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6.2 A HEGEMONIA DO QUADRO PROGRESSO CIENTÍFICO

6.3.1 Pacientes: aliados atuantes na controvérsia

Entre os grupos de aliados dos cientistas na controvérsia sobre as células- tronco embrionárias, a cobertura das revistas indica que os pacientes foram os que mais manifestaram adesão, praticamente irrestrita, ao quadro progresso científico. De certo que os jornalistas optaram por entrevistar aqueles pacientes e seus

familiares que obtiveram melhoras com os transplantes de células-tronco adultas. Possivelmente, caso as fontes escolhidas fossem outras, entre aqueles que não lograram melhora, haveria a possibilidade de outras interpretações emergirem. Não foi o que aconteceu. As reportagens com maior volume de textos e fotos entre os materiais analisado foram realizadas com a presença de pacientes, suas histórias, dramas para viver o cotidiano e exemplos de superação, após os experimentos. Indicativo do valor noticioso que os depoimentos do pacientes tiveram é o fato de que todas as quatro reportagens de capa sobre células-tronco foram construídas com base nestas histórias.

Imagens de cadeirantes, crianças brincando nos parques, bebês sorrindo, pessoas que recuperaram movimentos alegres acompanham os textos dos jornalistas, que impressionados, ressaltaram as transformações objetivando sensibilizar os leitores, ampliando o tom emocional que os depoimentos trazem, conforme pode ser observado nos trechos abaixo.

Em setembro de 2001, num mergulho no mar de Ubatuba, no litoral de São Paulo, a vida do estudante Giuliano Fávero, então com 23 anos, mudou drasticamente. Um cálculo errado da profundidade da água fez com ele batesse com o peito no fundo. Imediatamente, o corpo parou de responder aos comandos do cérebro. Giuliano não sentia absolutamente nada do pescoço para baixo. Socorrido pela namorada e pelos pais, o rapaz foi levado para um hospital da região. O diagnóstico: fratura de duas

vértebras da coluna cervical. Ele estava tetraplégico. Os meses

seguintes foram de adaptação e preocupação. A saúde de Giuliano tornou- se frágil. Os resfriados eram constantes, bem como as escaras causadas pela falta de mobilidade. A família empenhou-se, então, numa busca frenética por médicos, fisioterapeutas e informações. A fisioterapia recuperou parte da sensibilidade das mãos. Então, pela internet, a mãe de Giuliano descobriu uma pesquisa com células-tronco da Universidade de São Paulo, voltada a pacientes com lesões na medula espinhal. Em 2003,

ele foi um dos selecionados para receber um transplante de células- tronco extraídas de sua própria medula óssea. Hoje Giuliano recuperou parte da sensibilidade das pernas e dos dedos dos pés. Em 22 de outubro passado, com a ajuda de um andador, conseguiu esperar de pé, no altar, pela chegada da noiva, Audrei, a namorada que estava com ele no momento do acidente. "Sinto que essas conquistas foram possíveis graças às células-tronco", diz o rapaz. (NEIVA, Paula. Células

que salvam vidas. Veja Edição 1932, 23 nov. 2005, grifos nosso).

A dona de casa Ana Cristina Souza, de 37 anos, faz parte dessa estatística. Graças à liberdade de movimentos conquistada, Ana já pode chegar de

surpresa à escola do filho Thierre, de 6 anos. Ele não sabe direito o que são células-tronco, mas repete para todo mundo: “Minha mãe ficou boa e hoje veio me buscar”. As ladeiras do Pelourinho já não são

páreo para Ana. Agora, ela consegue vencê-las. É uma grande virada para quem sofre da doença desde 1 ano de idade e passou a infância sem poder brincar. Ana está tirando o atraso. “Ainda não consigo chutar bola com

Thierre. Mas dá para jogar com as mãos”, diz (SEGATTO Cristiane e

BUSCATO Marcela. Por dentro dos novos tratamentos com células-tronco. Época, Edição 475, 25 jun. 2007).

