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P ERSPECTIVAS DA DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO ADMINISTRATIVA

Além das decorrências possíveis desses fatores demográficos, testemunha-se a especificidade de um período histórico que tem uma característica de dualidade. Por um lado, tem-se a condicionalidade dos aspectos mais amplos, ditados pela globalização dos mercados e pelas inovações tecnológicas que subvertem a soberania dos estados nacionais em sua concepção tradicional e as noções de distância de apenas uma década atrás. Por outro lado, percebe-se que, embora ainda exista uma subordinação da cidade ao estado central, existe também uma certa tendência à sua valorização e ao seu fortalecimento como a célula principal na definição de estratégias de gestão local, com um incremento nas atribuições e na autonomia para lidar com a sua realidade. No Brasil, particularmente, essa condição foi acentuada após a Constituição de 1988, embora a contrapartida dos recursos destinados não venha sendo suficientemente compatível com as responsabilidades acrescidas.

O arquiteto e urbanista Victor Zular Zveibil, Coordenador Executivo do Consórcio Parceria 21 (IBAM, ISER e REDEH) encarregado de elaborar o documento Cidades Sustentáveis que pretende fornecer subsídios para a formulação da Agenda 21 brasileira, adverte para uma incoerência governamental. Enquanto o Ministério do Meio Ambiente promove a elaboração de um documento com a importância da Agenda 21 para as políticas públicas locais, simultaneamente, o governo brasileiro assume um Plano Plurianual de

Investimentos – PPA que prevê ações que pouco incorporam questões básicas

como a ambiental e a exclusão social. Assim,

“Ao mesmo tempo que são cada vez mais retoricamente, explicitadas as responsabilidades e prerrogativas do poder local na gestão ambiental urbana, menores são os recursos e as condições para a implementação de uma política de desenvolvimento urbano que garanta, ao menos, instrumental jurídico adequado e capacitação para essa gestão, pelos atores locais” (ZVEIBEL, 1999).

A compreensão da adoção dessas políticas aparentemente contraditórias, bem como a do duplo movimento existente entre a globalização econômica e o fortalecimento do poder local, exige que se aprofunde o debate sobre o desempenho dos vários níveis de escala de atuação. Essas tendências levantam questões essenciais relacionadas ao papel dos estados nacionais em relação ao incremento do protagonismo econômico, social e político de duas instâncias distintas. A primeira delas, representada pelas grandes corporações econômicas internacionais com seus interesses implantados em territórios espalhados em escala mundial. A segunda instância consiste nas unidades locais consubstanciadas pelas cidades, principalmente aquelas de grande porte, de posições geograficamente estratégicas ou sedes de regiões metropolitanas. Esse quadro pode ser analisado sob duas óticas de considerações. Por um lado, esta nova condição das cidades pode apontar para um fortalecimento crescente das democracias participativas cuja concretização pode-se dar por uma evolução do exercício da cidadania em torno de questões e problemas da sua especificidade local ou mesmo regional. Mas por outro lado, um período com tendências marcantes de globalização econômica e cultural pode significar também um fortalecimento de uma perspectiva “neoliberal”, hoje majoritária, que advoga um Estado mínimo submetido às leis máximas de uma economia de mercado sem fronteiras.

Diante da situação configurada nesse último caso, pode corresponder aos interesses de um determinado ideário liberal, a existência de cidades com maior autonomia e centradas especificamente em aspectos locais e regionais. Para os urbanistas participantes da associação denominada Planners Network, esta tendência se caracteriza sob o mito da “auto-ajuda”, consubstanciado nos “esforços endógenos” e no denominado “ativismo de raízes” (ANGOTTI, 1999). Essa condição reforça a possibilidade de ocorrência de situações que justifiquem a substituição de políticas de ação nacionais mediante a argumentação da ineficácia e da inoperância de estados enfraquecidos. Esse cenário seria aquele em que as cidades se pautassem por projetos próprios circunscritos em sua realidade mais próxima, eventualmente estabelecendo relações globais, mas certamente omitindo e prescindindo da sua relação com um ausente estado nacional. Dessa forma,

coloca-se em risco a sua integridade, comprometendo-se sua condição de agente regulador e coordenador das políticas e estratégias nacionais, capaz de articular integradamente os vários níveis de gestão.

A discussão que envolve o papel dos estados nacionais, mediante um processo acelerado de globalização das relações, é extremamente complexa e se está sendo pincelada no contexto desse trabalho é com o objetivo de se explicitar algumas relações que permeiam a temática urbana e a perspectiva da sustentabilidade. Por se tratar de questões relativamente recentes que ainda não permitiram uma análise mais completa dos seus efeitos a médio e longo prazos nos nossos sistemas políticos, econômicos, sociais e ambientais, quaisquer lançamentos de perspectivas futuras se condicionam às categorias de conjecturas de possibilidades e incertezas.

