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Do paradigma do Altes Museum à galeria de arte contemporânea

2. Para além do século XIX, os artistas e o museu

Se, como Crimp, acreditarmos que em menos de meio século caiu um paradigma – o da Biblioteca de Alexandria – e se ergueu um novo – o da estética hegeliana no Altes Museum – o que podemos dizer acerca daquilo que aconteceu ao museu de arte no século e meio que se seguiu? Germain Bazin, a propósito da campanha de recuperação dos monumentos de Abu Simbel117, identifica uma afinidade entre a UNESCO e Alexandria – considerando que a primeira parece mimetizar o projecto redentor, universalista, da segunda, e atribui-o justamente a uma certa nostalgia helénica caracterizadora da Europa do pós-guerra. Numa nota absolutamente diferente, Rosalind Krauss118 conta-nos a sua experiência ao visitar uma exposição de arte contemporânea à altura patente no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, onde a tentativa de neutralizar o espaço do museu, ou qualquer organização histórica das obras, deixara em evidência, não os Flavins ou os Andres, mas a estrutura do próprio museu, estranhamente vazio, capaz de emergir como poderosa presença, tornando-se, ele próprio, objecto. Não nos precipitemos a encontrar a resposta a esta questão, não sem antes

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116 Trad livre do inglês “Quatremère says that art is dead in museums; Hegel adds that that is as it should be” in

Didier Maleuvre, op. cit., pp. 24

117 cf. Germain Bazin, The Museum Age, Universe Books, Inc., New York, 1967

118 vide Rosalind Krauss, “The Cultural Logic of the Late Capitalistic Museum” in October, vol. 54, (Autumm,

compreender que o lugar dos museus na arte contemporânea passa necessariamente por reconhecer o paradoxo que está na origem dessa relação, da qual a arte é, simultaneamente, dependente e adversária.

No Verão de 1855, o visitante que se dirigisse à Exposição Universal de Paris, deparar-se-ia, de costas para o Palais de l’Industrie, com uma estrutura improvisada onde se lia “Pavillion du Realisme”119 - esta terá sido a resposta de Gustave Courbet à recusa das suas obras pelo júri responsável pela ala das Belas Artes da Exposição Universal. As obras no interior da tenda, quarenta quadros e dez esboços, gravitavam em torno de uma pintura de dimensões monumentais – 3,61m de altura por 5,98 de largura - que cristalizava, mesmo ao nível do próprio título, a temática da exposição - L'Atelier du peintre (Allégorie réelle déterminant une phase de sept années de ma vie artistique et morale). Contrariamente ao que este incidente nos poderia levar a crer, Courbet não era um artista marginal, embora detestado por muitos pelo seu jeito bruto, grosseiro, de uma estranha arrogância campestre, as suas capacidades artísticas encantavam mecenas e apreciadores de arte, e não foram raras as suas telas expostas nos salões oitocentistas.120 O seu gesto, que inspiraria o Salão dos Recusados121, que viria a integrar décadas mais tarde, ou a galeria dos Fauvistas122 terá sido então, menos um gesto de revolta contra a preferência artística vigente do que um gesto de revolta eminentemente político, o primeiro de uma sequência que não se deu, ainda hoje, por

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119 Numa brochura que estaria à venda pelo correspondente actual a 10 cêntimos, lia-se aquilo que viria a ser

conhecido como o manifesto realista de Courbet, que aqui transcrevemos no original "Le titre de réaliste m'a été imposé comme on a imposé aux hommes de 1830 le titre de romantiques. Les titres en aucun temps n'ont donné une idée juste de choses : s'il en était autrement les oeuvres seraient superflues. Sans m'expliquer sur la justesse plus ou moins grande d'une qualification que nul, il faut l'espérer, n'est tenu de bien comprendre, je me bornerai à quelques mots de développement pour couper court aux malentendus.J'ai étudié, en dehors de tout esprit de système et sans parti pris, l'art des anciens et des modernes. Je n'ai pas plus voulu imiter les uns que copier les autres : ma pensée n'a pas été davantage d'arriver au but oiseux de "l'art pour l'art". Non! J'ai voulu tout simplement puiser dans l'entière connaissance de la tradition le sentiment raisonné et indépendant de ma propre individualité.Savoir pour pouvoir, telle fut ma pensée. Etre à même de traduire les moeurs, les idées, l'aspect de mon époque, selon mon appréciation, être non seulement un peintre, mais comme un homme, en un mot faire de l'art vivant, tel est mon but".