A narrativa de superação com ajuda das células-tronco praticamente estabelece um script muito semelhante entre as reportagens. Está explícito ou implícito o raciocínio de que a ciência avançou, de que as células-tronco são realidade, de que são fatos reais em vias de estabilização e que já transformam em realidade sonhos dos pacientes e potencialmente de muitos outros. Geralmente são iniciadas com a narração da história pelo jornalista de como o “paciente” sofreu o trauma, em casos de acidentes, ou como passou a apresentar os primeiros sintomas da doença, no caso de doenças genéticas e degenerativa. Na sequência, a explicação, em termos didáticos, sobre o que são células-tronco, suas potencialidades e fontes de obtenção. As histórias de outros personagens são retomadas e intercaladas, com descrições das doenças e com detalhes dos procedimentos, além de depoimentos de pesquisadores responsáveis pelos ensaios clínicos. Ambas as histórias são concluídas com final feliz. Também é em relação a este grupo, na maioria das vezes, imaginado, que a ocorrência de palavras como esperança, doença, cura, terapia, transplante está mais presente nos discursos dos jornalistas e nas citações dos pesquisadores e dos próprios pacientes.

Muitos centros brasileiros conduzem experiências nestas áreas. Em 2003, por exemplo, a vereadora Mara Gabrilli, de São Paulo, integrou uma pesquisa do Hospital das Clínicas de São Paulo que tratou 30 portadores de lesão na medula espinhal. Tetraplégica desde 1994 após um acidente,

ela está entre os poucos que apresentam melhora significativa. "Tive aumento do tônus muscular, da sensibilidade à dor e da consciência corporal", diz (PEREIRA Cilene e TARANTINO, Mônica. O sucesso das

células tronco. Isto É. Edição 1987, 28 nov. 2007, grifo nosso).

A Veja foi a revista que explorou inicialmente a associação entre pacientes e o progresso científico. Mas, em termos de inserções e da exploração de imagens, principalmente de crianças, nas suas reportagens especiais, a revista Isto É recorreu, com mais assiduidade, a este expediente. Foram cinco reportagens desta natureza. Inicialmente a exposição maior foi de modo a ressaltar os primeiros resultados das terapias realizadas no país, principalmente nas áreas de cardiologia, diabetes e traumas na coluna cervical. O trecho acima é da reportagem “O sucesso das células tronco”, que é um bom exemplo neste sentido. Ao anunciar a criação de células embrionárias a partir da pele, os jornalistas elencaram diversos experimentos bem sucedidos com células- tronco adultas e do cordão umbilical e os pacientes atuam como “figurantes de luxo”, emprestando suas histórias e ratificando as falas dos pesquisadores, como demonstrado também em dois trechos abaixo da mesma reportagem.

Belos avanços também são registrados pelo imunologista Júlio Voltarelli, em Ribeirão Preto (SP), no tratamento da diabete tipo 1.

Nesta versão da doença, células de defesa do corpo atacam as células que produzem insulina. Por isso, células-tronco são usadas para "refazer Chaa fábrica" de células de defesa, impedindo que continue a produzir células defeituosas. Um dos beneficiados é o estudante Leandro Ferreira, 18

anos. Ele fez o procedimento há um ano e agora usa doses muito menores

de insulina. "Meu corpo produz 80% da insulina de que preciso", conta,

satisfeito.

No Rio de Janeiro, André Lucas Cardoso, oito anos, também atingido pela leucemia, recupera-se graças ao implante de células-tronco feito há um ano no Instituto Nacional do Câncer. As células vieram de um banco público de cordão umbilical. "O tratamento salvou a vida do meu filho", diz a mãe,

Vanessa Salaroli, 26 anos. (PEREIRA Cilene e TARANTINO, Mônica. O

sucesso das células tronco. Isto É. Edição 1987 , 28 nov. 2007, grifo nosso).

Observou-se que dos seis pacientes ou parentes entrevistados e explicitados na reportagem acima nenhum foi convidado a se inserir na controvérsia ou a fazer qualquer avaliação, além do testemunho em relação a sua situação particular. Com a diferença por ter acentuado mais o quadro de incerteza técnica, como veremos em outro tópico deste capítulo, a reportagem “Por dentro dos novos tratamentos com células-tronco” também levam a controvérsia até os sete pacientes entrevistados, conforme indicado nos trechos abaixo.

