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CONTRADIÇÕES, INCOERÊNCIAS E PATOLOGIAS DO

6.3. P ARA QUE SERVE A FACULDADE DE D IREITO HOJE ?

A narrativa do aluno K nos permite observar alguns pontos curiosos no funcionamento das faculdades de Direito atualmente. Ela nos autoriza a sugerir que, ultimamente, as faculdades vêm exercendo as funções precípuas de (i) certificação e de (ii) criação de redes de relacionamen- to (networking).

A função certificatória pode ser identificada em vários trechos da narrativa de K, como na alusão ao professor que replica provas e tra- balhos já utilizados e ao professor que não comparece às aulas e envia substitutos em seu lugar. Isso demonstra que a preocupação do profes- sor não é com o aprendizado, mas com a capacidade do aluno de acumular conhecimentos e replicá-los quando assim exigido. Talvez seja incontroverso que grande parte dos professores avalia seus alunos por meio de provas ou trabalhos aplicados ao final do curso. O objeti- vo é verificar se os alunos internalizaram os conteúdos lecionados pelo professor e se estão aptos a reproduzi-los. Isso, em si, não é algo posi- tivo ou negativo, mas o que não se pode negar é que esse método de avaliação indica escolhas, ainda que irrefletidas. Como explica Ghirardi (2012), essa dinâmica traduz o entendimento de que não é importan- te avaliar o processo de formação do estudante, ou seja, o processo de produção do conhecimento. Em detrimento do processo de aprendi- zado, opta-se por um único momento avaliativo, cujo objetivo é a avaliação de um produto, o qual muitas vezes não exige mais do que a mera memorização de conceitos.

Tal dinâmica poderia ser substituída pela adoção de outros méto- dos de avaliação, como os seminários de leitura, role play, debates, entre outros. No entanto, como relatado na crônica de K, geralmente esses modelos são utilizados mais como estratégias de transferência de res- ponsabilidade do docente para os alunos do que como avaliação do processo de aprendizado. Isso é corroborado por Ghirardi (2012), que afirma que geralmente os professores que utilizam tais métodos con- tinuam orientados pela função certificatória, pois não acompanham todas as etapas de preparação dos trabalhos.

A função certificatória dos cursos de direito também pode ser explicada pela dinâmica do mercado jurídico hodierno. Em uma dimen- são maior, replicam-se as relações ocorridas no processo de avaliação dos discentes, acima descritas. Nessa medida, às instituições de ensino cabe apenas certificar os alunos capazes de replicar as informações

transmitidas pelos professores. Esse certificado permite a participação em concursos públicos e na advocacia, mediante aprovação no exame da OAB, ambos seguindo o modelo de memorização e reprodução de infor- mação e não de construção do conhecimento. Ou seja, a realidade além dos muros da universidade também é pautada pela prevalência do pro- duto sobre o processo.

Tal realidade explicita a crença de que há uma forma correta de pensar o Direito e de que é possível ensiná-la (GHIRARDI, 2012). Essa forma específica de pensar o Direito é sustentada por conceitos abs- tratos universais que independem do mundo fático. Ou seja, o saber é objetivo e independe das figuras do professor e do aluno. Também é pre- ciso consignar que, ao contrário do que o senso comum possa sugerir, a simples existência de disciplinas propedêuticas no currículo da facul- dade não torna o ensino crítico. Ouvir uma palestra sobre filosofia do direito não significa que o conhecimento está sendo construído de maneira crítica e participativa.2Na verdade, é mais um reforço da dimen-

são certificatória, porque o professor, quase sempre, limita-se a transmitir aos alunos sua visão do sistema jurídico. É melhor que nada, mas muito longe do ideal.

Outro ponto que deve ser salientado é o sentimento, frequente- mente mencionado por K, de que nas aulas não se encontram os conhecimentos necessários para a vida prática das carreiras jurídicas. Parece existir uma grande distância entre aquilo que se estuda na uni- versidade e aquilo que acontece nos escritórios, tribunais, procuradorias e demais espaços de atuação do bacharel em Direito. Isso denota a falta de preocupação com a formação prática dos alunos. A responsabilida- de pelo saber prático, como visto na crônica de K, é transmitida aos estágios, os quais não são fiscalizados (ou o são precariamente) pelas instituições de ensino superior, e acabam influenciando escolhas e posicionamentos que caberia à universidade influenciar. Isso também é resultado do caráter certificatório assumido pelas escolas de Direito.

Também é curioso notar que a maior parte dos professores não atua em regime de dedicação exclusiva,3ou seja, exerce outra atividade pro-

fissional concomitantemente ao magistério. Isso poderia nos levar a afirmar, como acreditam alguns autores,4 que há um ganho no preparo

dos estudantes para a atuação prática, o que contradiria o primeiro ponto, acima indicado. No entanto, cremos que o simples fato de existirem pro- fessores atuantes em outras carreiras jurídicas não autoriza afirmar que

há um ganho na formação prática dos estudantes. Pelo contrário: o fato de essa categoria de professores ser a predominante na maioria nas facul- dades reflete a função certificatória das escolas de Direito. Esses docentes são utilizados como cases de sucesso para atrair e inspirar os jovens estu- dantes que almejam êxito nas diversas carreiras jurídicas. De acordo com essa visão, o procurador, magistrado, advogado etc., que também é pro- fessor, atinge o auge do sucesso, e, desse modo, ser professor é motivo de orgulho e status. Entretanto, o professor de dedicação exclusiva é visto de maneira negativa, como se não tivesse competência para ser exitoso nas chamadas carreiras práticas. Aliás, essa é uma distorção amparada, em certa medida, pelos próprios estudantes, que parecem inspirar-se nos professores que possuem tal status, de maneira a buscar não o aprofun- damento do conhecimento jurídico, mas sim o saber que aquele professor necessitou para alcançar sua posição privilegiada, ou seja, busca-se uma fórmula para o sucesso. Assim, o Direito, em alguns casos, transmuta-se de ciência a sessões de autoajuda jurídica, repleta de ensinamentos como: quer ser magistrado? Pergunte-me como; como passar em concursos públicos e na OAB; e quem mexeu no meu código?

