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O Par Dialético Infinito-Infinitésimo

5. A Determinação dos Nexos Conceituais do Conceito de Continuidade

5.2. O Par Dialético Infinito-Infinitésimo

Ao longo de toda essa jornada histórica, vimos que no desenvolvimento da Continuidade o problema sobre a significação do infinito se perdurou por muitos séculos.

Suas primeiras manifestações também estiveram atreladas às questões sobre a existência dos incomensuráveis e do movimento. A grande dificuldade na produção de conhecimentos sobre o infinitamente grande e pequeno está relacionada à exigência de uma atitude epistêmica de afastamento dos aspectos sensoriais da realidade. A superação desta dificuldade só foi possível com o desenvolvimento de um aparato lógico-simbólico acurado na criação da análise infinitesimal.

Na seção anterior, pôde-se perceber que a crise provocada pelos incomensuráveis (Extrato 2) trouxe consigo uma série de questões lógicas sobre a capacidade grega de lidar com sucessivas divisibilidades no domínio do discreto e do contínuo. Com seus paradoxos, Zenão expôs as fragilidades em se conceber ideias sobre os infinitesimais a partir de uma base intuicionista. Assim, a saída promulgada por boa parte dos filósofos gregos foi a evitação de algum tratamento ao infinito, entre eles Aristóteles. Dizemos boa parte, pois assim como Demócrito e sua teoria sobre os indivisíveis, houve aqueles que elaboraram suas percepções com base na ideia de infinitésimos.

Importante ressaltar que a produção do pensamento sobre o infinito teve como princípio bases filosóficas de interpretação da realidade. Para Aristóteles, a compreensão de infinito estava ligada a algo indeterminado (ilimitado), mas não necessariamente como um objeto matemático. De acordo com Moreno e Waldegg (1991), a partir de uma análise gramatical, a concepção grega sobre o infinito pairava sobre as seguintes significações:

1. Como substantivo, aparecendo apenas em relatos dos tipos mitológico, teológico ou metafísico: "Infinito" pertence ao reino dos deuses.

2. Como adjetivo que descreve um substantivo, é usado apenas quando este possui as características de um absoluto, como o Universo, o Ser, o espaço ou o tempo. Aristóteles somente usa essa forma ao negar sua existência real (física), uma vez que o conceito abraça uma infinidade real que a filosofia aristotélica realista não permite.

3. Como advérbio, é usado para qualificar ações (mentais), como, por exemplo, estender, subdividir, continuar, adicionar, aproximar etc. Esse uso do infinito tem a ver com o que chamamos infinito potencial, ou seja, quando o processo em questão pode ser continuado indefinidamente (MORENO; WALDEGG, 1991, p. 212, tradução nossa).

No que tange o campo da matemática grega, só se concebia a ideia de infinito vinculada à ideia de processo (advérbio), já que sua compreensão como substantivo ou adjetivo excluía a existência concreta de objetos infinitos. Inserido nesse contexto, Aristóteles reconhecia a existência do infinito frente à necessidade de se operar com a sucessão (ou divisibilidade) indefinida de grandezas. Esta forma de conceber o infinito foi denominada como Infinito Potencial. Sobre isso, Radice (apud COBIANCHI, 2001) retrata que

infinito potencial, para uma sucessão de elementos, é a possibilidade de ir sempre mais longe, sem que haja um elemento último. [...] Um infinito em ato, portanto, e não apenas uma potência é uma infinidade realizada, e não apenas não completável; esgotada e não unicamente inesgotável. Uma sucessão infinita discreta, sempre reconduzível à repetição infinita de “mais outro”, constitui um objetivo mental de todo o repouso (RADICE apud COBIANCHI, 2001, p. 91).

Essa forma de conceitualização do infinito traz implicações importantes para a produção do pensamento matemático. Apesar de reconhecer a necessidade de se considerar o Infinito Potencial, os gregos negavam a existência de formas sobre o Infinito Atual. Isso caracterizará as formas de condução do pensamento que culminará na elaboração do método de exaustão por Eudoxo e Arquimedes (Extrato 4) e, como consequência, no desenvolvimento das estruturas basilares do Cálculo. No entanto, uma sólida explicação para a existência do infinito atual só se estabeleceu com o movimento de formalização da análise infinitesimal em pleno século XIX (MORENO; WALDEGG, 1991).

Pensar sobre a possibilidade de operar com Infinito Potencial levou ao desenvolvimento de procedimentos de quadratura de curvas, cálculo de comprimento, áera e volume, entre outros, e configurou-se como cerne ne criação de métodos integrais e diferenciais. Essa concepção do infinito está assentada na forma de concebê-lo como “resultado de um processo iterativo mediante o qual se gera um número específico em cada passo” (LIMINI, 1994, p. 27, tradução nossa). Isso permitiu o avanço ao entendimento sobre processos de prolongamento indefinido e divisibilidade sucessivas, ou seja, na aceitação de expressões como “tão grande ou tão pequeno quanto se queira”.

Importante aqui ressaltar que esse tipo de compreensão sobre o infinito possibilitou que D’Alembert e Cauchy elaborassem suas ideias na construção do Limite (Extrato 10). Tais ideias buscam evidenciar não somente a formalização de estruturas infinitesimais, como também objetificá-las a fim de promover operações sobre elas. Retomando o que já foi comentado no capítulo anterior, Cauchy constrói sua teoria sobre o Limite com base no conceito de Variável e percorrendo a sucessão numérica a ela atribuída. No caso dos infinitesimais, estes são entendidos como uma sucessão de valores que diminuem indefinidamente, ao se tornarem menores que qualquer número dado, cujo limite tende a zero (REZENDE, 2003).

