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PANORAMA DO PROBLEMA DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

5. UM EVENTO DE LETRAMENTO EM DUAS CLASSES DO REAJA

5.1 PANORAMA DO PROBLEMA DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

A educação de jovens e adultos (EJA)21 compreende um campo de práticas e reflexão tão amplo quanto supõe a própria terminologia; trata-se de uma "educação" que extrapola os limites da escolarização e vai ao encontro de processos educativos de formatos e modalidades diversos, com propósitos também múltiplos. Pode incluir iniciativas visando à qualificação profissional, o desenvolvimento comunitário, a formação política etc. (SOARES, 2001; DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001). Mesmo quando situada no campo escolar propriamente dito, a EJA apresenta-se como problemática e de difícil delimitação teórico-prática.

Datam da década de 1930 os primeiros esforços para a educação de jovens e adultos, quando começa a se consolidar um sistema público de educação e a Constituição de 1934 menciona a necessidade de se oferecer educação para aqueles grupos. Os anos 40 e 50 presenciaram a extensão do ensino elementar aos adultos, destacando-se as seguintes iniciativas de amplitude nacional: a criação do Serviço de Educação de Adultos (1947), a Campanha de Educação de Adultos

21 A designação EJA será usada aqui para se referir às práticas educacionais que atendem a jovens e

adultos, caracterizados pelas questões sócio-culturais (migração, escolarização, gênero, raça etc.) que os definem em termos de sua identidade social frente ao estereótipo de jovem/adulto (homem, escolarizado, classe média, branco, morador da zona urbana)(Oliveira, 2001; José Santos, 2003; Soares; 2001). A sigla EJA também segue o uso corrente que dela se faz, presente em toda a bibliografia consultada, com exceção de José Santos (2003), o qual fala de EPJAI – educação de pessoas jovens, adultas e idosas, e dos textos do REAJA – Repensando a Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos, programa pesquisado neste trabalho que acrescenta o conceito de adolescente em sua nomenclatura.

(1947), a Campanha de Educação Rural (1952) e a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958).

A "mãe" das campanhas de alfabetização, a Campanha de Educação de Adultos, previa uma etapa de alfabetização de três meses somada à condensação do curso primário em dois períodos de sete meses. Sua instauração destaca-se pelo seu caráter inovador, baseado nos argumentos bem fundamentados de seu orientador, o notório professor Lourenço Filho, e pela amplitude nacional de suas ações. Desencadeou a abertura das escolas supletivas22, acendeu o debate teórico- pedagógico sobre alfabetismo e educação de adultos e produziu o primeiro material didático específico para este público, o Primeiro guia de leitura.

No fim da década de 50, as críticas à Campanha de Educação de Adultos dirigiam-se à sua orientação pedagógica e a deficiências administrativas e financeiras, pelo que veio a ser interrompida. No início dos anos 60, porém, as idéias de Paulo Freire inauguram um novo modo de ver a educação de adultos sob os alicerces de um paradigma pedagógico que pregava a vinculação da alfabetização ao "diálogo e assunção, por parte dos educandos, de seu papel de sujeitos de aprendizagem, de produção de cultura e de transformação do mundo" (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001, p.60). Ressalte-se a importância do Movimento de Educação de Base (MEB), do Movimento de Cultura Popular do Recife e dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, todos do início da década.

O golpe de 1964 interrompeu o processo de mobilização que se iniciara baseado nas propostas freireanas, que se mantiveram no seio de ações educativas desenvolvidas em igrejas, associações comunitárias, sindicatos e outras organizações de oposição à ditadura. O governo militar, por seu turno, permitia a

22 O termo "supletivo" remete à idéia de suprir o tempo perdido, visando a alfabetizar e capacitar

realização de programas de alfabetização assistencialistas e conservadores, até que, em 1967, instalou o MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização – um programa de amplo alcance, que dispunha de vastos recursos (pelo menos nos seus primeiros anos), organização centralizadora e autonomia inclusive em relação ao Ministério da Educação (MEC). O MOBRAL tinha, antes de tudo, a função implícita de legitimador do regime totalitário que o sustentava, levando a todos os cantos do país um sistema de organização impecável e resultados rápidos (que logo começaram a ser questionados) e se apropriando, na superfície, da orientações metodológicas do método de Paulo Freire, esvaziando-as, contudo, de todo o seu sentido crítico e problematizador.