120 Não trabalhamos o salão do mesmo modo que não analisamos os casos dos studioli italianos, sos cabinets des

curiosités franceses e seus análogos alemães, os Wunderkammern ou os kunstkammern, não apenas por razões de estreiteza temática mas por considerarmos que, fora a afinidade superficial segundo a qual todos estes espaços são, como o museu, espaços de exposição, pouco se aproximam da instituição moderna do museu.

121 O salão dos Recusados (Salon des Refusés) foi uma exposição em Paris, 1863, com o selo de Napoleão III de

modo a albergar os artistas que tinham sido recusados de participar na exposição no Salão de Paris. Entre esses artistas encontravam-se Edouard Manet onde expôs a sua famosa obra Le Déjeuner sur l’herbe.!

122 O Salão de Outono (Salon d’Automne) nascido em 1903 como uma revolta ao já referido Salão de Paris,

tornou-se um símbolo de um conjunto de várias exposições experimentaique fugiam ao cânone artístico. Será em 1905 que Henri Matisse, juntamente com outros artistas, expõe La femme au chapeau dando início ao movimento Fauvista.

terminada, contra a cultura impositiva das salas de exposição. O caso de Coubert é especialmente curioso na medida em que, insurgindo-se contra determinada coisa – o museu - acaba ele próprio por conceber um duplo em miniatura deste, um duplo de um duplo – a galeria. Hoje, já mais de um século depois, sabemos bem que entre galeria e museu existem relações muito específicas e que a fronteira entre uma coisa e outra, já em si essencialmente ténue, tenderá a uma permeabilidade quase absoluta. Na verdade, o universo que critica, o dos museus, dos júris, da academia e dos salões, é justamente o único universo em que Coubert pode existir enquanto artista. Não acreditamos que o gesto de Courbet tenha nascido da ingenuidade pura de acreditar que o seu “Pavillon du Realisme” seria uma coisa outra, essencialmente diferente daquela à qual se opunha. Todavia, é certo que a sua geração fora a primeira com o percurso certo da academia ao salão ou ao museu, deste modo, à sua aparente candura, soma-se o florescer de uma certa consciência, que encontramos expressa nas palavras de Baudelaire em Le peintre de la vie moderne, “embora o estudo dos grandes mestres seja, indubitavelmente, uma coisa excelente para se aprender como pintar... não poderá ser mais que um desperdício de trabalho se a intenção for a de compreender a natureza particular da beleza nos dias de hoje”123 e que marca um tempo em que o artista se torna consciente da sua pertença ao mundo da arte. É também sobre isto que nos fala Foucault124 a propósito do Déjeuner sur L’Herbe de Édouard Manet, que considera o primeiro quadro verdadeiramente emergente da cultura do museu, por nele encontrarmos uma manifestação do reconhecimento da pintura em relação a si mesma e à sua história, e, portanto, auto-consciente da interdependência com o museu de arte. Tal não é surpreendente, na medida em que aquela que viria a ser considerada a primeira obra do Impressionismo, fora pintada por Manet como simultânea homenagem aos grandes mestres e crítica à veneração desmedida que ainda se lhes prestava. A temática é tomada de empréstimo ao Concert campêtre de Tiziano (na altura exposto no Louvre e atribuído a Giorgione) e a composição do grupo principal à gravura de Marcantonio Raimondi, com base no Julgamento de Paris de Raphael. A junção de uma coisa e outra, de figuras nuas e sua colocação no ambiente prosaico e citadino de um piquenique na relva, perfaz uma crítica à cultura da adoração aos mestres. Este terá sido, de resto, um reconhecimento parcial, com a ambiguidade típica de quem reconhece os contornos de uma

