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3 AS TRAMAS E OS DRAMAS DE UM PERCURSO TEÓRICO-

3.2 PÔR NA TRAMA O CONTEXTO: UM ENFOQUE AOS BASTIDORES DE

3.2.1 Para entrar: as escolhas e negociações

Quando me propus a investigar as aprendizagens das crianças pequenas, e tentar, porventura, compreender e comunicar narrativamente o ponto de vista delas a respeito das aprendizagens que construíam, compartilhavam e significavam da trama da vida cotidiana de uma escola, idealizei o trabalho em uma escola pública. Winkin (1998) já sugeria que as investigações etnográficas fossem realizadas em lugares comuns e públicos, ao invés de privados, pois os primeiros revelariam análises complexas e mais traduziriam uma realidade social do que os privados. Portanto, ansiava por uma escola pública, com livre acesso para ir e vir e que tivesse adultos comprometidos com a infância e dispostos a colaborar com a pesquisa.

Também aspirava que os adultos, dessa escola pública, entendessem que o movimento de buscar trazer ao debate o que as crianças pensavam não significaria ser porta-voz, interlocutora ou tradutora das crianças, mas que se trataria de uma tentativa de tornar visível as suas legitimas concepções, para que pudéssemos ter subsídios mais contextuais para refletir sobre as aprendizagens na pré-escola. Tinha, ainda, como desejo que esses adultos fossem parceiros, que em mim tivessem confiabilidade e compreendessem que, em uma Pesquisa com Crianças etnográfica, nem tudo poderia ser previsto de antemão. Que a própria temporalidade no campo empírico poderia ter o seu prazo de permanência alterado e que muitas questões poderiam ser renegociadas no curso da investigação.

Concluí, por fim, que eu queria muito! E que talvez estivesse a idealizar um campo e um perfil específico de adultos, embora não fossem eles os principais interlocutores da pesquisa, e sim as crianças. Não obstante, as orientações e minhas próprias imersões teóricas na etnografia me provocaram a duvidar de tamanha homogeneidade. Na intenção de ser coerente com minhas escolhas teóricas, decidi abandonar as exigências de um campo perfeito e simplesmente procurar por pessoas que pudessem me estender a mão, me abrir portas, mediar minha entrada. Afinal, nenhum campo é neutro de sentidos e eu precisaria olhá-lo a partir de seus significados próprios (FORELL, 2014).

Foi então que rememorei as redes de interações construídas durante minha graduação e lembrei-me de uma ex-colega e grande amiga, professora de uma escola pública no município de Cidreira, que atuava com uma turma de pré-escola. Em uma conversa por telefone, de imediato, essa professora contatou a gestão da instituição e definiram um encontro para que eu pudesse apresentar a proposta de pesquisa. Esse primeiro encontro estava previsto para a primeira semana de abril de 2018. Entretanto, na noite anterior à data combinada, recebi uma

ligação da professora em que me explicava que a escola estava com problemas na sua estrutura física, havia sido interditada e as crianças estavam sendo realocadas em outros espaços públicos. Pediu-me desculpas e paciência, para que eu aguardasse a situação ser deliberada.

O findar de abril chegou e as crianças não haviam voltado à escola. Seus encontros diários estavam ocorrendo em um salão paroquial do município, e não havia qualquer previsão de retorno à instituição. Obviamente, aquela era uma situação atípica, em que todos os adultos e crianças estavam se organizando frente aos problemas e, possivelmente, uma pesquisadora poderia ser mais um empecilho para os desafios que estavam vivenciando. Com isso, agradeci o esforço de minha amiga e precisei dar início a uma nova busca por outra escola. Lembrei-me de uma instituição, que fizera parte da minha graduação, localizada no município de Osório/RS.

Durante os quatro anos do curso de Pedagogia, desenvolvi inúmeras propostas pedagógicas em uma escola pública de Educação Infantil do município por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid). Como sempre fui muito acolhida naquele espaço, pensei que seria um bom lugar para ‘descer a campo’ e, inspirada novamente em Winkin (1998, p. 133) – “Devem ser, portanto, lugares confortáveis, onde vocês fiquem a vontade” –, fiz meus primeiros contatos com a instituição.

