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5.1 Os romances: um desafio para os autores ou para a crítica?

5.1.3 O papel do leitor

No entanto, a velocidade não implica superficialidade dos personagens e sua caracterização não é entregue de todo de uma vez só. Ao longo da trama, aqui e ali, vão sendo espargidos comentários sobre eles que vão aos poucos tornando a narrativa mais complexa, aproximando o leitor da subjetividade desses personagens, aumentando a tensão. A linguagem fluida, nesse sentido, acaba funcionando como uma “armadilha” para o leitor. Em contraposição à agilidade narrativa, a leitura precisa se conter e se deter nos detalhes para que a leitura seja fiel ao narrado, e não raro acaba sendo necessário voltar e reler novamente o texto para retomar algum detalhe que passou despercebido.21

O leitor, diz Izer, tem um ponto de vista móvel, errante, sobre o texto. O texto nunca está todo, simultaneamente presente diante de nossa atenção: como um viajante de carro, o leitor, a cada instante, só percebe um de seus aspectos, mas relaciona tudo o que viu, graças à sua memória, e estabelece um esquema de coerência cuja natureza e confiabilidade dependem de sua atenção (COMPAGNON, 2003, p. 152).

Nesse sentido, entendo que esses romances acabam se prestando a dois tipos diferentes de leitura– podemos pensar aqui numa obra plural, segundo o conceito de obra

aberta, formulado por Umberto Eco. Uma é aquela do leitor que busca apenas

entretenimento, que lê o livro sem compromisso, apenas para ter prazer em alguns momentos de lazer, em busca das cenas de ação que o distraiam. Outra é aquela do leitor que busca fruição,22 que está mais atento aos detalhes, que dialoga com o narrador e questiona o que lê.

Ainda no que diz respeito ao potencial dado pela leitura, vale comentar que, no conto “Pierre Menard, autor del Quijote”, de Borges, a reescrita ipsis litteris d’O Quixote

21 Pelo mesmo motivo não se dança durante uma apresentação de rap. Os movimentos ritmados da plateia são

limitados, de modo que não se perca a concentração em relação à mensagem que está sendo passada pelo MC.

22

Remeto-me aqui aos conceitos de texto de prazer e texto de fruição tal como definidos por Roland Barthes, em seu livro O prazer do texto (2002, p. 20-21): “Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.”

por Pierre Menard é considerada não só uma nova obra, mas uma obra melhor. Na medida em que O Quixote de Cervantes é escrito por um autor espanhol do século XVII e O

Quixote de Menard é escrito por um francês do século XX (que, por sua vez, é escrito por

um argentino) – para além da diferença da posição de autoria, que já é significativa e por si só já situa a obra em vários sentidos –, temos aí uma distância temporal que afeta completamente a leitura.

Se, mutatis mutandis, esse argumento – de que a interpretação de uma obra sofre alterações quando esta é lida em um novo contexto temporal e espacial – pode ser considerado válido, o estatuto do leitor ganha uma dimensão inesperada. Nesse sentido, assim como os leitores podem atribuir novos significados a um texto com o passar do tempo, podemos pensar igualmente nesse deslocamento dentro de um mesmo recorte temporal, a partir de outras categorias que, assim como o tempo, contribuem para a concepção de uma miríade de olhares sobre um determinado texto. Categorias como localização geográfica, faixa etária, classe social, nível de formação, gênero etc. também são determinantes em relação à forma como diferentes leitores se apropriam de um texto literário contemporâneo, bem como em relação aos julgamentos de valor a que a obra é submetida.