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123 Trad livre do francês “Il est sans doute excellent d'apprendre les anciens maîtres pour apprendre à peindre,

mais cela peut être un exercice superflu si votre mais est de comprendre le charactère de la beauté présente” in Charles Baudelaire, Le peintre de la vie moderne, pp. 70

questão mas não alcançou ainda plena consciência das suas dimensões. Curiosamente, se tomarmos o tratamento dos objectos de arte no “paradigma” do Altes Museum, como referente dos ataques do modernismo – e é certo que o Louvre da segunda metade de 1800 já em pouco era idêntico à sua formação inaugural, aproximando-se mais da organização do museu de Schinkel – apercebemo-nos de uma outra lacuna na tese de Crimp da qual podemos considerar, para questões comparativas, que emerge o fulcro do distanciamento da sua imagem do Altes Museum face àquela que nos é oferecida por Wyss. Se Hegel valorizava o papel do museu de arte - e acreditamos que sim - tal terá menos que ver com a sua constituição como replicador da marcha do espírito – como na análise de Crimp – e mais com a natureza do próprio objecto de arte, como descrito na sua estética. Simultaneamente sensível e verdadeira, a arte emerge como “o meio termo entre puro pensamento e aquilo que é meramente externo, sensual e transitório, entre a natureza e a realidade finita e a infinita liberdade do pensamento conceptual”.125 A constante inquietação da arte entre o sensível e o conceptual leva-nos a questionar o lugar a que pertence, já que não parece pertencer quer ao campo fenoménico da natureza quer àquele do puro pensamento mas erguer-se no fronteiriço entre uma coisa e outra - daqui emerge, por exemplo, o reconhecimento adorniano da identidade da arte como não-identidade. Noutros termos, o museu não só abriga a inquietação do acto artístico como esse abrigo é edificado em torno deste e não o contrário, fazendo emergir o paradoxo essencial da museificação – catalogar o inquieto, o rebelde, o gesto criativo – o que significa sempre a ruína daquilo que se quer preservar – e em simultâneo fazê-lo exemplo, torná-lo universal; o que é, forçando um pouco a nota, o mesmo paradoxo no qual repousa e do qual emerge toda a cultura Ocidental. Se nas palavras dos nossos críticos, remover uma obra de arte do seu contexto original é problemático porque implica despi-la da alma, tal significa assumir que a obra de arte se subsume ao princípio da identidade como pertença (a um lugar, a um povo, a uma nação, a uma comunidade de pensamento), desígnio do qual os museus se demarcaram desde a sua origem. O princípio primeiro do museu foi sempre o do desenraizamento e, neste sentido, o seu propósito original foi essencialmente revolucionário. Apenas quando pensadas em divórcio do contexto social em que foram produzidas, do significado que aí tinham ou das funções que assumiram, é que se tornou

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125 Trad livre do inglês “(...) as the first reconciling middle term between pure thought and what is merely

external, sensuous, and transient, between nature and finite reality and the finite freedom of conceptual thinking” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 8