Propunha-se a alfabetização através de palavras-chave, retiradas da "vida simples do povo", mas as mensagens a elas associadas apelavam sempre ao esforço individual dos adultos analfabetos para sua integração nos benefícios de uma sociedade moderna, pintada sempre de cor-de-rosa. (RIBEIRO, 1997, p.26)

Severamente criticado por seus resultados inócuos (os índices de regressão ao analfabetismo daqueles que passavam pelo MOBRAL eram altíssimos), sem apelo político em tempos de redemocratização e sem os recursos financeiros de que já dispusera, o MOBRAL foi extinto em 1985, dando lugar à Fundação Educar.

A Fundação Educar apoiava técnica e financeiramente iniciativas de governos estaduais e municipais e de entidades civis. No período de sua existência, muitas das experiências realizadas nos movimentos de educação popular que sobreviveram durante a ditadura foram aproveitadas, associando-se os seus princípios político-pedagógicos com a promoção da escolarização de jovens e adultos por meio de programas mais extensivos de educação básica. Evidenciava-se a necessidade de uma educação que ultrapassasse os limites da estrita

alfabetização, e os formatos de suplência23 tornaram-se os mais usados nas instâncias que promoviam algum tipo de ação junto aos adultos pouco escolarizados. Nesse período também houve avanço teórico significativo sobre o assunto, e muitas das posturas equivocadas sobre a educação de adultos foram repensadas, pelo menos no campo da teoria.

O principal fator a se observar neste contexto da segunda metade da década de 1980 é o processo de juvenilização da clientela. Vítimas de um sistema educacional falho e excludente, da necessidade de trabalhar cada vez mais cedo, e motivados pela oferta cada vez mais abundante de opções rápidas de conclusão do ensino básico, um número crescente de jovens e adolescentes acedeu à demanda de adultos pouco escolarizados com quem a tradicional educação popular trabalhava há anos. Com a mudança de clientela, as perspectivas de trabalho com alfabetização e educação de adultos precisaram encontrar novos rumos para atender a grupos de jovens e adolescentes.

Com as garantias de educação básica para todos acertada na Constituição de 1988 e a sua enorme demanda, a educação de jovens e adultos deveria ter sofrido um salto qualitativo nos anos de 1990, mas não foi o que aconteceu. Conforme expressam, em unanimidade, Di Pierro, Joia e Ribeiro (2001), Haddad (2001), Pereira (2004), Ribeiro (1997), Jackson Santos (2003) e Soares (2001), a década de 90 constituiu-se numa lacuna no que diz respeito às políticas públicas para a EJA. O PNAC – Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (1990), que se pretendia sucessor da Fundação Educar, não chegou a funcionar e

23 Os cursos de suplência caracterizam-se por oferecer aos alunos a possibilidade de acelerar a sua

escolarização oferecendo cursos condensados correspondentes às séries da educação básica ou o sistema de supletivo em que o aluno recebe sua certificação mediante a realização de provas com conteúdos equivalente aos do ensino regular. Estas opções visavam, a princípio, à reposição da escolaridade de adultos não ou pouco escolarizados; com a juvenilização da clientela, as suplências

sucumbiu com o governo Collor. A falta de incentivos federais levou os programas estaduais existentes à estagnação ou ao declínio, e sucedeu-se a crescente municipalização do atendimento aos jovens e adultos. Em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso, surge o Programa Alfabetização Solidária, ligado à Comunidade Solidária, que, no dizer de Jackson Santos (2003), na maioria dos municípios em que atuou serviu apenas para se legitimar enquanto campanha de alfabetização de caráter temporário com resultados questionáveis. Tem-se, ainda, o PLANFOR – Plano Nacional de Formação Profissional, do Ministério do Trabalho, em 1996 e o PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, instaurado em 1997 numa parceria entre governo federal, movimentos sociais do campo e instituições de ensino superior. Fica evidente a desarticulação dos programas federais de EJA, bem como seu foco limitado a uma ou outra contingência da realidade de 66,2% de brasileiros (censo IBGE, 1996) que tinha, na época, direito à educação básica garantida por lei.