Minha conversa preliminar foi com a supervisora da escola. Nos conhecíamos, também, do tempo de minha graduação e continuamos mantendo contato e acompanhando uma à outra pelas redes sociais, Facebook e Instagram. Quando perguntei sobre a possibilidade de realizar a pesquisa na sua escola, ela me pareceu muito interessada e aberta. Disse que a pesquisa poderia contribuir para formações continuadas das professoras e perguntou se eu aceitaria fazer uma breve fala para o corpo docente da escola sobre práticas pedagógicas, visto que ela vinha acompanhando meu percurso como professora pelas redes sociais. Muito grata, comprometi-me a organizar uma fala para as professoras e, após a realização da pesquisa, uma formação sobre aprendizagem.

As novas negociações ocorreram entre 10 de maio de 2018 e 05 de junho de 2018, via telefone. Durante esse período, houve alguns desencontros nos combinados e também a greve dos caminhoneiros em todo o Brasil, em que a escola, por efeito da problemática de descolamentos, manteve-se fechada por uma semana. No dia 06 de junho, reuni-me com as gestoras da escola e com a professora responsável pela turma. Apresentei a proposta de investigação e combinamos o início do campo para o começo de agosto, em uma turma de

Jardim4. Acordamos também a temporalidade da pesquisa, inicialmente prevista para 4 meses, de modo que esse período poderia ser interrompido ou ampliado por quaisquer participantes, se houvesse necessidade. Informei que, nas segundas e nas quartas-feiras, eu precisaria honrar meus compromissos nas disciplinas acadêmicas em que estava inscrita, e sugeri as idas a campo para as terças e quintas-feiras. O único ponto levantado pela professora foi que, às quintas-feiras, ela estaria em planejamento e as crianças ficariam com a professora itinerante. Visto que isso não seria um contratempo, todas concordaram com os dias propostos e não colocaram resistência à pesquisa. No dia seguinte, e antes de dar início ao campo, conversei com a professora auxiliar e com a professora itinerante, e ambas também concordaram com a pesquisa.

Sentia-me confortável, e parte desse sentimento dizia respeito ao acolhimento que tive dessas professoras. No entanto, precisava ainda que, essas permissões iniciais que obtive, fossem elucidadas por documento escrito, ou seja, por meio do “termo de consentimento”. Na entrega do documento para as professoras, uma delas me fez duas perguntas: a primeira, se elas precisariam fazer atividades diferentes enquanto eu estivesse lá e, a segunda, se poderia assinar e entregar-me o termo no dia seguinte. Senti certa angústia e insegurança de que, por algum motivo, não receberia aquele consentimento de volta. Naquele momento, as palavras de Thomassim (2010, p. 55) me foram muito apropriadas:

A complexidade desta comunicação entre pesquisados e pesquisadores parece sugerir que o ‘termo de consentimento’ e, qualquer mediação por documento escrito, pode caminhar em sentidos opostos de sua pretensão de informar e preservar os direitos do informante, dependendo de quem são eles. [...] ‘assinar um papel’ indica antes o risco de assumir um compromisso, ao invés de preservá-la de um. Compromisso, até então, que talvez nunca tenha lhe passado em mente.

Percebi que, o que poderia estar em jogo ali, era um possível desconforto da professora em ser observada ou julgada por suas práticas. Desse modo, tentei explicar da forma mais clara possível que, embora as práticas das professoras fossem observadas, o meu objetivo não era o de analisá-las, pois enfocaria as observações nas ações das crianças frente às práticas, às brincadeiras livres e às rotinas cotidianas. Conversamos um pouco sobre a centralidade das crianças nas produções acadêmicas e ela disparou: tem bem pouquinho né?! Olha vou ler rapidinho e já te entrego assinado, referindo-se ao termo de consentimento, que logo me foi entregue.

4 Segundo a LDBEN (1996), em seu artigo 29° e 30º, a EI é ofertada em creches, ou entidades equivalentes, para

crianças de até 3 anos de idade e pré-escolas, para as crianças de 4 a 5 anos de idade. Na turma de Jardim, na

Assim, finalizei o processo inicial de negociação e entrada em campo e minhas expectativas foram direcionadas a estar no campo com as crianças. Porém, antes de apresentar ao leitor as exigências que o campo colocou à pesquisa, e à pesquisadora, busco, nas páginas que seguem situar o contexto do campo empírico, passando para uma descrição da cidade e do bairro, da escola e dos adultos e também das crianças que participaram da investigação.