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Papel institucional da Defensoria Pública e panorama da instituição possibilidades

8 Defensoria Pública e meios alternativos de resolução de conflitos

8.1 Papel institucional da Defensoria Pública e panorama da instituição possibilidades

A Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição cidadã por trazer direitos e garantias individuais expressivos depois de um período de ditadura militar, definiu como objetivos fundamentais da república a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; bem como a promoção do bem de todos (artigo 3º da CF/88).

A fim de atender a esses objetivos, o artigo 5º, inciso LXXIV, da Carta Magna de 1988, dispôs que a assistência jurídica integral e gratuita é um direito fundamental dos necessitados. Por sua vez, a Defensoria Pública, por mandamento constitucional, foi a Instituição destinada a prestar esse serviço (artigo 134 da CF/88).

A Defensoria Pública é, portanto, instituição permanente e essencial ao sistema de justiça, sendo expressão e instrumento do regime democrático196. Tem a incumbência

constitucional, nos termos do artigo 134 da Constituição Federal, de prestar orientação jurídica, promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos das pessoas carentes de recursos.

Importante destacar, em relação ao assunto, diferença na normativa atual, alinhada à alteração constitucional, que dispõe a atuação da Defensoria Pública como “assistência

jurídica integral e gratuita”, em oposição à “assistência judiciária”, consubstanciada na

previsão legislativa contida na Lei 1.060/50, conhecida como “Lei da Justiça Gratuita”.

Desde 1947 as Constituições Federais trazem menção à prestação, pelo Estado, do serviço de assistência judiciária gratuita, mas sem especificação sobre quem prestaria o serviço e no que consistiria. Aprovada a Lei 1.060/50, restringe-se a ideia de assistência judiciária à mera gratuidade de justiça àqueles que não possuíssem condições de pagar as custas do processo judicial.

Contudo, pelo viés constitucional, assistência judiciária seria a possibilidade de se acessar diretamente o sistema judiciário por quem não detém condições de pagar pelos serviços de um advogado. Nesse sentido José Moacyr Doretto Nascimento leciona:

A “assistência judiciária” versa apenas sobre a instrumentalização da dedução da pretensão jurídica no sistema atual, partindo da premissa que, via de regra, o jurisdicionado não possui capacidade postulatória como eflúvio natural da simples cidadania ou nascimento com vida. Isto é, a assistência judiciária refere-se à concessão de profissional que irá postular em juízo em nome da parte processual.197 (NASCIMENTO, p. 219)

A alteração na expressão constitucional, portanto, longe de ser mera formalística ou modificação desprovida de sentido, trouxe profunda transformação de sentido, que culmina com a fixação de conteúdo de atuação da Defensoria Pública. Assistência jurídica é conceito muito mais amplo do que assistência judiciária, que pressupõe, apenas e tão-somente, uma forma de acesso ao Poder Judiciário, por meio de profissionais capacitados para tal finalidade. Por outro lado, a assistência jurídica engloba o acesso ao Judiciário, nas situações em que se faça necessário, e também a aplicação de outras formas de resolução de disputas ou, ainda, atuação extrajudicial integral com a finalidade de preservação de direitos do usuário.

Nesse sentido, as leis regentes da Defensoria Pública vieram acolher e estabilizar a previsão constitucional, ampliando sobremaneira a atuação da instituição para a promoção do acesso à justiça (assistência jurídica) dos necessitados.

Em âmbito nacional, a Lei Orgânica da Defensoria Pública é a Lei Complementar n° 80/94 (recente e relevantemente alterada pela Lei Complementar 132/09), ao passo que a normativa estadual em São Paulo é a Lei Complementar Estadual 988/06.

Seus objetivos institucionais são a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; a afirmação do Estado Democrático de Direito; a prevalência e efetividade dos direitos humanos e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 3° LC 80/94). Ao lado dos objetivos da instituição encontram-se seus princípios institucionais: unidade, indivisibilidade e independência funcional de seus membros (artigo 134, §4°, da CF/88).

Importante ressaltar que a recente alteração da redação do artigo 134 da Constituição Federal, levada a efeito pela EC 80/2014, alçou a Defensoria Pública a patamar ainda mais relevante dentro do sistema de justiça, uma vez que qualificou a instituição de “expressão e

197 In A Defensoria Pública e a Lei de Assistência Judiciária: Releitura Constitucional da Gratuidade

instrumento do regime democrático”198. A definição de “expressão e instrumento do regime

democrático”199 reforça a ideia de que a Defensoria Pública, como instrumento de efetivação

de direitos humanos, possibilita que a população marginalizada e vulnerável tome ciência de seus direitos, reivindique-os e exerça, assim, a sua cidadania, participando efetivamente na construção de uma democracia participativa.

