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4.2. Análise da sintaxe oral na poesia de Manuel Bandeira

4.2.2. A paráfrase na poesia de Bandeira

Da mesma forma em que ocorre na língua oral, há ocorrências de paráfrase na obra de Bandeira. Entendido aqui como um recurso da construção do texto falado, no sentido de que é um sinal definido da reelaboração textual oral, o fenômeno da paráfrase se classifica como um “problema retrospectivo”, como alguns casos de repetição e como a correção.

O enunciador, assim, ao dar conta de que um enunciado primário não está diretamente de acordo com os propósitos interacionais ou está pouco evidenciado, reformula o já dito, encontrando outras maneiras que, dentro do contexto pragmático, se referem ao mesmo conteúdo do termo inicial.

Como já foi afirmado, não se pretende, neste trabalho, adotar a tese de que o texto poético faz parte da variedade oral. Longe disso, o que se busca é evidenciar, em alguns textos, a presença de marcas orais que denunciam uma influência do oral no texto escrito. Desta forma, comprova-se a perspectiva sociointeracional de Marcuschi (2001a), segundo a qual não é possível considerarmos a variedade oral em um pólo oposto à variedade escrita.

Para tanto, analisaremos alguns trechos apresentados a seguir, retirados da obra poética de Bandeira. Iniciamos com um trecho de “Letra para Heitor dos prazeres”, poema publicado em Estrela da Tarde:

LETRA PARA HEITOR DOS PRAZERES

― Não posso, me’irmão, Que lá de dentro,

Muito lá no fundo,

De meu coração. (Estrela da Tarde) (p. 235)

Trata-se o trecho em destaque de uma paráfrase auto-iniciada, uma vez que não há evidências que comprovem a influência de outro personagem presente em um suposto diálogo. Nota-se que o trecho matriz

(M) Que lá de dentro

é parafraseado, logo em seguida, pela expressão parafrástica

(P) Muito lá no fundo.

A paráfrase, neste caso, tem a função específica de explicitar o enunciado matriz, definindo, de forma mais contundente, o grau em que “algo” se encontra “dentro do coração” do enunciador.

Por se tratar de uma paráfrase adjacente, não há aqui uma função de definir a macroestrutura tópica, mas sim de reconstruir o enunciado anterior, explicitando-o.

Além disso, a simulação do oral se dá também no uso da expressão “me’irmão”, que faz uma referência a um uso muito comum na variedade popular lingüística brasileira. Trata-se de uma forma de tratamento informal, formada pela aglutinação vocálica, com perda da semivogal do primeiro item.

Em alguns casos, há uma combinação da repetição com uma estrutura parafrástica, como em “Dedicatória”:

DEDICATÓRIA

Estou triste estou triste

Estou desinfeliz (Lira dos Cinqüent’anos) (p. 177)

Percebe-se nesse caso que a matriz é elaborada por meio da repetição

(M) Estou triste estou triste.

A paráfrase, assim, ocorre na mesma dinâmica funcional da ênfase, com a específica construção “desinfeliz”. Percebe-se, também, neste exemplo, que a paráfrase se encontra em uma posição paradigmática. Assim, ao mesmo tempo em que há uma equivalência semântica, há uma equivalência sintática, o que define a relação paradigmática entre enunciado matriz e enunciado parafrástico.

ESTRADA

Nas cidades todas as pessoas se parecem.

Todo mundo é igual. Todo mundo é toda gente. (O ritmo dissoluto) (p. 115)

No excerto retirado de “Estrada”, poema publicado em O ritmo

dissoluto, há uma cadeia parafrástica que merece atenção. Primeiramente, trata-se de

uma paráfrase auto-iniciada, já que o enunciador, no caso do poema, se configura na singularidade.

Nota-se, também, que são duas paráfrases (P1, P2) adjacentes ao termo matriz, o que nos leva a crer que o objetivo de tais construções não está vinculado à macroestrutura do texto, mas sim a explicitação do enunciado matriz (M):

(M) Nas cidades todas as pessoas se parecem.

(P1) Todo mundo é igual. (P2) Todo mundo é toda gente.

Nesta cadeia parafrástica, o termo matriz é redefinido duas vezes, em clara tentativa, por parte do enunciador, de definir exatamente aquilo que se diz no enunciado primeiro. Poderíamos esquematizar a dinâmica dessa cadeia parafrástica da seguinte forma:

Gráfico 10 – Cadeia paráfrástica do poema “Estrada”

Além dos itens abordados, é lícito chamar a atenção para o uso da expressão “todo mundo” em ambas as paráfrases. Tal expressão, de cunho coloquial, dá mais sustentabilidade à ilusão do oral pretendida.