Essa atitude epistêmica frente ao Infinito Potencial na elaboração do Limite também pode ser percebida com a definição de Continuidade proposta por Cauchy. Os princípios pelos quais se elabora a conceitualização da Continuidade de uma função 𝑓(𝑥) em relação a 𝑥 estão pautados na análise do comportamento desta função a partir de incrementos infinitamente

pequenos. Em outras palavras, diz que 𝑓(𝑥) é contínua em relação a 𝑥 se, para cada valor de 𝑥, o valor numérico da diferença 𝑓(𝑥 + 𝛼) − 𝑓(𝑥) decresce indefinidamente com 𝛼 (COBIANCHI, 2001).

Sem dúvidas, o modo como Cauchy desenvolveu sua conceitualização sobre a Continuidade envolve um nível complexo de elaboração lógica e permitiu um tratamento eficaz para os infinitésimos e o estudo do comportamento das funções. Porém, como percebemos ao longo da história, a visão sobre a Continuidade careceria ainda de um refinamento formal, o qual só foi possível com a significação do infinto atual, a partir da criação dos Números Reais (Extrato 11).

Em sua teoria, Dedekind elabora uma visão particular sobre a noção de infinito a partir da extensão do conjunto dos Números Racionais. Ao considerar tal conjunto como infinito em extensão, Dedekind não rompe com a concepção de Infinito Potencial. Mas o grande salto está na consideração de infinito no interior do conjunto (MORENO; WALDEGG, 1991). Essa forma de conceber o Infinito Atual pressupõe uma mudança conceitual em relação ao Infinito Potencial. De acordo com Limini (1994),

a conceitualização do infinito atual se sustenta em instrumentos cognoscitivos diferentes daqueles sobre os quais descansa a aceitação do infinito potencial. [...] Em geral, a aceitação de processos potencialmente infinitos se apoiam na possibilidade de reiteirar um processo que se aplica cada vez a objetos particulares, o que encontra sustentação na hipótese de prolongamento indefinido do tempo; enquanto que a conceitualização do infinito atual está embasada em operações atemporais, ou melhor, nas que estão excluídas toda alusão a processos que se exprimem de acordo com uma ordem cronológica. A atualização do infinito foi moldada a partir da postulação de novos entes matemáticos; isto não se apresenta nos processos potencialmente infinitos, os que de certa forma podem considerar-se como operações “encerradas” em um domínio dado (LIMINI, 1994, p. 27, tradução nossa).

A autora ainda complementa que

no caso do infinito por extensão, a suposição da atualidade leva aos conjuntos infinitos, entes especialmente distintos aos elementos que os conformam. A atualização dos processos infinitos que se dão ao “interior do contínuo” (como os de subdivisão, os de convergência de sucessões infinitas de números ou pontos, etc.) resultam na “construção” de um ente distinto àqueles sobre os que se aplica o processo (LIMINI, 1994, p. 27, tradução nossa).

A criação do Infinito Atual permitiu que Dedekind não só superasse os problemas provocados pelos paradoxos de Zenão, como também preparasse o terreno para a elaboração da correspondência biunívoca entre a reta e o conjunto dos Números Reais, ou melhor, para a

formalização da Continuidade. Assim, é a partir da consideração das relações intrínsecas ao infinito atual que se produz a sustentação dos conceitos de infinidade, ordenação e densidade do conjunto numérico por Dedekind.

A consideração dessa relação entre Infinito Potencial e Atual revela o modo como a produção do conhecimento se transformou ao longo de séculos, na tentativa de lidar com problemas que afligiram (e ainda afligem) a inteligibilidade humana. Isso porque a complexa formulação da ideia de Infinito Atual exige um nível de afastamento considerável de percepções intuicionistas da realidade. É somente no seio do formalismo lógico-simbólico da análise infinitesimal que se é possível compreender as relações estabelecidas entre o par dialético infinito-infinitésimo. Isso traz implicações significativas para o âmbito educacional.

Importante ressaltar que a dialética na interação infinito-infinitésimo se configura a partir do modo como a produção do conhecimento sobre o infinitamente grande (infinito) promoveu transformações na concepção do infinitamente pequeno (infinitésimo) e vice-versa. Essa interação é fruto da busca incessante de respostas sobre problemas que envolvem a extensão do universo. No que tange o desenvolvimento da Continuidade, em particular, essa relação também está diretamente vinculada ao par dialético contínuo-discreto, uma vez que se exprime no contexto de correspondência entre elementos da reta e do campo numérico. Isso pode ser evidenciado a partir do conceito de densidade por Dedekind. Ao se propor entender que por densidade se estabelece a garantia da existência de infinitos pontos entre dois pontos quaisquer de um conjunto, Dedekind traduz seu posicionamento epistêmico de univalência dos pares infinito-infinitésimo e contínuo-discreto na formalização da Continuidade.

De qualquer forma, há ainda elementos a serem considerados na constituição da Continuidade. Em particular, na forma como a busca de explicações sobre o movimento implica na consideração do par dialético permanência-fluência, abordado na próxima subseção.