Leôncio Soares (2001) descreve o quadro das políticas educacionais para jovens e adultos no Brasil na última década do século XX, agora já conhecidas pelo designativo "Educação de Jovens e Adultos", destacando o descompromisso das instituições governamentais, de um modo geral, e a atuação importante de organizações da sociedade civil (ONG's, organizações empresariais e sindicais, movimentos sociais), mas que se dão de forma desarticulada, dispersa e descontínua em sua maioria. As conseqüências deste quadro são "os escassos resultados das atividades de alfabetização, a irrelevância dos conteúdos e a precária eficiência e cobertura" (SOARES, 2001, p.208). Por outro lado, os principais fatores que desencadeiam o ciclo de atitudes e ações de desvalorização da EJA podem ser

servem também à regularização das distorções entre idade/série e à aceleração de estudos para adolescentes com baixo desempenho escolar.

apontados: a prioridade conferida pelas agências financiadoras internacionais à educação básica infantil, para evitar que o quadro de analfabetismo se perpetue; a falta de interesse explícito da sociedade em mudar tal quadro de modo a criar uma demanda efetiva por ações pluri-institucionais de combate ao analfabetismo24 (SANTOS,J., 2003; SOARES, 2001).

Atualmente, o Programa Brasil Alfabetizado apresenta-se como o projeto do Governo Federal para intervenção na realidade dos 20 milhões de analfabetos detectados pelo Censo do IBGE de 2000. Implantado em 2003 sob a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil Alfabetizado pretende oferecer àqueles milhões de pessoas, gradualmente, acesso a programas de ensino de leitura e escrita, coordenados pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC) e executados em parcerias com "as organizações governamentais e as não governamentais que têm experiência na área de alfabetização de jovens e adultos" (CARVALHO, 2003, p.10). Ao lado do Brasil Alfabetizado, o programa de maior amplitude em termos de investimentos e divulgação, o Governo Federal mantém o Programa Fazendo Escola – Programa de Apoio a Estados e Municípios para Educação Fundamental de Jovens e Adultos – que objetiva o desenvolvimento de ações conjuntas em regime de colaboração técnica e financeira com os poderes da esfera pública no intento de fortalecer o ensino fundamental para jovens e adultos. Nenhuma das duas iniciativas governamentais de enfretamento do problema do analfabetismo e da defasagem na escolaridade daquele público demonstram diferenciar-se de alguma forma de todas as outras iniciativas testemunhadas pela história recente do país, programas/

24 Soares (2001) comenta que o próprio adulto analfabeto é capaz de exigir escola para seus filhos,

mas costuma se esquivar de movimentos que requeiram a garantia de seu próprio direito à educação. O autor ainda sugere que esse aspecto é um ponto para investigação e que remete, certamente, à

campanhas de modo geral casuísticos, de alcance e aproveitamento questionável tanto por seus métodos quanto por seus princípios constituintes, alguns ainda em vigor como o Alfabetização Solidária e o Pronera, por exemplo, que continuam atuando no país.

Do ponto de vista da legislação específica, a Lei 5692 de 11 de agosto de 1971 consagrou a extensão da educação básica obrigatória de 4 para 8 anos e dispôs regras para o provimento de educação supletiva correspondente a esse grau de ensino para jovens e adultos. A EJA recebeu, pela primeira vez, um capítulo específico na legislação educacional que definiu as suas funções: a suplência – relativa à reposição da escolaridade; o suprimento – relativo ao aperfeiçoamento ou atualização; e a aprendizagem e a qualificação – referentes à formação para o trabalho e profissionalização. A principal característica dessa educação destinada a jovens e adultos era a flexibilidade na organização das modalidades de ensino pelo que eram legitimados os cursos e exames supletivos, centros de estudo a distância, entre outras (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001).