Desse modo, é de se esperar que entre os moradores da periferia haja uma identificação maior com as obras gestadas dentro desse mesmo espaço periférico e que abordam com um olhar de dentro os seus temas e problemas. A dificuldade de adentrar na obra que um leitor alheio a esse universo enfrenta, sem dúvida é bem maior. Exemplo tácito dessa “barreira linguística” são as gírias utilizadas abundantemente nos diálogos entre os personagens.23 Se para os jovens da periferia essa é a linguagem natural que empregam no seu dia a dia (o que aproxima os leitores da periferia das obras), para os leitores de classe média, por exemplo, as gírias tornam o texto por vezes hermético. Dizer que esses textos são difíceis por causa das gírias implicaria perguntar: – Difíceis pra quem, “cara pálida”? Na obra O demônio da teoria, de Antoine Compagnon, lê-se que o texto é:

23 Por exemplo: dá uma ripa (trabalhar), sair no desbaratino (sair disfarçadamente), capar o gato (ir embora),

tru ou truta (amigo), treta (confusão). Vale acrescentar que nos romances os autores também se valem de um recurso muito comum no rap, que é o uso exagerado de palavrões. Em Voix du rap, Anthony Pecqueux (2007) esclarece que esse recurso é intencional. A construção de um rap tem uma preocupação muito forte em manter a atenção do ouvinte, assim, muitos elementos são utilizados nesse sentido, a exemplo da interpelação do ouvinte, também muito frequente. Pecqueux comenta que o uso comum de um palavrão em uma letra não teria o mesmo efeito, mas repetir várias vezes um palavrão provoca um impacto maior no ouvinte, que passa então a prestar mais atenção no discurso.

uma estrutura potencial concretizada pelo leitor, na leitura, um processo que põe o texto em relação com normas e valores extraliterários, por intermédio dos quais o leitor dá sentido à sua experiência do texto. Encontra-se neste caso a noção de pré-compreensão como condição preliminar, indispensável a toda compreensão, que é uma outra maneira de dizer, como Proust, que não há leitura inocente, ou transparente: o leitor vai para o texto com suas próprias normas e valores (COMPAGNON, 2003, p. 148-149).

Isso evidencia que o problema de uma aceitação da obra pelo mercado hegemônico – e pela crítica acostumada a uma forma literária um tanto quanto arraigada em determinados valores – está antes na figura do leitor, que não está habituado, que na habilidade do autor. O leitor só enxerga inicialmente aquilo que ele já conhece, nós lemos o mundo a partir do nosso referencial. Talvez por isso que, nessas obras, muitos críticos ressaltem a violência das favelas em primeiro plano – que é o que seu repertório já saturado pela mídia permite ver –, sem conseguirem chegar a alcançar as minúcias do texto. É nesse sentido que a crítica de Lucía Tennina se destaca, por ter conseguido capturar a sensibilidade narrativa que confere uma identidade aos personagens e restaura sua humanidade.

Capão pecado busca, sem dúvida, aprofundar nesse “pôr os pés no chão” e o faz

por meio da dilatação de momentos íntimos ou familiares de cada um dos personagens que participam da história relatada. Diante da presença reiterada do ato violento nos discursos dos meios de comunicação, que o tratam com como um ato banal, provocando assim um sentimento de medo e impotência nos espectadores, os relatos de Ferréz buscam explorar as causas e os pensamentos, desnaturalizando o ato em si (TENNINA, 2017, s.p., tradução nossa).

Tennina aponta esse cuidado com a complexidade dos personagens também no segundo romance de Ferréz:

Os personagens de Manual prático do ódio são particularmente trabalhados: os “maus” nesse livro não completamente maus, todos têm uma rotina que os humaniza (a maior parte dos fragmentos, por exemplo, inicia com o despertar do personagem, ou seja, o enfoque é sempre íntimo e afetivo), uma história de amor ou algum tipo de vínculo amoroso e alguma cicatriz que se coloca como causa do ódio atual (TENNINA, 2017, s.p., tradução nossa).

É justamente por meio desse procedimento que se processa a transmutação do olhar do leitor, que de forma empática, revê seus próprios valores.

As normas e os valores do leitor são modificados pela experiência de leitura. Quando lemos, nossa expectativa é função do que nós já lemos – não somente no texto que lemos, mas em outros textos –, e os acontecimentos imprevistos que encontramos no decorrer de nossa leitura obrigam-nos a reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos (COMPAGNON, 2003, p. 148-149).