SOB O CÉU ESTRELADO

Havia uma paz em tudo isso...

(Era de resto o que dizia lá dentro o meigo adágio de Haidn)

Tudo isso era tão tranqüilo... tão simples...

E deveria dizer que foi o teu momento mais feliz. (O ritmo dissoluto) (p. 116)

A mesma dinâmica da cadeira parafrástica ocorre em “Sob o céu estrelado”. Nela, há as seguintes paráfrases, aqui numeradas como P1 e P2, referentes ao termo matriz (M):

(M) Havia uma paz em tudo isso... (P1) Tudo isso era tão tranqüilo... (P2) tão simples... Enunciado Reformulador 2 Enunciado-origem Enunciado Reformulador 1 EO ER1 ER2 “Todas as pessoas

Nesta paráfrase, a própria presença da parentética também é um recurso que quebra o fluxo informacional, causando descontinuidades que, somadas às paráfrases, criam um cenário oral mais definido.

Sobre as descontinuidades, afirmamos anteriormente que consistem em interrupção do fluxo formulativo, considerada um “problema de formulação”. Na realidade, quando se fala em “problema”, aqui, não se deve entender como “erro” ou “falha” na formulação, mas sim na escolha da expressão mais adequada, escolha que, segundo Hilgert, é acompanhada de hesitações e pausas, geradoras da descontinuidade.

Ora, no trecho comentado de “Sob o céu estrelado”, há a presença de pausas, simbolizadas, na escrita, pelas reticências. Assim, há uma configuração do oral em vários fatores, que se situam ao redor do uso da paráfrase.

Cabe lembrar, também, que o conceito de paráfrase se refere a relações semânticas locais, pragmáticas, estratégias cognitivo-discursivo- interacionais dos sujeitos. Isso nos garante a interpretação de que o termo “simples”, no contexto de nosso corpus, refere-se a um resumo do enunciado matriz. Assim, a paráfrase se configura na pragmaticidade e não no significado fixo dos termos empregados no enunciado.

O mesmo contexto pragmático deve ser considerado na análise do texto apresentado a seguir:

O ANJO DA GUARDA

Quando minha irmã morreu, (Devia ter sido assim)

Um anjo moreno, violento e bom,

― brasileiro (Libertinagem) (p. 126)

Antes de se analisar o fenômeno da paráfrase no trecho, chama a atenção a parentética, que funciona como uma espécie de correção, uma vez que a certeza definida pelo pretérito perfeito em

é reelaborada a seguir. Assim, a correção, que também é classificada por Hilgert (2003) como um “prospectivo problema de formulação”, ocorre antes da paráfrase.

Esta só pode ser percebida dentro de uma análise que leva em conta os dizeres de Hilgert, segundo o qual a relação entre paráfrase e matriz “não é simplesmente dada pela estrutura proposicional entre m e p, nem estabelecida por movimento semântico predefinido e constante”. Pelo contrário, a paráfrase deve ser entendida dentro de um processo de interpretação “que resulta de uma predicação de

identidade entre m e p” (2006: 289). Mesmo não havendo nenhum parentesco semântico

entre dois enunciados, discursivamente eles podem ser considerados dentro de um elo parafrástico. Hilgert postula:

Mesmo que, lingüisticamente, nenhum parentesco semântico seja reconhecível entre dois enunciados, discursivamente ele pode ser predicado por força de um marcador parafrástico verbal, dentro de um contexto de conhecimentos extratextuais prévios comuns aos interlocutores. (2006: 289-90)

Assim, considera-se, dentro de uma análise pragmática, o termo matriz como sendo

(M) Um anjo moreno, violento e bom.

O uso dos adjetivos “moreno”, “violento” e “bom” remete, no caso textual aqui em análise, aos paradigmas populares do povo brasileiro. Daí a ocorrência da paráfrase

― brasileiro.

Para reforçar essa análise, podemos também lembrar que entre o termo matriz e o termo parafrástico há, em alguns casos, marcas específicas. Segundo Hilgert, tais marcas se configuram, principalmente nos casos de reformulação textual, como expressões verbais, paralelismos sintáticos, manifestações suprassegmentais ou paralingüísticas (como pausas, hesitações), mudanças de ritmo na articulação (ora pausada ou prolongada, ora mais rápida), diminuições da altura ou do volume da voz.

No trecho, a própria diagramação usada pelo autor, com o afastamento da paráfrase em conjunto com o uso do travessão, faz com que se crie uma mudança no ritmo de enunciação, com um abrandamento de ritmo.