A Constituição de 1988, no artigo 208, determinou a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino fundamental como direito universal para crianças, adolescentes, jovens e adultos. Como já mencionado, também, a instituição da lei não garantiu, nos anos subseqüentes, que tal direito lograsse espaço nas políticas públicas para EJA25. Ao contrário, dá-se um retrocesso no quadro legal. Em 1996, uma emenda à Constituição suprimiu a obrigatoriedade do ensino fundamental aos jovens e adultos, mantendo apenas a garantia de sua gratuidade, desestimulando e desobrigando os Estados a aplicar verbas nas classes de EJA. A criação do

condição de subserviência interiorizada que muitos jovens e adultos pouco ou não escolarizados apresentam.

25 Cf. comentários às paginas 80-81 sobre as políticas públicas de EJA na década de 1990,

FUNDEF26 – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – também desestimulou a abertura de vagas para educação de jovens e adultos quando excluiu as matrículas do ensino supletivo das bases de cálculo do ensino fundamental que geram os repasses de recursos.

Finalmente, com a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei nº 9394/96, o tratamento dado à EJA continua centrado nos exames e nos cursos supletivos, e as idades para acesso a essas modalidades de certificação do ensino fundamental e médio baixaram, respectivamente, de 18 para 15 anos e de 21 para 18 anos. Segundo Di Pierro, Jóia e Ribeiro (2001), esta mudança sinalizou para as instâncias normativas estaduais a identificação cada vez maior entre o ensino supletivo e os mecanismos de aceleração do ensino regular, com vistas na regularização do fluxo no sistema. No âmbito teórico-político das discussões sobre EJA, a nova lei mostra-se atrelada a velhos conceitos, na contramão de toda produção científica que se tem produzido sobre o assunto nas últimas décadas.

Os conceitos subjacentes à lei evidenciam a idéia de reposição de escolaridade para pessoas jovens, adultas e idosas que não tiveram acesso à escola na idade própria, através de cursos e exames supletivos. Ao mesmo tempo em que a lei enfatiza o ensino supletivo para jovens e adultos (reafirmando o que já estava posto na lei anterior, a 5692/71), fica também a idéia de que parece haver uma idade ideal para aprender. Até parece que foram as pessoas jovens, adultas e idosas que não quiseram estudar na idade chamada própria para a aquisição de tais habilidades de leitura e de escrita. (SANTOS,J., 2003, p.57)

Demarcado o panorama em que se inserem as ações de educação voltadas para jovens e adultos, e na esteira das discussões sobre letramento desenvolvidas neste trabalho, a EJA é tomada aqui no seu sentido relacionado com as práticas escolares de ensino-aprendizagem da língua escrita, em particular, um viés assumido por muitas instâncias como única opção provável quando a EJA é

ponto de discussão (as campanhas de alfabetização, por exemplo, ainda são consideradas, por muitos, a expressão exata e suficiente do que seja educação de jovens e adultos)27. Como a maioria dos esforços voltados para a EJA concentra-se, basicamente, na aquisição da leitura e da escrita, ela muitas vezes se confunde com a própria noção de alfabetização de jovens e adultos. A despeito da impropriedade teórica inicial, esta perspectiva parece adequada aqui caso se fundamente nos pressupostos de que:

a) a EJA é um processo dinâmico, não-marginal, não voltado exclusivamente para fins de mercado (capacitação de mão-de-obra), mas construído dialogicamente para fins de inserção crítica e transformadora dos sujeitos na sua sócio-história; b) a alfabetização também é processo dinâmico, indissociável da concepção de

letramento, conforme advogado no Capítulo 2 deste trabalho.

Esta perspectiva é a adotada aqui e é a que se vislumbra no escopo teórico-prático do REAJA – Repensando a Educação de Adolescentes, Jovens e

Adultos –, programa de educação de jovens e adultos que serviu de base para esta

pesquisa.