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5.1 Os romances: um desafio para os autores ou para a crítica?

5.1.2 O ritmo

Entre uma de suas características mais marcantes, observa-se que, de um modo geral, nos romances periféricos, a narração assume um ritmo veloz, que impulsiona a leitura quase como se estivéssemos acompanhando um filme de ação. De acordo com o próprio Ferréz (informação verbal),15 a sua escrita tem a velocidade do rap, por isso ele opta por abrir mão de vírgulas ou pontos, conforme o caso, na intenção de assim conferir mais emoção às cenas. Isso contribui para garantir o clima de tensão que perpassa a narrativa, envolvendo as situações-limite a que constantemente são submetidos os

personagens. Como afirma Donaldo Schüler, “ritmo não é enfeite, entra na estrutura da obra literária ligado à significação e à distribuição das palavras no tecido verbal” (1989, p. 18). Nas letras de rap, a pontuação costuma ser dispensada, e tampouco pausas são dadas ao final dos versos, que aparecem mesmo encadeados. Isso não significa prejuízo para a compreensão do discurso, porque o rapper tem, no lugar da pontuação, o flow. O flow é a forma pela qual o rapper encaixa os versos da letra na batida da música. Cada rapper tem um jeito próprio de fazer isso, e é o que os diferencia entre si para o público, é a marca de estilo, como uma assinatura.16 A capacidade de compreensão de uma letra está, assim, diretamente ligada à execução do flow pelo rapper e à intimidade que o ouvinte vai adquirindo com ele, ou seja, depende da cooperação do auditor. Em que pese a existência de uma norma-padrão, é preciso considerar, no que tange à comunicação, que a falta de pontuação só é um problema quando limita as possibilidades de compreensão do texto. Na transposição do rap para a literatura, a falta do elemento musical exige uma habilidade do autor na construção das frases a fim de manter o ritmo. Por isso é comum a intercalação de uma sequência de frases curtas e de uma frase mais longa, de modo que a leitura avança sem se tornar entediante.17 O Manual prático do ódio é repleto de parágrafos em que as descrições dos personagens ou a narração da ação é entremeada apenas por vírgulas, sem pontos entre as frases:

Nego Duda acordou cedo aquele dia, muito calor e pouca ventilação na casa feita em mutirão por seu pai, que nesse dia fazia 54 anos de vida, Nego Duda pelo menos ia dar os parabéns para o velho, seu irmão não, certamente nem lembraria da data, estava muito ocupado enchendo o carro de mulher e a barriga de cerveja, nunca reclamou de nada, nunca culpou ninguém, sabia que desde que sua mãe faleceu as coisas já tendiam a piorar, mas o pai fazia de tudo para que não faltassem as coisas básicas para casa, não era de muito luxo, mas sentia uma dor que não sabia explicar (FERRÉZ, 2003, p. 39).

Percebe-se também que a economia narrativa conta com um procedimento elíptico, que ajuda bastante para esse efeito de agilidade, como em “[Fazia] muito calor e [havia] pouca ventilação”. O uso de orações coordenadas, sobretudo assindéticas, a narração no presente ou no pretérito perfeito, são outros exemplos de elementos linguísticos que contribuem para a velocidade narrativa e a manutenção do ritmo.

16

É comum para os apreciadores de rap dizer que gosta de um rapper A ou B por causa do seu flow (e não da sua letra ou da sua batida).

17 Essa é uma recomendação conhecida há muito tempo entre escritores. Gary Provost, no livro 100 Ways To Improve Your Writing, oferece conselhos para uma boa escrita, entre eles, o de variar o comprimento das

Entre outros recursos que conferem agilidade à narrativa e que também são comuns em letras de rap, é frequente o recurso a resumos narrativos, em que os personagens são situados em relação a acontecimentos do passado, sem que seja preciso recontá-los em detalhe. Assim acontece por exemplo na letra de “Quando um pai se vai”, de GOG,18 que nas duas primeiras estrofes reporta-se rapidamente ao passado, quando o pai deixou a família, para justificar a situação vivida no presente. Após esse breve resumo, há um corte (“vou deixar essas ideias de lado”), que quebra com o expediente memorialístico para relatar as dificuldades por que a família passa no restante da música:

Ele partiu e no seu lugar ficou o vazio Me lembro bem o dia, nem se despediu, Brigou, falou, sem pensar e saiu, Foi melhor, nunca o vi tão hostil Meu sobrinho me disse que ouviu

Ele perguntar (lá no bar) - o supletivo, pra que serviu? 5 anos desempregado, vivendo de bico

É mais triste que o penalti perdido do zico vou deixar essas idéias de lado

Vida é vida não é campeonato Mas na real, vou te confessar

Pensei que ia voltar, cansei de esperar E em desespero eu andava em círculo E o natural veio de capítulo em capítulo Num cubículo minha mãe, meus irmãos e eu Sem água, comida, energia, no breu

Num sofrimento sem par,

Hoje almocei, mas não sei se eu vou jantar, Por mim, consigo aguentar

Mas minha mãe não consegue mais amamentar [...]

