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Para um enquadramento teórico-conceptual da sociedade da informação

Ao longo deste capítulo procurámos analisar o debate em torno da emergência, ou não, de um novo modelo social e económico a partir das perspectivas de vários autores que analisam a questão, decorrente das mudanças geradas no tecido económico pelas inovações tecnológicas. Pensamos que agora nos é possível invocar algumas dessas visões e abordagens de modo a esboçarmos uma articulação teórica que nos permita a leitura crítica dos discursos produzidos na União Europeia, em torno da temática da educação e da sociedade da informação (a desenvolver no próximo capítulo).

Como primeiro elemento teórico, consideramos que a sociedade da informação e o advento da sociedade do conhecimento e da economia baseada no conhecimento podem ser analisados a partir das persistências dos princípios que definem a economia capitalista à luz do conceito de capitalismo avançado, defendido por Shiller (1981), no qual o modo como se produz, distribui e se torna acessível a informação e as tecnologias da informação e comunicação são características essenciais e para o qual o conhecimento é um bem transaccionável e, por isso, gerador de riqueza.

No quadro da reestruturação capitalista, o argumento da competitividade tem vindo a justificar as remodelações dos processos produtivos e organizativos, sob a égide da inovação tecnológica. Porém, a nossa abordagem vai no sentido de que “não se trata da passagem de uma economia centrada na indústria para uma economia centrada nos

serviços, mas sim do fim dos fordismos no contexto de uma economia pós-industrial, onde a indústria e os serviços convergem cada vez mais em direcção a um sistema produtivo complexo, intensivo em recursos humanos e orientado para a flexibilidade e qualidade” (Estanque, 2002: 7) e são sustentados em parte pelas tecnologias da informação e comunicação. Sob a batuta da competitividade, a noção de flexibilidade do trabalho, da produção e do consumo (acumulação flexível) é frequentemente invocada para anunciar que um novo modelo económico se esboça e influência o desenho das políticas nacionais e transnacionais (Harvey, 1992). Contudo, no nosso entender, esta perspectiva deve ser questionada, porque, como têm vindo a dar conta alguns autores, a flexibilidade faz-se sentir em particular no mundo do trabalho, sobretudo no sector dos serviços, no qual os custos da mão-de-obra se reflectem no preço do produto final. A perspectiva que privilegia a flexibilidade do trabalho tem efeitos nos modos de interpretar o emprego e tem reflexos sobre o papel atribuído à educação e qualificação das pessoas.

A sociedade da informação, cujo sentido por nós atribuído já afirmámos, não pode ser analisada sem levar em conta o fenómeno da globalização, dado que os cenários económicos decorrentes da economia informacional global, tal como apontou Castells são desafiadores do Estado-nação e, ao mesmo tempo, novas configurações ocorrem, como é caso de ter vindo a actuar como parceiro dos interesses económicos, quando se afirma:

“Nas últimas décadas [...] numa nova fase de transnacionalização do capitalismo e de redefinição do papel do Estado, as prioridades têm vindo a ser redireccionadas para a

acumulação e para a promoção da competitividade económica. Estas prioridades [...]

formas, garantias e processos de trabalho [...], mas também nas formas como, doravante, tendem a ser equacionados e garantidos os direitos dos trabalhadores (e dos cidadãos em geral) no contexto do já designado Estado-competidor” (Afonso, 2001a: 20-21).

Os discursos prospectivos, isto é, anunciadores de novos tempos, desembocam quase sempre nos papéis atribuídos à Escola e, tal como dá conta Afonso, “insiste-se que o papel da educação escolar continua válido, não havendo necessidade senão de promover a sua adequação aos novos desafios e problemas contemporâneos, de modo a que a escola possa assumir com eficácia as novas missões que lhe são exigidas, nomeadamente aquelas que decorrem das mutações da economia globalizada e das exigências da chamada sociedade da informação” (Afonso, 2001b: 30).

Este enfoque foi privilegiado na nossa análise e relaciona-se com um outro: a estas novas missões que são exigidas à escola, não são alheios os interesses económicos que viram na escola um duplo papel – o de consumidora de equipamento e conteúdos informáticos e o de incrementadora de utilizadores –, e a desafiam a adequar-se às novas solicitações, tal como nos diz Manuel Pinto:

“No terreno educativo, porém, dir-se-ia que a imagem das TIC está associada a uma carga predominantemente positiva, como se nas tecnologias residisse a redenção da escola e da educação escolar perante a sociedade. A interactividade, a auto-aprendizagem, a pesquisa autónoma, a interdisciplinaridade, seriam resultados ‘naturais’ esperáveis de ‘extraordinário poder’ atribuído às novas tecnologias, que grandes grupos multinacionais, sequiosos de aumentar os seus lucros e a sua quota de mercado, não se cansam de agitar e de propagandear” (Pinto, 2003: 52).