Corroborando esse entendimento, tem-se o fato de que as 1.210 faculdades de Direito do Brasil não apresentam qualidade satisfatória: apenas 90 delas são recomendadas pela OAB (FADEL, 2011), ou seja, apenas 7,5%. A maioria dos cursos não é capaz de formar profissionais qualificados para atuar no mercado de trabalho e um reflexo disso são os recordes de reprovação no exame da OAB, que chegaram a 89,7% na sua última edição (COM REPROVAÇÃO..., 2013).

A outra principal função exercida pelas faculdades de Direito é a de criar redes de contatos. O ingresso no mercado de trabalho advocatício se dá por meio de relações entre aqueles que possuem a certificação das escolas de Direito. Assim, as faculdades tornam-se importantes espaços de networking. É interessante perceber que a função certificatória e a fun- ção de criação de redes estão intimamente ligadas. Possuir o certificado de uma escola considerada de alto nível dá acesso aos outros que pos- suem aquele mesmo certificado, ou seja, dá acesso a uma rede de contatos altamente qualificada.

Acreditamos que a ênfase nos papéis de certificação e de espaço de relacionamento assumidos pelas faculdades de Direito contribuem para tornar as aulas, de modo geral, desinteressantes. Uma vez que tanto o saber prático quanto o teórico não são prioridades das escolas, não há

estímulos ao professor para investir no planejamento, preparo e melho- ria das aulas, das metodologias e do ensino de maneira geral. Quanto aos alunos, estes não se sentem estimulados a participar ativamente dos encontros, não sendo por acaso que, em vez de salas de aula cheias, o que fica lotado são os bares e outros pontos de encontro ao redor das faculdades, visto que mais importante do que participar das aulas é ampliar a rede de contatos. Até porque, no futuro, um desses contatos poderá indicá-lo para algum estágio ou emprego.

Portanto, a responsabilidade pelo saber prático é transferida aos está- gios, enquanto o saber teórico fica a cargo dos cursos de pós-graduação ou dos cursinhos preparatórios, que não necessariamente realizam tal tarefa com qualidade. Assim, teoria e prática do Direito são delegadas a terceiros conveniente e irresponsavelmente por muitas universidades.

Diante disso, ficam as perguntas: por que participar dos encontros? Por que planejar e preparar as aulas? Enfim, para que serve a faculda- de de Direito?

6.4. PARA QUE DEVE SERVIR A FACULDADE DE DIREITO?

Não queremos negar o papel da faculdade como certificadora de conhe- cimento ou como criadora de redes de contatos. Provavelmente são funções relevantes, mas certamente não são as essenciais em uma esco- la de Direito. Sendo assim, qual deve ser a função de uma faculdade de Direito? O modo como respondemos a essa pergunta “revela as cren- ças que temos sobre a universidade, sobre a ciência, sobre o ensino e, no caso dos cursos jurídicos, sobre o Direito” (GHIRARDI, 2012).

Ainda que a lei possa ser questionada como referencial absoluto para dizermos o que se quer das universidades, ela é um bom ponto de par- tida para compreendermos o que a sociedade, ao menos na teoria, espera delas. Nesse sentido, o Decreto nº 5.773, de 9 de maio de 2006, que dis- põe sobre as atividades de instituições de ensino superior, estabelece que “as universidades se caracterizam pela indissociabilidade das atividades de ensino, de pesquisa e de extensão. São instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano” (BRASIL, 2012).

Sem prejuízo de existirem outras funções relevantes a serem desempenhadas pela universidade, tais como espaço de debate políti- co, certificação de conhecimento e networking, declaradamente adota- mos uma estrutura, ao menos formalmente, voltada para o ensino, a

pesquisa e a extensão, além de garantidora de produção intelectual e de professores qualificados e envolvidos com a academia. Contudo, essa moldura não corresponde à função real praticada pelas faculda- des de Direito, como ilustra a narrativa do aluno K.

Florestan Fernandes chama a atenção para a importância de refle- tirmos sobre a forma e o desenvolvimento do ensino universitário: “cada nação e cada povo possuem a universidade que merecem. Acabaremos muito mal, nesse terreno, se não soubermos o que queremos e, princi- palmente, se não soubermos lutar pelo que queremos” (FERNANDES, 1979 apud GHIRARDI, 2012). Ou seja, se não pretendemos que as faculdades de Direito se restrinjam às funções certificatória e de networ-

king, é necessário que paremos para refletir sobre a função do ensino

jurídico e, ademais, sobre como perseguir tal função na prática. Para que seja possível repensar o ensino jurídico no Brasil, um primeiro passo é diagnosticar o problema e é esse o propósito deste texto. A partir da visualização dos problemas concretos enfrentados pela atual arquitetu- ra do ensino do Direito será possível pensar e desenvolver estratégias para reformá-lo. Nesse sentido, os dez mandamentos da docência, desenvolvidos por Eurico Marcos Diniz de Santi e Mariana Fisher Pimentel Pacheco (2012, p. 1) a partir da obra de Paulo Freire (1996), parecem-nos ser um referencial adequado para refletirmos sobre os caminhos e estratégias para aprimorar o ensino jurídico no país:

1. Não há docência sem discência;