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3.1 Itinerário inicial

3.2.7 O papel da família

Ao receber o diagnostico de câncer de mama, a mulher começa a enfrentar um momento difícil em sua vida, passando a vivenciar três fases diferentes e complexas: o diagnóstico de estar com câncer; a realização de um tratamento muito longo e agressivo, muitas vezes, com necessidade de retirada parcial ou total da mama para o restabelecimento de sua saúde; a aceitação de um corpo marcado e a convivência com essa imagem. (COBERLINE apud BERVIAN; GIRARDON-PERLINI, 2006).

Além dessas revoluções na vida da mulher com câncer de mama, a família geralmente não estar preparada para encarar o processo da doença e para aguentar o sofrimento da mulher doente, o que acaba por contribuir para que o processo se torne mais sofrido para ela. A família e a mulher precisam de apoio e de orientação, isso porque uma doença fatal é uma das piores experiências para uma família e a torna confusa, sentindo-se incapaz para enfrentá-la. (Idem).

Aproximando essa compreensão do contexto das mulheres biografadas em nosso trabalho, constatamos que a mobilização de estratégias de enfrentamento que eram desenvolvidas por familiares e a mulher doente também significavam arranjos sociais de sobrevivência, elementos que indicavam que o adoecimento não era um dado único experimentado por uma única pessoa. Esse processo ocorria numa diversa gama de interações sociais que alcançavam o seio da família e abalava as relações até então mantidas.

Após o diagnóstico do câncer de mama e da posterior cirurgia para extirpar o tumor, tanto a mulher mastectomizada quanto a sua família enfrentavam uma maratona de consultas, exames e retorno ao médico, de forma periódica. Elas experimentavam um cotidiano cansativo e de afazeres cumulativos que podiam durar anos, multiplicando-se e estendendo-se para outras dimensões, antes restritas ao lar. Essas novas dimensões eram o hospital e as demais instituições de saúde que acabavam tornando-se um “segundo lar forçado” para as mastectomizadas, por razão da necessidade que tinham de percorrerem seus corredores para acompanhamento médico e terapias sem os quais não teriam sucesso na “luta contra a agressora doença”.

Num percurso marcado por incessantes “idas e vindas de casa ao hospital”, estabelecia-se uma rede de relações que colocava à prova a mastectomizada e sua família. Elas teriam que enfrentar a realidade da doença e buscar estratégias para a sobrevivência conjunta: na relação familiar e desta com a doença que impunha novos ajustamentos entre os seus membros.

Para a maioria das mulheres mastectomizadas que biografamos, a família, assumiu um papel capital para a preservação de suas vidas devido à doença, razão pela qual sempre mencionavam o nome do marido e dos filhos, dos irmãos e de outros parentes que fossem importantes na trajetória de sua doença.

Taperoá foi uma dessas mulheres que tinha no seu marido seu maior esteio, impressionando-nos como ele se dedicava a ela, estando presente desde o diagnóstico da doença até a sua morte, apesar das difíceis condições sócio- econômicas em que viviam. Quando estava conosco, ela fazia questão de nos contar a sua relação afetiva com o marido e o respeito que tinha por ele, sobretudo pelo seu companheirismo e sua solidariedade, que iam além da relação conjugal.

Foi uma glória do céu ter meu marido. Sem ele não sei o que seria de mim. Quando eu viajo, ele assume a nossa casinha e toma conta das crianças. Faz a comida, varre a casa e ainda lava as roupas da gente. Quando vou pra casa e não consigo fazer as coisas, ele é quem toma conta de tudo e ainda toma conta de mim. (Taperoá).

Soledade, cujo marido havia falecido, também nos contava histórias de harmonia com a sua família, representada pela companhia e carinho de suas duas filhas.

Os amores da minha vida são minhas duas filhas. Uma deixou de estudar e a outra deixou os filhinhos em casa e o marido e veio embora pra ficar comigo. Só mesmo Deus pra pagar o que elas fazem por mim... Se não fossem elas, eu não sei o que era de mim não. (Soledade).

Contrariamente a Taperoá e Soledade, que receberam apoio da família, Santa Luzia foi a única no itinerário das 12 mastectomizadas biografadas, cuja sorte não foi a mesma das demais. Após a cirurgia para a retirada da mama e de sucessivas sessões de quimioterapia, Santa Luzia foi, paulatinamente, deixada de lado pelo marido, que, a cada dia, se tornava mais indiferente e afastado.

