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Uma quebrada que fala, uma periferia que se escreve

Considerando que situo meu objeto de pesquisa na produção dos autores da periferia urbana, antes de me deter nos textos literários, é necessário refletir acerca do que seja essa periferia, pois entender como ela surge e as vivências que implica é importante para entender a lógica que estrutura tais textos e os problemas ali colocados, na medida em que os caminhos percorridos conformam as ideias dos sujeitos, quer sejam autores ou personagens. Assim, é preciso relembrar o fato de que essa periferia, tal como se configura hoje no Brasil, foi resultado, em princípio, de um processo intenso de migração do campo para a cidade, fato que já institui um forçoso desajustamento original. Penso aqui no desajustamento em função de sua noção prevista no dicionário: falta de adaptação entre duas ou mais coisas, inadaptação de um organismo às condições de um determinado ambiente. Para ilustrar esse estranhamento, trago as palavras de Sérgio Vaz, em sua crônica “Como nasce um taboanense”: 15

Essa onda de frio que assola o país nessa semana fez-me lembrar de uma coisa que aconteceu comigo logo que cheguei aqui em Taboão, há quinze anos. Não foi amor à primeira vista. Lembra-se de Caetano em Sampa: “... é que narciso

15 Apenas para esclarecer, acrescento que Sérgio Vaz é de Ladainha, cidade do noroeste de Minas Gerais com

cerca de 17 mil habitantes. Taboão da Serra, por sua vez, é um município localizado na Região Metropolitana de São Paulo.

acha feio, o que não é espelho...”, pois é, foi assim quando eu cheguei. A cidade nunca me pareceu feia ou fria, ou coisa assim, apenas era estranha pra mim, e eu estranho para ela” (VAZ, 2011, p. 72).

O Brasil, no início do século XX viveu um período ascendente do desenvolvimento industrial. Nesse momento, os investimentos no setor agrícola deixaram de ser rentáveis, e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) dificultava as importações, o que direcionou os investimentos para o setor industrial. Este fato contribuiu para a aceleração do processo de urbanização, visto que se exigia uma grande quantidade de mão de obra disponível para trabalhar nas unidades fabris, o que atraiu os migrantes do campo (onde as condições eram desfavoráveis) para as cidades. Na segunda metade do séc. XX, o Brasil tornou-se um país majoritariamente urbano, com mais da metade de sua população residindo nas cidades.

A região Sudeste, após a Revolução de 1930, recebeu grandes investimentos do governo federal, tornando-se o principal centro de atração populacional. Os migrantes que ali chegaram eram constituídos por trabalhadores desqualificados e mal remunerados, que foram, então, estabelecendo-se na periferia das grandes cidades, especialmente do Rio de Janeiro e São Paulo. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada − Ipea (2011) mostrou que ainda hoje se sente esse movimento de deslocamento, visto que 45% da população adulta que vive em São Paulo tem sua origem em outros estados e países. E é importante notar que, destes, os migrantes oriundos do Norte e do Nordeste são os que têm a pior renda e a escolaridade mais baixa.

Especialistas comprovam que a população das periferias sofre, em média, maiores níveis de privação que as populações do centro da cidade, ou seja, em números, a renda média, a quantidade de anos de estudo e o desempenho educacional diminuem à medida que a população avaliada encontra-se afastada do centro da cidade. Em contrapartida, a violência e o número de homicídios aumentam consideravelmente. E daí é possível relacionar outros agravantes, como o subemprego e o desemprego, a falta de saneamento entre outros. 16

Esta pesquisa tem um interesse especial sobre o espaço em que se dão essas narrativas, porque, muitas vezes, é na forma diferenciada com que o ambiente e os objetos são percebidos e descritos que se encontra a chave para completar os sentidos do que está sendo narrado. Outras vezes, é no espaço que os personagens depositam seus afetos, de tal forma que o bairro ou a cidade passa a ser também um personagem e até protagonista.