pensável colocar obras de arte tão distintas lado a lado – como se partilhassem uma essência universal - numa instituição virada para a contemplação. Só assim se tornou possível apreciarmos as pirâmides e os grandes colossos do período simbólico, ou a beleza da arte clássica, dos seus templos também monumentais mas de uma perfeição contida, sem que nos assombre a tão verdadeira quanto terrível imagem do sangue e do suor daqueles que os construíram; Wyss descreve belamente este processo transfigurativo da história: “Quem ainda se lembra das vítimas da batalha do Peloponeso? A peste vitimizou Péricles mas tal facto caiu no esquecimento por entre a glória das paredes do Parthenon. O suor dos escravos diluído nos mármores. (...) A evidência da violência, tortura e injustiça evaporou-se na harmonia das figuras da arte clássica.”126 Nos termos de Gadamer, “Aquilo a que chamamos obra de arte e experienciamos esteticamente depende de um processo de abstracção. Ignorando tudo aquilo no qual a obra de arte está enraizada (...) esta torna-se visível como ‘pura obra de arte’”127. O modo como se processa esta abstração é paralelo àquele através do qual o museu cria universos representacionais. Tal é-nos mostrado, por exemplo, pelas mudanças de cânone e adendas à história da arte a partir do século XIX. André Malraux ilustra-nos esta operação com o caso da pintura de Rubens, que, no século XIX – onde a pintura italiana era o cânone, e a apreciação da arte flamenca seria restrita à Flandres - eram admiradas pela sua similitude com aquelas de Tiziano. Todavia, ante a colecção completa da obra de Rubens, tornou-se claro que os princípios estéticos que a guiavam seriam em tudo distintos daqueles que iluminavam o cânone renascentista, sem serem por isso inválidos. Apenas pela colecção e exposição de um vasto número de obras de um mesmo autor é que se tornaram transparentes os seus princípios estéticos e o seu estilo pessoal. Merleau-Ponty, sobre esse mesmo ensaio de Malraux, sintetiza exemplarmente: “(...) esses contemporâneos inimigos, Delacroix e Ingres, que a posterioridade tratará como gémeos, esses pintores que se pretenderam clássicos mas que não são se não neoclássicos, ou dizendo o contrário, esses estilos que escapam ao olhar do criador e se tornam visíveis apenas quando o Museu alinha as obras dispersas por toda a terra, quando a fotografia amplia as miniaturas, transforma mediante seus enquadramentos um

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126 Trad livre do inglês “Who still remembered the victims of the Peloponnesian War? The fact that Pericles died

of the plague was lost behind the glorious temple precints of the Parthenon. The sweat of slaves had dried on the hero’s marble brow. (...) The evidence of violence, torture and injustice had vanished in the smooth figures of classical art.” in Beat Wyss, op. cit., pp. 126

127 Trad livre do inglês “What we call a work of art and experience aesthetically depends on a process of

abstraction By disregarding everything in which a work is rooted (...) it becomes visible as the “pure work of art”” Hans-George Gadamer citado in Llewellyn Negrin, On the Museum’s Ruins: A Critical Appraisal, pp. 103

fragmento em quadro, transforma em quadros os vitrais, os tapetes e as moedas, e oferece à pintura uma consciência de si mesma que é sempre retrospectiva.”128

Como temos vindo a observar, as críticas têm sido surpreendentemente homogéneas, comungando em torno do princípio fatalista para o qual museu ossifica as obras e mata a cultura, embora dirigidas “(...) antes, ao museu como bastião da alta cultura, hoje (...) ao museu como novo cabecilha da indústria cultural”129. Isto é também aquilo que observamos na crítica das vanguardas ao museu de arte – por mais apaixonada e argumentativa, por mais inventiva ou revolucionária, só no museu ou, se quisermos, no universo fundado pelo museu, é que tem sentido. Podemos então compreender a pertinência do caso do Pavillon du Réalisme sob três aspectos 1. Que o museu moderno não tem lugar para o modernismo; 2. Que o modernismo, nascido no segundo momento dourado da cultura dos museus é impensável sem esta – arte que não é exposta é arte que não existe 3. ao ser recusado e, mais que isso, ao recusar o museu moderno, o modernismo lança a primeira pedra para a fundação de um modelo de museu que culminaria no MoMA em 1929. Apercebemo-nos que esta tosca estrutura tripartida tenderá a lançar-se peremptória para tempos mais recentes, nos termos de Negrin, “Na medida em que o pós-modernismo também falhou em reconhecer a sua dependência em relação ao museu, está condenado a repetir os mesmos erros que o modernismo cometeu nos seus ataques à cultura dos museus.”130

Embora filho do Iluminismo e da Revolução Francesa foi só no século XIX que o museu de arte conheceu a sua forma definitiva e se instalou como garante da autonomia das obras de arte. A heurística museu-mausoléu, explícita em Adorno e presente em Quatremère de Quincy, encontrou no Futurismo italiano uma expropriação radical. Museus são comparados a cemitérios e as obras que abrigam a corpos defuntos, preservados à força em formol. Como bastiões de uma cultura morta os museus surgem, para o Futurismo, como