Salienta-se, também, o fato de ser uma paráfrase que denomina o fato do enunciado matriz. Sobre isso, Hilgert diz que

outra função das paráfrases condensadas é a denominação, na medida em que retomam a formulação analítica e, não raras vezes, vaga, complexa e confusa da matriz, por meio de um termo ou uma expressão semanticamente abrangente. (2002: 153)

Ora, no trecho analisado, há a ocorrência do mesmo fenômeno. As expressões “moreno”, “violento” e “bom” eram vagas e imprecisas. Daí o uso da expressão “brasileiro”, que vem definir com exatidão aquilo que se pretendia expressar.

CELINA FERREIRA

Não me tocou levemente: Tocou-me no fundo

Celina, a tua poesia (Mafuá do Malungo) (p. 287)

Já em “Celina Ferreira”, Bandeira reconstrói seu texto usando uma expressão afirmativa, que diz mesmo da expressão matriz, de cunho negativo. A paráfrase adjacente, assim, se configura como postula Fuchs, já que é construída a partir de uma “transformação progressiva do ‘mesmo’ (sentido idêntico) no ‘outro’ (sentido diferente). Para redizer a ‘mesma’ coisa acaba-se por dizer ‘outra’ coisa”. (1982, 49-50)

Assim, para se dizer que a poesia “não o tocou levemente”, o enunciador reconstrói sua fala, apelando para o emprego de um enunciado afirmativo. A partir do enunciado-origem negativo, constrói-se um enunciado afirmativo.

LUÍSA, MARINA E LÚCIA

Homem de invejável sina Esse José! Pois três filhas

Tem, três puras maravilhas:

Já em “Luísa, Marina e Lúcia”, há uma paráfrase adjacente, com visível equivalência sintática. Nota-se que, com a passagem entre o enunciado de origem

(EO) três filhas tem

e o enunciado reformulador

(ER) três puras maravilhas,

há uma apresentação que exalta as filhas, qualificando-as como “maravilhas”.

DISCURSO EM LOUVOR DA AEROMOÇA

Dai um dia do vosso mês,

Cedei o último dia do vosso mês (Opus 10) (p. 217)

Uma reformulação do enunciado, com a presença de uma autoparáfrase auto-iniciada adjacente, ocorre também em “Discurso em louvor da aeromoça”. Nesse texto, como o próprio título já diz, o enunciador está em posição de orador, uma vez que se trata de um discurso. O texto, assim, ganha contornos orais específicos, voltados para o gênero do discurso público, no caso em homenagem às aeromoças.

Destaca-se, também, a equivalência semântica entre o EO e o ER, com o acréscimo da expressão “último”, juntamente com a substituição do verbo “dar” pelo verbo “ceder”. Há, com isso, uma definição do enunciado de origem, haja vista que o enunciador troca a expressão “um dia” pelo enunciado “o último dia”, que, sem dúvida, é muito mais definida.

Deste modo, existe no caso estudado um movimento de decomposição semântica, a partir do emprego do fenômeno da expansão parafrástica, com a clara função de definir, de forma mais clara, o enunciado matriz.

IDÍLIO NA PRAIA

― Ai bombinha atômica Vem comigo vem!

Sou tão delicado Sou um monstrozinho De delicadeza! Meu amor meu bem Me ama me possui

Me faz em pedaços! (Mafuá do Malungo) (p. 310)

No trecho selecionado de “Idílio na praia”, publicado em Mafuá do

Malungo, Bandeira, aproveitando-se do recurso oral da reformulação lingüística,

apresenta três exemplos de paráfrase. Antes de se analisarem os dois casos, importa salientar o fato de que o trecho é um suposto diálogo, de caráter irônico, entre o Vinícius de Moraes e a bomba atômica – alusão, provavelmente, ao fato de o Poeta Vinícius ter escrito e publicado o belo poema “Rosa de Hiroxima”, em ocasião do ataque atômico feito pelos americanos ao Japão, durante a II Grande Guerra. O trecho em destaque corresponderia à fala de Vinícius, dirigindo-se à bomba. O caráter irônico está justamente no caráter passional da fala de Vinícius, considerado o “poeta da paixão”, sobretudo pelos seus sonetos de amor. No trecho aqui selecionado, ocorrem alguns recursos orais marcantes.

O primeiro deles refere-se à paráfrase adjacente expandida, que se origina do enunciado de origem

(EO) Sou tão delicado.

Dele, surge o enunciado parafrástico que busca definir o teor dessa delicadeza, inscrita no enunciado matriz:

(ER) Sou um monstrozinho de delicadeza.