Nesse sentido, na apresentação do livro Literatura, pão e poesia, de Sérgio Vaz, Heloisa Buarque de Hollanda afirma que

essa pegada literária do lugar-personagem é uma inovação interessante. Não é mais objeto dos devaneios românticos sobre a paisagem, não é mais fator determinista das ações como no naturalismo, não é mais índice nacional como no modernismo. É um local eloquente, um fator literário e textual forte tão importante quanto seus habitantes (HOLLANDA apud VAZ, 2011, p. 13).

Vale dizer que a literatura de elite, de um modo geral, e a crítica que a ela se dedica têm se debruçado sobre questões como a transnacionalidade, a fluidez, a fragmentação, a perda do sentimento de pertencimento e da identidade, que se relacionam com os espaços por onde seus personagens circulam em virtude de sua relação com a temática da migração.

No entanto, há outra realidade, cada vez mais cercada por muros, grades, condomínios fechados, cadeias, enfim, diversos elementos que limitam e restringem a mobilidade para outros personagens que não são problematizados nessas narrativas. Em um texto intitulado “Sobreviver em São Paulo”, publicado em 2004 na Folha de S. Paulo por ocasião do aniversário da cidade, Ferréz diz:

Não há vagas, mas há espaço para todos, desde que cada um esteja no seu devido lugar, certo manos? Esse é só um lado da cidade? Pode ser sangue bom, mas é o lado que conheço, que convivo, de onde vejo somente as costas do Borba Gato,17 segurando seu fuzil, deixando claro que estamos sendo vigiados, [...] o lado de quem não tem lado, de quem nunca é retratado [...]. E todos falam prá caramba, montam tese, mas passa um dia aqui prá vê se sobra orgulho dos textos mentirosos, dos verbos bem colocados, das frases bem montadas, que emocionam, que chocam e que no final são tudo um monte de mentira, porque a São Paulo que te cerca é de concreto e a nossa é de lama.[...] Sampa city você é meu berço, pois não nascemos com nenhum de verdade.18

Ou seja, pensando-se no “efeito-barragem” que o centro exerce sobre a periferia nos grandes centros urbanos, na territorialização enquanto controle ao mesmo tempo físico e simbólico e na limitação dos espaços que se dá também em função da cor e da diferença social, interessa, então, estudar a literatura produzida nas periferias urbanas dos grandes centros e a singularidade das experiências ali narradas no que diz respeito à forma peculiar como o espaço da cidade se manifesta e se afirma nesses discursos. Para Rogério Haesbaert (2012), “a materialidade do espaço, como um de seus componentes fundamentais, não pode aparecer dissociada das representações que (através) dela construímos”.

17 Estátua em homenagem ao bandeirante Borba Gato, erguida na altura da Av. Santo Amaro, nº 5.700,

localizada em uma região fronteiriça entre os bairros ricos de São Paulo e a periferia (Taboão da Serra, onde mora Sérgio Vaz, e Capão Redondo, onde mora Ferréz).

Para ilustrar como esses problemas são colocados nas narrativas, cito uma cena de

Capão pecado que ilustra bem essas implicações:

Os pensamentos do homem o transportavam a algo real e persistente. Caminhos em círculo. Paranoia do cotidiano. [...] Sua consciência em jogo. Sentia-se preso, embora estivesse em liberdade. Há pouco ele invadira a casa de um playboy nos Jardins. Agora, no ônibus periférico, rumando para casa, a visão era outra. As casas iam aparecendo, uma após a outra. Sempre mal-acabadas (FERRÉZ, 2005b, p. 66).

Aqui se verificam dois conflitos: o conflito exterior, entre as casas dos Jardins (bairro nobre de São Paulo) e as casas mal acabadas da periferia; e o conflito interior do personagem, que “sentia-se preso, embora estivesse em liberdade”, porque mesmo vendo a injustiça à sua volta, o encarceramento social em que se encontrava, que talvez justificasse seus atos, ainda assim, sentia-se culpado pelo que fez, mesmo que talvez sem muita alternativa, já que morava em um bairro em que “a lei da sobrevivência é regida pelo pecado” (FERRÉZ, 2005b, p. 54).

