formar o carácter daqueles a quem se ensina. Pessoa ou insti-tuição, ninguém pode limitar-se a instruir; tem de tomar o pro-blema em toda a sua extensão e procurar, acima de tudo, dar uma educação completa: formação integral além de informação.

(1) S. TOMAS DE AQUINO, Suma Teológica— MI, Q . 57, a. 1, concl.

53 C o n c l u s ã o

Esta obra de educação, sempre a mais vital de entre todas aquelas em que a Humanidade se empenha, cresce em importância à medida que cresce o poder dado pela Ciência ao Homem para bem ou para mal, porque se torna cada vez mais necessário evitar o mau emprego desse poder. Por outro lado, torna-se mais importante assegurar que a educação chega a todos os homens, à medida que crescem em gravidade as consequências possíveis das acções de um só — seja pelo aumento do poder físico concentrado nas suas mãos, seja pelo da repercussão que os meios de comunicação aperfeiçoados permitem dar às suas determinações. Note-se que o aumento da possibilidade de fazer mal conferida a um homem, individualmente, pelo pro-gresso científico, representa sempre um certo risco, mesmo que o progresso da educação caminhe a par com o da ciência.

Realmente, no dia em que baste premir um botão, ou puxar um gatilho, para destruir o mundo, haverá sempre uma probabili-dade, por pequena que seja, de que um homem, por ignorância, maldade ou loucura, o destrua de facto. Mas intensificar e generalizar a educação é a única defesa contra esse risco, ao mesmo tempo que é o único meio de assegurar que as possibi-lidades de bem abertas pela ciência não ficam estéreis.

Bem sei que essa obra, se é fundamental — e agora por mais um motivo — é também difícil para a Humanidade em geral, e até para muitas dessas parcelas da Humanidade que são as nações. Toda a educação pressupõe uma base, princí-pios e directrizes aceitos por todos, sobre os quais ela se funda.

E em muitas nações não é fácil encontrar uma base comum suficiente. Algumas são ainda uma justaposição de elementos heterogéneos, imperfeitamente caldeados; outras, por motivos históricos, são constituídas por grupos irredutíveis, senão hos-tis, de raça, língua ou religião diferentes; outras ainda estão divididas de alto abaixo por conflitos ideológicos. Mas, por felicidade, não é o caso do nosso País. Temos unidade de raça, de língua e de religião; o nosso território está fixado há muitos séculos; temos plena consciência do valor da nossa tra-dição histórica, Apesar de pequenas e inevitáveis divergências,

todos, ou quase, aceitamos os mesmos princípios fundamentais,

que, por felicidade, são precisamente aqueles que a razão e

a experiência mostram serem mais próprios para neles se fundar

a prosperidade dos povos. Cheias de vitalidade e de prestígio,

existem no nosso País as instituições milenárias, familiares

e espirituais, de que depende sobretudo o bom êxito desta

obra. A tarefa da educação, difícil para a Humanidade no seu

conjunto e para muitos países isoladamente, torna-se, por isso,

muito mais fácil para nós. Haja vontade firme de a levar a

cabo; haja critério para fixar as suas directrizes; haja tacto,

muito tacto, para congregar as boas vontades dispersas; e o

nosso país poderá contribuir eficazmente para a indispensável

obra de educação. Bem sei que isso não nos livrará das

con-sequências dos possíveis erros dos outros; as nações, como os

indivíduos, são solidárias. Mas esse risco não deve fazer-nos

desanimar duma obra necessária. Trabalhemos. Como homens,

como universitários e como portugueses, cultivemos a Ciência

e, ao mesmo tempo, esforcemo-nos por formar os caracteres e

temperar as vontades. Seja qual for o resultado do nosso

esforço, teremos pelo menos a consciência de ter contribuído,

quanto nos foi possível, para que a Ciência produza o bem-estar

e a prosperidade dos homens.

C O N C U R S O S (*)