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128 Trad livre do francês “(...) ces contemporains ennemis, Delacroix et Ingres, en qui la postérité reconnaîtra des

jumeaux, ces peintres qui se veulent classiques et ne sont que néo- classiques, c'est-à-dire le contraire, ces styles qui échappent au regard du créateur et ne deviennent visibles que quand le Musée rassemble des œuvres dispersées par toute la terre, quand la photographie agrandit les miniatures, transforme par ses cadrages un morceau de tableau, transforme en tableaux les vitraux, les tapis et les monnaies, et apporte à la peinture une conscience d'elle-même qui est toujours rétrospective... ” in Merleau-Ponty, Signs, pp. 59-60

129 Trad livre do inglês “then the museum as bastion of high culture, now (...) as the new kingpin of the culture

industry.” in Andreas Huyssen, Twilight Memores: Marking Time in a Culture of Amnesia, Routledge, 1995, pp. 18

130 Trad livre do inglês “Likewise, insofar as postmodernism has also failed to recognize its dependence on the

museum, it is doomed to repeat the same errors which modernism made in its attack on museum culture.” in Llewellya Negrin, “On the Museum’s Ruins: A Critical Appraisal” in Theory, Culture and Society 10, 1993 pp. 98

ameaça à produção de arte, não no sentido nietzschiano (nem naquele de Baudelaire ou de Quatremère de Quincy) para quem estudar os clássicos intimidaria o artista, incapaz de ultrapassá-los131, mas na medida em que contribuem para a sedimentação de um conservadorismo cultural. Os clássicos ou o passado não oferecem qualquer tipo de interesse ao futurismo, não são presentes nem se presentificam no contexto da Europa na viragem do século e será justamente isto que Marinetti apresenta no primeiro manifesto de 1909: “Nós libertaremos a Itália dos seus inúmeros museus que a cobrem de incontáveis cemitérios. Museus, cemitérios..! Idênticos até na promiscuidade de tantos objectos desconhecidos uns dos outros”132. A originalidade da crítica das vanguardas radica na deslocação do alvo da empreitada, do museu para a própria obra de arte - terminar com os museus significa terminar a arte - e talvez derive daí uma certa vertente confrontacional e iconoclasta que encontramos naquelas obras de vanguarda que contra a arte se insurgem. Historicamente, o caso russo, pelas particulares características espácio-temporais – afinal, apenas na Rússia as vanguardas artísticas coincidiram com uma verdadeira revolução política de tais dimensões - é um dos mais representativos. Podemos nele distinguir duas fases distintas que acabariam por coexistir: uma primeira, no imediato pós-revolução, marcada pelo confiscar das colecções privadas e assinalada pela empreitada ideológica contra o museu e suas obras, e uma segunda, virada para a reformulação do museu de arte ao serviço dos ideais revolucionários. Como motor desta primeira fase encontramos, sem surpresa, a crítica à arte separada da vida, que desembocaria na devolução da arte à praxis, pelo abandono das formas artísticas tradicionais – a pintura e a escultura – em privilégio de novos modelos de produção como o poster, a fotografia e muito particularmente o cinema, cujo lugar não seria o museu mas a fábrica, a praça, a vida. Este é o momento dos agi-trains, da abertura das primeiras escolas de cinema na Rússia, da necessidade de elevar a arte ao plano do discurso, de transformar imagens transportadores de conteúdos estéticos em imagens transportadoras de conceitos. Luta à qual os museus de arte representavam um natural impedimento - ao entrar no museu, do visitante seria esperada uma reverência egrégia, a distância física entre a obra e o visitante abriria assim uma distância psicológica, aquilo a que Benjamin chamaria aura e que promoveria

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132 Trad livre do inglês “We will free Italy from her numberless museums which cover her countless cemeteries.

Museums, cemeteries …! Identical truly in the sinister promiscuousness of so many objects unknown to each other.” in Filippo Marinetti, “The Foundation and Manifesto of Futurism” in H.B. Chipp (ed.) Theories of

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