Em virtude da globalização e por meio de uma desterritorialização das culturas, é possível que artistas de vários lugares, ainda que distantes, identifiquem-se com outros de diferentes pontos do mundo. Isso se dá de forma intensa no movimento hip-hop e no

rap, cujas formas de expressão se orientam e se influenciam mutuamente, sobretudo, em

função dos meios de comunicação, da indústria fonográfica, da TV a cabo e da internet. Nesse processo, diluem-se noções como identidade nacional para reforçar a unificação de outras identidades culturais: a do negro, do excluído, do periférico etc. E ainda, de acordo com José Carlos Gomes Silva (1998, p. 11), em sua tese sobre o rap em São Paulo:

Enquanto expressão das ruas, a cultura hip-hop apoiou-se na rede de vizinhança, no grupo de amigos, nas crews ou posses19 e nas festas de rua, que nos anos 70 dominavam o Bronx nova-iorquino. Por isto se diz que a principal característica da cultura hip-hop é o fato de encontrar-se imersa na experiência local. De fato, esta tem permanecido como referência para busca de soluções, interpretações e ações coletivas. [...] A filiação do movimento hip-hop à localidade conduziu a experiências nas quais o estético surge como reelaboração da realidade mais imediata.

Citando as palavras do grupo de rap Otraversão, em uma das cartas que abre cada uma das partes de Capão pecado,

19 As posses são grupos de jovens que se organizam em torno do movimento hip-hop. Constituem-se em um

espaço coletivo de aperfeiçoamento artístico, troca de conhecimentos e discussão de questões atinentes ao movimento negro, à realidade periférica, entre outras, bem como de proposições de ações e mobilização política.

periferia é tudo igual, não importa o lugar: Zona Oeste, Leste, Norte ou Sul. Não importa se é no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Brasília ou em São Paulo. Enfim, seja lá qual for o lugar, sempre serão os mesmos problemas que desqualificam o povo + pobre, moradores de casas amontoadas uma em cima das outras.

Mas e aí? Fazer o quê? Como diz o Tim: – Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir...

Mas como todos nós sabemos que é muito difícil fazer com que o mundo inteiro nos ouça, nós mandamos um toque daqui, do nosso canto; [...] um lugar chamado Capão Redondo! (OTRAVERSÃO apud FERRÉZ, 2005b, p. 69)

Assim, nesse mesmo trecho, o autor reflete que, se por um lado há uma voz que quer falar para o mundo, por outro, está em jogo também a percepção de que, se essas produções têm como proposta a denúncia de injustiças e discriminação, precisam voltar-se para a realidade do seu próprio lugar, pois urge que o problema seja resolvido localmente. E então, uma vez gerados na periferia brasileira, os raps, por exemplo, incorporam as referências locais a seus discursos, sofrendo, inclusive, alterações de forma – no caso dos

samplers, são incorporados sons do samba, embolada e outros; e no caso das letras, faz-se

referência a elementos da cultura e à realidade locais, quer seja para criticar ou mesmo exaltar, no caso daqueles que servem como modelo (daí a constante menção a artistas como Sabotage e Cartola).

E é assim que a palavra escrita e cantada da periferia tem conquistado espaços até então vedados a ela no campo literário. Segundo Tricia Rose,

O grafite e o rap foram demonstrações públicas agressivas de uma outra presença e voz. Cada um assegura o direito de escrever – ou melhor, de

inscrever – uma identidade em um meio ambiente tão resistente quanto um

teflon para os jovens de cor; um ambiente que tornou legítima a falta de acesso a materiais e à participação social (ROSE, 1997, p. 211, grifo nosso).

Essa produção, então, viabiliza-se como uma possibilidade de subversão ante a imposição de subalternidade, como espaço para evidenciação e denúncia das injustiças, do preconceito, bem como de questionamento do status quo e afirmação de novas identidades. E o poder simbólico pelo qual esses autores lutam perpassa tanto o espaço físico da cidade – dado pelo enfrentamento centro versus periferia –, quanto o espaço sob uma perspectiva sociocultural.