A instituição possui a relevante missão de levar a justiça aos que dela mais necessitam, aos excluídos e marginalizados. Considera-se que a Defensoria Pública não se resume a um serviço de assistência, mas sim de mudança de realidade, de promoção social, de distribuição de justiça.

Maria Tereza Sadek afirma:

As possibilidades de superação da exclusão passam necessariamente por políticas voltadas para a efetivação dos direitos. Não se trata de sensibilizar para a caridade, mas para a construção da cidadania. Na caridade o que se propõe é a beneficência, que envolve a generosidade do superior em relação ao inferior. Na construção da cidadania, ao contrário, o que está em jogo é o direito e não o favor; é a igualdade e não uma relação de assimetria200.(SADEK,P. 14)

Interessante analisar o relevante papel da instituição no que se chama “Empoderamento Legal dos Pobres” (“Legal empowerment of the Poor”), desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pelo qual se afirma que as pessoas vivendo na pobreza, em regra, não logram dela escapar porque se encontram permanentemente excluídas da jurisdição estatal. A garantia de acesso à ordem jurídica justa aos mais necessitados seria um mecanismo de empoderamento que permitiria certa mobilidade social201.

Os defensores públicos são, portanto, agentes de inclusão, cabendo a eles a difícil tarefa de dar voz e visibilidade aos marginalizados, trazendo-os para o sistema de justiça. Boaventura de Sousa Santos aponta:

198 Cabe traçar um paralelo entre a redação anterior do artigo e a redação depois da Emenda:

Antes: A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV;

Depois: A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo- lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

199 A expressão já era mencionada na Lei Complementar Federal n° 80/94, em seu artigo 1°, depois da alteração

promovida pela Lei Complementar 132/09.

200 Prefácio “Defensoria Pública: um agente de igualdade”, in Uma Nova Defensoria Pública pede Passagem –

reflexões sobre a Lei Complementar 132/09, p. xiv.

201 CAROTTI, Andréa Sepúlveda Brito, Propostas para uma atuação estratégica da Defensoria Pública

Dentre as instituições do sistema de justiça, a Defensoria Pública é a que melhores condições tem de contribuir para desvelar a procura judicial suprimida. Em outras palavras, se tivesse que responder à pergunta sobre qual o contributo da Defensoria para uma revolução democrática da justiça, diria que caberia aos defensores realizar o que tenho designado sociologia das ausências, reconhecendo e afirmando os direitos daqueles cidadãos intimidados e impotentes, cuja procura judicial e conhecimento dos direitos são suprimidos e activamente reproduzidos como não existentes, quando na verdade são quotidianamente esmagados pela linguagem esotérica das profissões jurídicas, pela presença arrogante e pela maneira cerimonial de vestir das autoridades estatais, pelos edifícios ostentosos e secretarias labirínticas dos tribunais, etc.202(SANTOS, 2009).

Ressalte-se que o conceito de necessitado para a atuação da Defensoria Pública não se reduz aos economicamente hipossuficientes, mas pode ser alargado para inúmeras situações de vulnerabilidade, social ou pontual, que justifiquem a intervenção da instituição.203

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2903, da Paraíba, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, teceu os seguintes comentários acerca da importância da Defensoria Pública no que tange à concretização de direitos dos necessitados:

A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas - carentes e desassistidas -, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado. De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir- se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam - além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares - também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República.204 (MELLO, 2005).

É bem verdade que a Defensoria Pública, apesar da enorme importância social e constitucional, não está totalmente estruturada em vários Estados da Federação. São Paulo,

202 Apadep em Notícias Ano I, n° 07, Jan/Fev 2009, disponível em

<http://content.yudu.com/Library/A154yl/APADEPemNotciasJanei/resources/7.htm>

203 A respeito do assunto, veja-se a Deliberação n° 89/2008 do Conselho Superior da Defensoria Pública do

Estado de São Paulo, que traça os parâmetros para a definição do hipossuficiente com o fim de analisar a viabilidade de atendimento pela Instituição Paulista: < http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=2485&idModulo=5010>

por exemplo, somente criou sua Defensoria em 2006205, 18 anos após o comando

constitucional, mas ainda vários anos antes do Paraná e de Santa Catarina, recém-criadas. A relevância da instituição pode ser verificada da constatação de que segundo o Censo de 2010 do IBGE, 60,70% da população brasileira vive com menos de 1 (um) salário mínimo per

capita - a população atendida pela Defensoria Pública, portanto, abarca mais da metade da

população nacional206.