Logo no capítulo 3 de Capão pecado, por exemplo, o narrador faz um breve resgate do passado para justificar a opção de Capachão por morar sozinho, longe dos pais. O narrador lembra que quando pequenos, em Belo Horizonte, ele e seus irmãos gostavam de brincar de tocar campainha e correr, mas a mãe transformou a brincadeira em uma rotina humilhante de tocar de porta em porta nas casas nobres da cidade para pedir pão. O que costuma ser uma lembrança comum de infância (quem nunca brincou de tocar a campainha e correr?), passa a ser um trauma. O desgosto do filho é assim resumido:

Sua mãe comia mais que todos, e os pequenos não se importavam com isso, pensando que seu pai não enviava o dinheiro, que era sua obrigação. E foi quando descobriram que dona Alzira recebia o dinheiro todo mês e que gastava

com bebedeiras e jogos de azar que Capachão começou a odiar a própria mãe (FERRÉZ, 2005, p. 27-28).

Outro recurso que acelera o ritmo narrativo é o uso de elipses, que fazem a história passar de um tempo a outro, de uma cena a outra rapidamente. Esse procedimento, que acentua os contrastes, apesar de suprimir um espaço temporal da narração, conta também com a habilidade do leitor, que com tudo que já foi dito e tudo o que conhece (aqui também convocado como “perito”),19

é capaz de preencher a lacuna com imagens previsíveis. Por exemplo, em Capão pecado, ao final do romance, Rael e Burgos rendem Seu Oscar e invadem sua metalúrgica. Rael queria se vingar do homem que roubou sua mulher e decide forjar um assalto para poder matá-lo. De um parágrafo para outro a narrativa abandona a ação na metalúrgica, salta a narração da captura de Rael pela polícia, e passa a contar as memórias de Rael já dentro da cadeia, abreviando assim o tempo da narração para falar o que interessa para o narrador:20

Rael se esqueceu de Deus, de sua mãe e das coisas boas da vida, apertou o gatilho e fez um buraco de oito centímetros na cabeça de seu Oscar. A vizinha estava saindo para comprar pão. Se assustou com o barulho, mas antes de entrar, ela viu Rael sair com uma arma de dentro da metalúrgica. Entrou em casa, ligou para a polícia e ferrou mais um irmão periférico.

Rael se lembrava de um amigo seu, poeta, e de suas palavras, “Solidão é diferente de isolamento”. Os outros pensavam em carro, em mulheres, em dinheiro fácil e em fumar um baseado.

Rael ouviu ao fundo um maluco dizendo que trabalhou para um burguês filho- da-puta que tinha de tudo, tinha piscina, tinha jipinho para ele brincar com seu filho, com motor e tudo, uma puta árvore de Natal forrada de presentes; mas quando olhava pra ele só via ganância e desapontamento. O burguês filho-da- puta num dava valor pra nada. Rael começou a pensar e se lembrou de Nandinho [seu filho], de sua humildade, lembrou que, quando pagava um pastel pro moleque, ele dividia quase que com a favela inteira (FERRÉZ, 2005, p. 139)

Pode-se pontuar, ainda, o uso frequente de diálogos, que presentificam a cena, dando a impressão de que se passam naquele momento. Os diálogos, ao distanciarem a figura do narrador, conferem um efeito de realidade aos textos, de modo que as cenas parecem se passar diante dos próprios olhos leitor. Além disso, especialmente na prosa de Ferréz, é constante a presença de assonâncias, que, a exemplo das rimas, também conferem certa musicalidade e marcam a leitura, fazendo-a avançar de forma semelhante às batidas do rap:

19 Ver nota 19, na p. 98.

20 Fica evidente, nesses romances, que o interesse do narrador não é tanto contar a história de um assassinato,

de um assalto a banco, ou de um traficante pego pela polícia, mas antes usar essas experiências para passar uma mensagem.

Rael carregou aquilo consigo, mas como tempo isso se tornou insignificante. Suas perdas eram constantes e aparentemente intermináveis: o primeiro amigo a morrer lhe causou um baque e tanto, mas a morte dos outros dois fora menos desgastante, afinal Rael estava crescendo. A necessidade de roupas e de um material melhor para a escola o fez começar a trabalhar numa padaria. Nos fins de semana, ele fazia curso de datilografia no mutirão cultural. (p. 18)