Mãe de seis filhos, Santa Luzia cresceu sob a crença da submissão feminina ao homem e de que a relação conjugal era sinônimo de procriação, como forma de manutenção da família e do casamento. Convivendo com um marido machista, Santa Luzia teria que experimentar uma triste realidade, segundo ela, “uma mais triste que a doença”, que era ver o “marido sair de casa e não voltar mais”, porque não a aceitava “sem o seio”.

Para ele, mulher sem seio não serve pra nada, não é mulher... Se não é mais mulher, ele não quer mais... E olha que ele era daqueles “bem danado”, não perdia tempo não... (Santa Luzia).

Santa Luzia achava uma grande infelicidade “aquilo” que aconteceu, porque ela tinha que “se virar sozinha” para dar conta dos afazeres da casa, de dois filhos e os netos que moravam com ela.

Na sei por que ele fez isso com a gente... Nunca pensei que me operando fosse ser tão ruim desse jeito... Fiquei só com meus filhos e netos. (Santa Luzia).

Essas narrativas contrastantes revelam a importância dos laços familiares no contexto da doença. Quanto mais unida e participativa a família mais fácil era a aceitação do tratamento e o convívio com a doença. No caso de Santa Luzia, a atitude de seu marido provocou nela conseqüências negativas, pois, já não sendo uma pessoa muito alegre, a partir daí, passou a viver muito triste e sem esperança.

Chego em casa e não faço nada... fico na calçadinha de casa, lá no sítio olhando o mato... tô sozinha. Se não fosse o coitado do meu irmão que, quando pode, vem ter comigo tudo era ainda pior. (Santa Luzia).

Mesmo sendo importante, o tratamento médico é apenas um dos aspectos da saúde do paciente e da sua família. Quando existe um caso de doença, possivelmente fatal na família, todos devem cuidar-se. A família deve administrar a situação da melhor maneira possível e aprender que algumas mudanças são inevitáveis. “Talvez o paciente esteja doente demais para cozinhar” e outra pessoa “terá de levar o paciente para as sessões de tratamento”. Além dessas, outras situações surgirão, tanto em relação ao tempo quanto aos recursos da família. Nesse caso, recomenda-se que a família tente continuar vivendo da maneira mais normal possível, como pensa Simonton (1990, p.47).

As mudanças são os maiores motivos de estresse e começam a surgir desde o diagnóstico ao tratamento. Por exemplo, se a família deixar de realizar as atividades laborais e de lazer, o nível de estresse pode aumentar. Por essas razões, a família deve tentar descobrir melhores formas para enfrentar a doença e para se relacionar, gradativamente. (Idem).

As reflexões da estudiosa sobre o relacionamento do paciente com sua família são bem elucidativas sobre a complexidade das mudanças que ocorrem no seio familiar, que necessitam de ajustes mútuos, e colocam a doença como um dado que está além da dimensão do biológico da doença, inserindo-se na realidade social da própria família do doente.

[...] Muitas vezes, as pessoas pensam que o paciente é o único que está estressado, e que o resto da família deve aguentar heroicamente. Mas o cônjuge da pessoa com câncer deve reconhecer: “Estou sob forte estresse, preciso me cuidar mais do que fazia antes”. (p.47-48).

Quando um membro da família olha para si, pode encarar melhor a realidade do adoecimento que o atinge para cuidar de sua vida, não significando que ele deixará o doente de lado, no abandono, como no caso do marido de Santa Luzia. Para tanto, deve existir uma compreensão do contexto da vida do doente e dos membros da família para que possíveis mudanças sejam introduzidas e que o processo de adoecimento possa ser incorporado como uma nova realidade que não pode ser negligenciada no convívio da família em seu todo. A (re)aproximação e o contato físico devem ser estimulados com freqüência para que paciente e família possam interagir mais intensamente.

A pessoa nuclear da família deve ter a preocupação de cuidar de si para poder conviver e administrar as situações difíceis que surgem no curso da doença e de seu convívio com o membro doente. O cuidado consigo para poder cuidar do outro é condição central para a relação com a mulher com câncer de mama, já que, sem uma estrutura familiar, que lhe dê um mínimo de suporte emocional e social, a doença pode repercutir dramaticamente, além dos problemas que naturalmente já se colocam. Para se manter alguém saudável, o princípio também é procurar manter-se de igual forma.

[...] Como a família é uma equipe, ou um sistema, quando um dos seus membros se torna saudável, cria-se um efeito sinergístico: o todo é maior que a soma das suas partes. Ao refletirem sobre a estratégia a ser adotada, os integrantes da família devem pensar em cuidar de si mesmos e, ao mesmo tempo, funcionar em equipe. A atenção dada às necessidades pessoais é uma parte primordial da luta contra o câncer. [...] (idem, p.49).

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