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Para compreendermos o culto a ibeji é preciso en tender a importância do nascimento e da morte

para os grupos africanos chegados ao novo Mun-

do, particularmente ao Brasil. ancestral de culto

cercado de silêncios e mistérios, está presente em

todos os padrões rituais reorganizados no Brasil,

chamados de “nação”. tobossi, para algumas tradições jeje, Mabaço para os angola/congo, ibeji para a tradição ketu, ao menos aquelas presentes na cidade de salvador, ou simplesmente “dois dois”, “os meninos”, como são chamados carinhosamente pela maioria das pessoas.

o culto a tal ancestral nos terreiros de candomblé aparece ligado às crianças, na nação angola/congo, onde é chamado de nvunji, e nas de tra- dição yorubá, erê. todavia, o culto a “dois dois”, ou ainda aos “meninos”, não pode ser confundido ou restrito a estas.

no continente africano, o nascimento, como a morte, reveste-se de particularidades, pois remete a um dos conceitos mais importantes de sua filosofia: a ancestralidade. em linhas gerais, a ideia é de que somos um deslocamento de matérias ancestrais, ou seja: cada criança que nas- ce é um Baba tundê, um antepassado que retornou para a comunidade; não no sentido de uma reencarnação cíclica, mas como uma semente, que carrega as informações da nova planta. observando a natureza, africanos e africanas elaboraram primeiro esta noção, que mais tarde vai aparecer com o nome de “genética”. neste sentido, não a criança, mas o nascimen- to e o duplo são algo particular. há grupos vizinhos aos yorubás onde não nascem gêmeos. ou seja, apenas uma criança fica no mundo. não vamos entrar aqui nesta discussão, pois também temos outras formas de descar- tar nossos recém-nascidos.

Fato é que ibeji, ou o Mabaço, possui enorme significado para os gru- pos, os quais nos referimos anteriormente. tal ideia chega ao Brasil com os africanos e africanas e aqui se populariza a ponto de interferir na pró- pria representação de santos católicos, como Cosme e damião, sem es- quecer de Crispim e Crispiniano. eji, na língua yorubá, significa “dois” e bi é o verbo “nascer”. desta maneira, a própria formação do nome explica o seu sentido. ibeji é “nascer” ou “o nascimento de dois”. Certamente os mabaços sempre foram invocados, ora para proteger as famílias africanas fragmentadas e escravizadas, ou mesmo para garantir às crianças a lei do ventre livre, por exemplo, uma das mais difíceis de ser concretizada,

pois não libertava a sua mãe. o nascimento dos gêmeos é tão importante que estabelece uma ordem na família, assim, o terceiro filho para os yo- rubás é chamado doun, “o terceiro”, ou aquele que veio após os gêmeos. as mulheres africanas, em linhas gerais, eram muito férteis, assim tanto a mortalidade infantil quanto a mortalidade da mãe era vista como algo particular e recebia tratamento especial. Certo é que o momento de dar a luz era visto como algo cercado de cuidado, isso também valia para os primeiros dias do recém-nascido, que em algumas culturas só era apresentado à comunidade após o décimo sétimo dia, quando esta ouvia atentamente o seu nome. nome que lhe acompanharia durante toda uma vida que não tem fim, afinal “os que nascem nunca morrem”. a perda de uma criança vai ser assim re-significada pela comunidade que luta o tem- po todo para superar a morte, como ainda hoje a humanidade através das religiões. acredita-se, por exemplo, que quando uma mulher perde uma criança no parto ou quando esta morre ainda jovem, ou mesmo no mo- mento em que está dando a luz, trata-se de uma criança concebida para passar pouco tempo na terra, ou que está “brincando” com a sua mãe, “vindo e retornando”, são os chamados pelos yorubás de abiku. Mais uma vez, temos o verbo “nascer” e iku, a morte. são os nascidos para morrer. este termo ganhou outra concepção no Brasil, para alguns, trata- -se de pessoas que não precisam passar pelo processo de iniciação esta- belecido por cada tradição religiosa. todavia, abiku são também crianças que, no momento do parto, experimentam de perto a morte, a exemplo daquelas que nascem com o cordão umbilical enrolado, ora no pescoço, ou em todo corpo. estas, ao nascer, recebem nomes especiais e são sub- metidos a ritos específicos para continuarem no mundo. sem falar que o cordão umbilical sempre recebeu tratamento especial entre os africanos e africanas, pena que a ciência oficial só tenha reconhecido tal importância na contemporaneidade, mas foram os nossos antepassados os primeiros a dizer que ele é uma espécie de síntese da vida da pessoa. assim, ibeji liga-se diretamente aos nascidos para morrer, sobre os quais pouco se fala

no universo afro-brasileiro, justificando, de certa maneira, a confusão entre estes e as crianças.

o culto aos gêmeos está ligado à ideia de continuidade e descendên- cia, como o quiabo, comida real dos faraós do egito antigo. assim como a cebola representava o mundo através das camadas que a compõem, o quiabo estava ligado à continuidade. Podemos fazer esta experiência, co- locando numa vasilha com água e sementes de quiabo. Com o tempo elas vão se juntando, formando a teia, ou o futu, tão lembrado pela Makota valdina, uma espécie de pacote que nganga Zambi fez no início do mun- do, onde colocou de tudo. agora entende-se o porquê de uma das igua- rias mais apreciadas pelos gêmeos ser o chamado “caruru”. na verdade, os gêmeos comem de tudo. “Comem tudo o que a boca come”, como os ancestrais da terra. isso exemplifica a antiguidade de seu culto. embora apareçam ligados à morte, os gêmeos são filhos do orixá oxun. Pois vida e morte andam juntas. oxun foi o ancestral nagô que, segundo um de seus mitos, no momento em que deus distribuiu os poderes aos orixás, através de uma chuva, enquanto alguns se esforçavam para pegar o ferro, a terra e outros elementos, ela agarrou com as duas mãos o ovo, chamado de eyn. a partir daí ela passou a garantir a permanência de tudo que for- ma um sistema. oxun regula, assim, o ciclo menstrual, mas também o ciclo da terra que garante os frutos. tempos atrás, este fato era relembra- do na cidade de salvador no mês de dezembro quando se oferecia as cha- madas “frutas do ano” em frente à igreja de nossa senhora da Conceição da Praia. oxun também cuida do intestino e de tudo que é “de dentro”. assim ela garante a permanência dos os gêmeos e todas as crianças.

Um trabalho sobre o significado destes ainda está para ser realizado, embora o Professor vivaldo da Costa lima já nos tenha presenteado com um livro sobre “os meninos”. talvez isso seja explicado pelas dimensões tomadas pelo culto. o culto aos mabaços extrapola as religiões de matriz africana. eles estão em todos os oratórios católicos de famílias que tive- ram gêmeos.

aos meninos é oferecida uma mesa, “arrumada no chão”, à maneira africana. neste dia, são as crianças que comem primeiro e tem o consen- timento até de brindarem à saúde de todos com taças de vinho. algumas vezes, elas recebem pratos individuais, em outras, a comida é colocada numa grande gamela e todos comem e têm o direito de se “lambuzarem”. nas duas maneiras come-se com as mãos. há casos em que as mãos das crianças são limpas na saia da dona da casa. É a inversão da mesa, onde os rígidos códigos ocidentais, como: não conversar, “comportar-se”, usar talheres, comer com a boca fechada, são suspensos a fim de garantir a ale- gria e a vida através da continuidade da comunidade.

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