Em que pese tal relevância e potencial de atuação, a assistência pela Defensoria Pública ainda não é garantida em assustadores 72% das comarcas – ou seja, em 72% dos locais que possuem ao menos um juiz, a população em condições de vulnerabilidade não tem seu direito de acesso gratuito à justiça garantido por um defensor público207. Nesses locais,

comumente a OAB presta serviços de assistência judiciária, assim como algumas faculdades de direito, ONGs e profissionais pro bono. Contudo, tendo-se em vista que a Defensoria Pública é a instituição com atribuição constitucional exclusiva para a defesa dos necessitados e que sua atuação envolve muito mais do que a assistência judiciária, a população sofre inegável prejuízo com o déficit de Defensores Públicos e as deficiências verificadas nas Defensorias já instaladas.

Por essa razão aprovou-se a mencionada Emenda Constitucional n° 80/14, resultado da chamada “PEC das Comarcas” ou “PEC Defensoria Para Todos” que, além de alterar a redação do “caput” do artigo 134, ainda estabeleceu comando nas disposições transitórias ordenando que os Estados da Federação instalem Defensorias Públicas em todas as suas comarcas, no prazo de 8 (oito) anos208.

205 Não se pode deixar de apontar, entretanto, que muito embora a Defensoria Pública em São Paulo somente

tenha sido criada formalmente em 2006, desde 1947 o Estado de São Paulo realizava os serviços de prestação de assistência judiciária gratuita à população carente por meio da Procuradoria do Estado e seu órgão Procuradoria de Assistência Judiciária, instituída pelo Decreto-Lei 17.330 de 1947 (disponível em <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto.lei/1947/decreto.lei-17330-27.06.1947.html>). Dessa forma, antes da criação da instituição com atribuição exclusiva para a prestação de assistência jurídica integral e gratuita o serviço era prestado em São Paulo por Procuradores do Estado integrantes do órgão mencionado. Importante destacar, ainda, que com a criação da Defensoria Pública facultou-se aos Procuradores do Estado atuantes na Procuradoria de Assistência Judiciária a opção por permanecer na atividade e transferir-se para a Defensoria Pública. Na ocasião, 87 procuradores assim optaram e hoje são Defensores Públicos.

206 Considerando-se a média de rendimentos mensais que em regra é critério de atendimento pela instituição – em

São Paulo a renda familiar tem que corresponder a até (três) salários mínimos para que a pessoa seja atendida.

207 http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria/deficitdedefensores

208 "Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo

serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.

§ 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.

§ 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional."

Embora já houvesse menção nas leis orgânicas federal e estadual da Defensoria Pública acerca da possibilidade de atuação com os meios consensuais ou extrajudiciais de resolução de conflitos, a Emenda Constitucional 80/14 expressamente alçou tal possibilidade como função institucional constitucional, em clara declaração de princípios acerca da importância atual da utilização de métodos extrajudiciais para a resolução de conflitos, ao lado da jurisdição estatal.

A menção expressa no texto constitucional retira qualquer papel secundário da atuação extrajudicial e fortalece a aplicação de métodos e programas consensuais no âmbito da instituição. No sentido da educação em direitos, ainda, leva ao conhecimento da população em geral a importância do tema, retirando da atuação judicial a ideia de paradigma e passa a ser paralelo a esta, em cumprimento da missão constitucional de prestação de assistência jurídica integral e gratuita.

Como já se mencionou, não é incomum o pensamento de que os métodos consensuais de resolução de conflito são menores do que a jurisdição estatal, menos importantes e menos sérios, de modo que a população em geral, principalmente a carente, público atendido pela Defensoria Pública, tem a tendência de rejeitá-los. A exclusão em que vivem gera a expectativa de resposta estatal como solução única para seus problemas, aliada à falta de empoderamento para o tratamento de seus próprios conflitos.

Neste momento, a menção constitucional possui o relevantíssimo papel de educar para o novo, proceder à tão esperada mudança de mentalidade, firmando posição acerca da importância da utilização dos meios consensuais, ao lado da jurisdição estatal, como forma de acesso adequado à justiça efetiva.