Assim, o EO se reformula, por meio de um movimento de decomposição semântica, que ocorre a partir de uma expansão parafrástica. O grau de delicadeza imposto na fala de origem é redefinido a partir da paráfrase expandida. Observa-se, também, a presença do diminutivo “monstrozinho”, que auxilia, no exemplo, a fixação do caráter oral.

A segunda presença da paráfrase do trecho é encontrada na construção

Meu amor meu bem

em que a expressão adjacente “meu bem” retoma a expressão “meu amor”.

A seguir, como terceiro exemplo, há uma cadeia parafrástica gradual, ou seja, há uma crescente gradação na definição do sentido da expressão matriz:

(EO) Me ama (ER1) me possui

(ER2) Me faz em pedaços!

As expressões adjacentes marcadas como ER1 e ER2 exercem, quando investigadas a partir dos princípios pragmático-interacionais, a função de paráfrases do termo matriz, definido como EO. Quando analisadas com atenção, fica claro que não há, a princípio, ligações semânticas específicas, oriundas da significação dos vocábulos usados. Entretanto, no contexto pragmático, os elos semânticos observados remetem ao fenômeno da paráfrase, o que pode ser notado se pensa no aumento do caráter passional das expressões:

AMAR

<

POSSUIR

<

FAZER EM PEDAÇOS

Essas, ao mesmo tempo em que demonstram o crescimento gradual da idéia erótica, definem a expressão matriz. É, mais uma vez, a dinâmica da decomposição semântica, com sucessivas expansões parafrásticas, que se encontram no texto poético.

Aliado a isso, outros recursos orais são usados pelo autor, como a interjeição “ai” no início do enunciado. Logo em seguida, a repetição do verbo “vir”, no verso “vem comigo vem” também é importante no que se refere à investigação da realidade. Por fim, nos versos subseqüentes, há o uso do pronome “me” em posição proclítica, muito próximo do uso coloquial do português do Brasil.

Desta forma, fica comprovada a presença da oralidade, por meio das marcas de reconstrução parafrástica, nos poemas de Bandeira. Outras marcas orais, advindas do replanejamento desse tipo de texto, serão trabalhadas a seguir, como as correções.

4.2.3. A correção na poesia de Bandeira

Foi dito anteriormente que língua falada (LF) e língua escrita (LE) não se encontram em posições estanques, mas sim em escalas graduais, podendo ocorrer características da LF na LE e vice-versa. Nesta parte do trabalho, destacam-se as correções presentes no texto escrito, lembrando que estas fazem parte do conjunto das características da LF. Tenta-se demonstrar, assim, que Bandeira faz uso também desses recursos na construção do texto escrito.

Já se apresentou, neste trabalho, a correção como uma marca da reelaboração do texto oral facilmente percebida, uma vez que o planejamento e a produção da LF são concomitantes. Já o texto escrito, por seu turno, justamente pela não-simultaneidade do ato de planejar com o de produzir, é apresentado sem tais marcas de reelaboração.

Contudo, tais tendências são colocadas de lado quando se observam alguns textos poéticos de Manuel Bandeira. Neles, possivelmente tentando criar uma “ilusão do oral”, o poeta usa, na voz de seu enunciador47, certas marcas que nos podem levar a “situações lingüísticas orais”.

No trecho do poema “Oração a Teresinha do Menino Jesus”, Bandeira faz uso desse recurso:

ORAÇÃO A TERESINHA DO MENINO JESUS

Quero alegria! Me dá alegria, Santa Teresa!

Santa Teresa não, Teresinha...

Teresinha do Menino Jesus. (Libertinagem) (p.138)

Nesse trecho, o poeta, para sugerir uma eventual intimidade com Santa Teresa, se corrige por meio da expressão “Santa Teresa não”, apresentando, logo em seguida, o enunciado-reformulador. Assim, há, no trecho “Santa Teresa não, Teresinha...” a seguinte regra, segundo Fávero, Andrade e Aquino (2006):

47

Usa-se, aqui, conforme já afirmado anteriormente, enunciador para designar o sujeito que pratica a ação lingüística. No caso das teorias literárias, poderíamos considerar a expressão como equivalente a “eu-lírico”.

Tabela 04 – A correção no poema “Oração a Teresinha do Menino Jesus”

SÍMBOLO CÓDIGO EXEMPLO DO POEMA

EF Enunciado-fonte Santa Teresa

MC Marcador Não

ER Enunciado-reformulador Teresinha

É oportuno salientar que o caráter oral também se dá por meio do emprego da próclise (“Me dá alegria”) e da repetição do termo “Teresinha”, que ocorre após o uso de reticências, designadoras de pausas.