“O que importa é que o medo de pensar nas consequências da doença desapareceu”, diz. André ainda controla a alimentação. Mas se autoriza

alguns prazeres: em vez de apenas experimentar a musse de maracujá, seu doce preferido, agora come boas colheradas.

Os pesquisadores também observaram um aumento na produção de insulina nos pacientes que receberam as células-tronco. “Não só o sistema

imune deixou de atacar o pâncreas, como algumas células do órgão também aumentaram a produção de insulina. Por isso, pode ter havido uma regeneração”, diz Voltarelli (SEGATTO, Cristiane e BUSCATO,

Marcela. Por dentro dos novos tratamentos com células-tronco. Época, Edição 475, 25 jun. 2007, grifo nosso).

A reportagem citada acima está divida em duas seções. A primeira apresenta a controvérsia e as incertezas que cercam os experimentos e acaba por mostrar um fato científico em desequilíbrio. Na segunda parte, apenas os experimentos bem sucedidos. Nesta os pacientes também aparecem como testemunhas do progresso, praticamente sem questionamentos. Assim, pode-se afirmar que os primeiros usos dos pacientes enquanto fontes não fazem associação direta entre a melhora destes pacientes e o risco em perdê-la em função do julgamento da controvérsia pelo STF. Certamente, esta situação era facilitada porque a controvérsia pública e jurídica não envolvia as células-tronco adultas, as quais foram utilizadas nos ensaios clínicos, e

por isso havia uma barreira de conexão lógica que impediu tal associação. Em suma, os interesses imediatos dos pacientes que foram expor suas esperanças nas células-tronco, em tese, não estavam em perigo no julgamento porque estas células eram de fonte não controversa.

Outros pacientes mais organizados, enquanto grupo de pressão, frequentaram as revistas em defesa das células-tronco, particularmente as embrionárias. Estes “pacientes” não eram efetivamente pacientes porque não havia qualquer ensaio clínico no mundo com células-tronco embrionárias. No entanto, entram na controvérsia, em apoio aos pesquisadores, para que um dia pudesse ser. São os portadores de doenças genéticas que não podem usar células-tronco adultas extraídas do próprio corpo, uma vez que o “defeito” genético está presente em todas as células do indivíduo. Estes “pacientes” atuaram enquanto indivíduos e enquanto coletivo. Juntaram-se a estes, os “pacientes” que vítimas de doenças como Parkinson, Alzheimer, lesões medulares, entre outras. Os grupos de pacientes construíram um movimento na mídia que se aproximou da idéia de participação pública na ciência, mas próximo, do que defendera Bucchi e Neresin (2008), mesmo estando com seus propósitos completamente atrelados aos dos pesquisadores.

A novidade é que além do progresso, estes pacientes acionam também o quadro ético e o político, assim como o fez Mayana Zatz, numa demonstração de translação de interesses: os pesquisadores precisam da autorização do STF para desenvolver seu trabalho e continuar prometendo cura. Os “pacientes” precisam da expectativa de cura, que somente a terá se o trabalho dos cientistas não for interrompido, ou constrangido. As trocas são mútuas. Por conseguinte, a presença dos “pacientes” na controvérsia vai tornando-se mais explícita a medida que o julgamento se aproxima e com ele o predomínio da associação dos quadros progresso e político.

“Os pacientes não podem esperar, porque a doença não espera”, diz Gabriela. SEGATTO, Cristiane. E Gabriela ainda espera. Época, Edição 512, 10 mar. 2008, grifo nosso).

“A luta dos religiosos contra os pacientes que precisam das pesquisas é

injusta”, diz Valdir Timóteo. Ele ficou paraplégico há oito anos por causa de um

acidente de carro. “A Igreja é um império que tem acesso às autoridades de

todo o país e faz valer sua vontade. Os doentes acamados são invisíveis. Ninguém sabe que eles existem.” (SEGATTO, Cristiane. E Gabriela ainda

espera. . Época, Edição 512, 10 mar. 2008, grifo nosso).

“No calor ele elimina sódio e potássio pelo suor e pode se desidratar

em minutos. No frio o risco são as infecções”, diz a avó Edna de Oliveira. A torcida é para que, no futuro, as células embrionárias

acabem com esse sofrimento ” (PEREIRA, Cilene et al. Uma nova

chance para eles. Isto É. Edição: 2013, 4 Jun. 2008, grifo nosso).