Não obstante, julga-se relevante abordar algumas ponderações que têm sido formuladas a esse respeito. Existem inúmeras análises críticas relativas aos possíveis efeitos danosos dos processos de globalização, das quais se destacam duas vertentes de considerações. A primeira delas sublinha a vulnerabilidade de regiões inteiras que se tornam sujeitas a uma lógica pautada prioritariamente nos objetivos econômicos e financeiros de grandes grupos internacionais. E a segunda diz respeito àquelas considerações que discutem as novas formas de poder que estão sendo gestadas. O cientista político Marco Aurélio Nogueira traça um panorama da primeira condição:

“Como se não bastasse, a globalização ainda desorganiza os espaços territoriais, excluindo países e regiões do concerto econômico, promovendo polarizações entre regiões de um mesmo país...a distribuição espacial da prosperidade é eminentemente instável...”

(NOGUEIRA, 1997, p. 14).

No segundo cenário crítico, o sociólogo Octavio Ianni coloca em pauta as formas como se estabelecerão as hierarquias decisórias que definirão questões fundamentais como a soberania nacional e a democracia. Para ele, as

organizações multilaterais e as corporações transnacionais têm tido o controle de

“Essas instituições habitualmente detêm poderes econômicos e políticos decisivos, capazes de se sobrepor e impor aos mais diferentes estados-nacionais. Por meio de sua influência sobre governos ou por dentro dos aparelhos estatais, burocracias e tecnocracias, estabelecem objetivos e diretrizes que se sobrepõem e impõem às sociedades civis, no que se refere a políticas econômico- financeiras, de transporte, habitação, saúde, educação, meio ambiente e outros setores da vida nacional” (IANNI, 1997, p. 4).

As cidades vistas sob essa ótica de um cenário limite, representadas por sociedades civis e seus governantes, poderão se tornar reféns de decisões realizadas em âmbitos globais, sem espaço para a conquista de uma efetiva autonomia para o encaminhamento de seus problemas. Alguns autores acreditam que a evolução desse processo político resultará da construção de novas conjunções de poder que se refletirão nas instâncias decisórias dos países. Ao discutir a dimensão política da descentralização administrativa no Brasil, Marco Aurélio Nogueira aponta alguns desafios para que tal descentralização conquiste viabilidade e coerência, mencionando quatro requisitos fundamentais para sua consecução:

1. Buscar o equilíbrio entre a participação e a representação. No primeiro caso, tem-se a manifestação de direitos e interesses particulares e no segundo, dos interesses coletivos ou gerais. Segundo o autor, não existem regras definidas e nem modelos para esse equilíbrio, exigindo, portanto, que sejam criados;

2. Buscar um outro tipo de equilíbrio, só que desta vez no nível federativo. Seria necessário um amplo entendimento político nacional que levasse à depuração e à remodelação das instituições que embasam a federação. Esse processo implicaria em mudança de valores capaz de eliminar os traços de clientelismo e fisiologismo impregnados no setor público e na sociedade civil;

3. Aponta para a necessidade de que a descentralização não perca a sua capacidade de articulação e coordenação. Ela deveria ser participativa e cooperativa para se efetivar como tal, de forma a

resgatar o papel de um planejamento mais centralizado que não se perca na omissão e na descoordenação;

4. Redefinir o papel da cultura técnica e gerencial, o que inclui os atores da “política-execução”. Essa reciclagem de técnicos e gestores da política pública implica na superação do

“patrimonialismo” que privatiza a esfera pública, estabelecendo-se

novas modalidades de hierarquia. Complementarmente, seria necessário se pensar menos nos controles dos processos e mais nos resultados. “A nova cultura gerencial deve estar capacitada a

desenvolver a gestão cooperativa, a promover a cooperação e a colaboração institucional” (NOGUEIRA, 1997, p. 16-17).

Pelos requisitos apontados, percebe-se que, além dos aspectos locais, destaca-se a importância de uma coordenação das ações também em níveis de representação nacional, de tal modo que se possa articular essa descentralização em diferentes patamares de hierarquias administrativa e política. Cabe ressaltar também a importância das conexões entre as nações que objetivem a elaboração de metas e diretrizes conjuntas consolidando parcerias e compromissos supranacionais. Considerando-se que as relações internacionalizadas fazem parte de um processo irreversível, o desafio reside nas formas de entronização dessas relações. Se não houver políticas claras de ação local e de preferência coordenadas a uma política nacional, o risco de se permanecer à mercê dos interesses globais pode gerar distorções nas implementações de políticas urbanas sustentáveis que atendam às especificidades dos diferentes contextos locais. Desse modo, o embate nutrido pelos aspectos decorrentes de interações nos diversos níveis pode apontar para novos arranjos possíveis na conjunção de diferentes instâncias, de onde se permite extrair os elementos que delinearão novas modalidades de implementação de políticas urbanas.