PEREGRINAÇÃO

Fazia as sobrancelhas como um til;

A boca, como um o (quase). (Estrela da Tarde) (p. 242)

Em “Peregrinação”, é evidente o recurso oral reelaborativo da autocorreção. Após afirmar que “[alguém] fazia a boca como um o”, o enunciador se corrige e diz que “fazia com a boca ‘quase’ um o”. Aqui, a correção não é um mero fator de reelaboração textual. Ao contrário, é por meio do ato de se corrigir que o enunciador adequa a informação, buscando uma maior precisão referencial.

No caso específico do poema, o poeta poderia ter apresentado a seus leitores um verso em que haveria essa precisão referencial. Entretanto, talvez buscando criar um caráter mais espontâneo, o autor constrói o verso apresentado, baseado fortemente na oralidade, que se torna um recurso lingüístico essencial na produção poética.

RACHEL DE QUEIRÓS

Tão Brasil: quero dizer

Brasil de toda maneira (Estrela da Tarde) (p. 255)

Já em “Rachel de Queirós”, a presença de “quero dizer”, apontado por Fávero, Andrade e Aquino (2006) como marcador discursivo, também remete ao modelo oral. Essa expressão, assim, torna-se um sinal explícito de caráter reformulador.

MAÍSA

Os olhos de Maísa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos Não- Pacíficos (Estrela da Tarde) (p. 257)

Nesse exemplo, a dinâmica oral é clara. A falta de pontuação que nos conduz à idéia de hesitação, as expressões populares “dois não sei quê”, “dois não sei como diga” também criam certa ilusão da oralidade. Na realidade, as duas expressões são substituídas pela definição clara dos olhos de Maísa: “dois oceanos não-pacíficos”.

Essa é a Maísa da televisão A Maísa que canta

A outra eu não conheço não Não conheço de todo

Mas mando um beijo para ela. (Estrela da Tarde) (p. 258)

Já neste outro trecho do mesmo poema, a uma retificação do enunciado-fonte. Primeiramente, o enunciador nega conhecer a Maísa que canta. Essa negativa é reforçada pela duplicação do “não”, recurso também oral. Em seguida, contudo, reformulando o texto, o enunciador nos diz que “não conhece de todo”. Há, assim, uma correção com o objetivo de precisar o enunciado.

SAUDAÇÃO A VINÍCIUS DE MORAES

Hoje que o sei, Te gritarei Num poema bem, Bem, não! no mais Pantafuço

Que já compus (Mafuá do Malungo) (p. 330)

A respeito do texto oral, apresentamos anteriormente a postulação de Marcuschi segundo o qual “é muito comum o uso do marcador não para refazer algum aspecto do dito, seja lexical ou semântico” (2000: 31). Em “Saudação a Vinícius de Moraes” ocorre o mesmo fenômeno. A forte ruptura ocasionada pela expressão “bem não!” é o início do enunciado-reformulador “no mais / Pantafuço / Que já compus.”

DESMEMORIADO DE VIGÁRIO GERAL

Lembrava-se, como se fosse ontem, isto é, há quarenta séculos, que um exército de pirâmides o contemplava. (Estrela da Manhã) (p. 151)

Em “O desmemoriado de vigário geral”, a presença do marcador discursivo “isto é” também denuncia o caráter corretivo da expressão “há quarenta séculos”. Importa salientar o contraste semântico entre “ontem” (passado próximo do presente discursivo) e “há quarenta séculos” (passado mais longínquo, se comparado a “ontem”).

O mesmo ocorre no excerto a seguir, retirado do poema “O palacete dos amores”.

O PALACETE DOS AMORES

Compunham quadro de um sinete Tal, que os amores eram mato Nos três pisos do palacete.

Mato não ― jardim: por maiores Que fossem, sempre houve recato

No Palacete dos Amores (Mafuá do Malungo) (p. 331)

No trecho acima, o enunciador, ao afirmar que “os amores eram ‘mato’”, corrige-se, usando o marcador discursivo “não” no sintagma corretivo “mato não”. Em seguida, há a reformulação com a apresentação da expressão que seria a correta: “jardim”.

Desta forma, aplica-se a análise proposta por Fávero, Andrade e Aquino (2006). Aqui, a dinâmica do texto oral é utilizada pelo artista, em busca da realidade oral:

Tabela 05 – A correção no poema “O palacete dos amores”

SÍMBOLO CÓDIGO EXEMPLO DO POEMA

EF Enunciado-fonte (...) os amores eram mato

Nos três pisos do palacete.

MC Marcador Mato não

MARIA DA GLÓRIA