As duas primeiras citações são da reportagem “E Gabriela ainda espera”, publicada pela revista Época em 10 de março, dias após a suspensão da sessão do julgamento, em função do pedido de vistas pelo ministro do STF, Carlos Alberto Menezes Direito. Todo o texto é confeccionado em função das reações, apreensões e expectativas de Gabriela Costa, uma jovem de 32 anos que perdeu parte dos movimentos devido a apresentação dos sintomas da distrofia muscular, uma doença genética. O segundo depoimento é de Valdir Timóteo, que vive em cadeiras de rodas em consequência de um acidente de carro e declarou, segundo as jornalistas, “que a esperança dos pacientes e o desenvolvimento da ciência não podem ser sufocados por uma minoria”. Este texto está em sintonia com a posição das jornalistas, que afirmaram: “Os cientistas só terão certeza se tiverem a liberdade de pesquisar” e “Os dois cientistas só puderam chegar a essa invenção porque tiveram a liberdade de trabalhar com embriões”. Ou seja, em meio a uma decisão importante para os cientistas que atuam com células-tronco no país e que pretendiam iniciar ou dar continuidade às pesquisas com embrionárias no País, as principais fontes da reportagem eram “pacientes”. Na revista que mais explicitou fontes consideradas científicas, os “pacientes” foram os porta-vozes da ciência. Eles não estavam ali para propagar as maravilhas que representavam as células-tronco embrionárias, numa exaltação pura e simples do progresso. Estavam como aliados dos cientistas, proferindo um discurso de engajamento político.

O quadro do progresso, nesta situação assumido pelas jornalistas, foi combinado fortemente com os quadros ético e político. O dispositivo de raciocínio ativado aqui é o seguinte: o adiamento do julgamento colocou em risco a vida humana de milhares de pessoas que lutam por uma vida digna e têm nas células- tronco embrionárias a esperança de viver e viver melhor. E pior: este adiamento teve como base meras convicções religiosas de um juiz que é “membro da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro”, quando deveria estar atuando com base na razão do Direito. A combinação destes dois quadros (progresso e político), com inserções da ética na perspectiva dos apoiadores das pesquisas com embriões (da vida x vida) dominou esta última fase do desfecho da controvérsia em termos jurídicos. Entre os pacientes, fora o Movitae (Movimento em Prol a Vida), que melhor

articulou esta combinação na cobertura das revistas.

ÉPOCA – Por que as pesquisas com células-tronco embrionárias devem ser

liberadas no Brasil?

Marisa Moreira Salles - As pesquisas representam uma esperança de

vida a milhares de pessoas. Além disso, nossas universidades têm

pesquisadores de renome internacional nessa área. O Brasil tem uma

longa tradição de qualidade em ciência que vem resistindo às crises econômicas e às mazelas do ensino. Para preservar essa qualidade, é

essencial que as pesquisas sejam promovidas no Brasil. O contato permanente com a fronteira do conhecimento médico facilita a incorporação e adaptação de eventuais tratamentos advindos de outros países.

ÉPOCA – A liberação das pesquisas com embriões representaria a afirmação do Estado laico brasileiro? Marisa - O Estado deve ser

compassivo e democrático. Caso contrário, corre o risco de pregar a intolerância. E estamos falando de vida, de um movimento que apóia a vida, que luta pela melhoria da qualidade de vida.

Os trechos citados acima são da entrevista concedida à Revista Época, em 2 de abril de 2007. Na expectativa de que o julgamento pelo STF ocorresse naquele ano, Marisa Moreira Salles, esposa de Pedro Moreira Salles, presidente do então Unibanco e portador de distrofia muscular, sintetizou bem a associação de ética (vida), progresso (esperança) e político (Estado Democrático). Em outras palavras, sua defesa foi de que em um Estado democrático, guiado por valores, que não os religiosos, o que deveria ser garantido é a liberdade da pesquisa científica, para que possa ser possibilitada a esperança de vida dos pacientes, não dos blastocistos. A expressão “Estado Laico”, inserida pelo jornalista no questionamento feito a entrevistada, conduziu, quer seja de forma explícita ou não, a disputa e combinações de quadros na última fase da controvérsia.