O tom optimista e entusiasmado dos discursos que este último autor critica, cruza com outra perspectiva de análise que é a de olhar os textos da União Europeia

tendo em conta que o uso naturalizado, polissémico e pouco problematizado de vocábulos e expressões. A nossa perspectiva é de que esse uso serve ideologicamente os discursos e visa o engajamento legitimador das mudanças apregoadas. Como afirmam Hughes e Tight, o discurso ideológico proporciona “uma fundamentação lógica e um acondicionamento convenientes e agradáveis para as políticas actuais e futuras de diferentes grupos de poder da sociedade […], dando a impressão aos leigos interessados de que as coisas estão a melhorar” (Hughes & Tight, citado em Afonso & Antunes, 2001: 9). Vários exemplos poderiam ser citados a propósito. Porém, um dos que tem gerado mais controvérsia é a utilização naturalizada e pouco problematizada de

exclusão, que além de não reunir consenso entre os investigadores sociais, foi sendo

sucessivamente integrado nos discursos da União Europeia, como observa Bruto da Costa:

“Em princípios dos anos noventa, a Comissão Europeia, por razões científicas discutíveis e razões políticas compreensíveis, introduziu a expressão ‘exclusão social’ no discurso comunitário europeu […]. Porém, deu-lhe um sentido diferente do original em dois sentidos. Em primeiro lugar, pretendeu que a expressão substituísse o termo e a noção de ‘pobreza’ […]; em segundo lugar designou por exclusão social não apenas a fase terminal de um processo, mas o próprio processo de marginalização” (Costa, 2004: 10).

Ora, como nos dá conta Costa, parece ser questionável esta visão de exclusão. A leitura dos diferentes textos produzidos pela União Europeia refere repetidas vezes a questão da exclusão e da coesão social no quadro do novo estádio social que está para chegar, o qual se supõe que seja mais inclusivo e coeso.

Será por esta razão, entre outras, que parece a Stoer e a Cortesão que “as directivas da EU definem mais princípios e orientações de possíveis estratégias

educacionais do que se arriscam a formular projectos claros com propostas concretas” (Stoer e Cortesão: 1999:113), o que resulta em ambiguidades assentes em dualismos, conjecturas e “círculos virtuosos”. Um dos exemplos é o caso dos discursos sobre sociedade da informação e a escola, pois assentam na pressuposição de que a difusão e o uso das tecnologias da informação e comunicação em contextos escolares produzem, de forma mais ou menos automática, determinados efeitos e mudanças, sejam eles positivos ou negativos. A este propósito, diz-nos Manuel Pinto que este “determinismo está presente, de modo por vezes subliminar, como marca dos programas que visam difundir as novas tecnologias da informação e comunicação (TIC) na escola e, mediante essa via, promover a inovação em educação” (Pinto, 2003: 52). Um dos exemplos é o da metáfora do “Cavalo de Tróia”, invocada num dos textos da OCDE sobre as escolas do futuro. O pendor tecno-determinista não se esconde ao olhar mais crítico pois a quantidade de inovações tecnológicas, por si só, não significa que o seu acesso se generalize e, por outro lado, que as tecnologias da informação e comunicação, como quaisquer outras, são sujeitas a apropriação social (cf. Tedesco, 2001: 118). Finalmente, parece que os discursos que têm vindo a valorizar como natural e urgente a transição para uma nova forma de sociedade e de economia que ainda são muito especulativos.

O nosso argumento vai no sentido de que eles são a manifestação da economia neoliberal de mercado, ela própria “hiper-desenvolvida”. Parecendo que alguns dos discursos da Comissão Europeia são seguidores da ideologia neoliberal e do

pensamento único, interessa-nos saber de que forma são articulados com a intenção de

mobilizar as sociedades europeias para a transição em direcção a anunciada economia baseada no conhecimento. Dito de outra forma, como é que os pressupostos do discurso

neoliberal se legitimam no que é anunciado como um projecto europeu comum desenhado em torno da coesão social, da inclusão e da cidadania? Como se articula o inconciliável – a tendência para a especialização flexível da produção, do emprego e do consumo, tendo em vista os ganhos de competitividade, com os problemas como o desemprego, a exclusão e a perda de direitos de cidadania? Que assunções são atribuídas à inclusão, à cidadania e aos direitos de cidadania, entre eles, o direito à educação e à formação?

Vários autores têm vindo apontar que a prevalência do pensamento único conduz à reconfiguração do papel do Estado (Estado-competidor), traduzido também no anunciado fim do Estado-providência, para outros autores. Todavia, parece-nos que os discursos produzidos no âmbito da União Europeia se articulam em torno de múltiplas dualidades, muitas vezes de sentido oposto, como a inevitabilidade e urgência de a Europa ter que ser competitiva no quadro da economia global, pois é a sua posição mundial que está em causa, tendo que ao mesmo tempo resolver questões como os atrasos e as assimetrias nacionais e regionais, a ansiada construção europeia, o envelhecimento da população, o risco de exclusão de um número cada vez maior de cidadãos, entre outros. Por outro lado, o enfoque na coesão social pode ser visto como um sinal do receio de que uma Europa com elevados níveis de desemprego e de exclusão, numa população envelhecida e com jovens mal preparados, tenha perda de ganhos em termos de competitividade no quadro de economia globalizada.

Outra dualidade está relacionada com a necessidade de incrementar a sociedade da informação num continente no qual o número de utilizadores das tecnologias da

informação e comunicação (TIC) é ainda reduzido, sendo também necessário pensar o papel atribuído ao Estado como protagonista nessa mudança. Esta dualidade remete para uma outra que é a falta de competências em TIC dos cidadãos europeus, que é vista como um obstáculo à sua empregabilidade, entendida como uma responsabilidade apenas dos indivíduos, e que dificulta, por um lado, a procura, tida como essencial na transição para a nova forma económica e social e por outro, torna a Europa menos

competitiva. Assim, a promoção das competências em TIC dos cidadãos europeus

subjaz à necessidade de implementar políticas de emprego activas e políticas de

educação activas, tendo sido essa a tarefa que os diferentes Estados chamaram a si no

âmbito da União Europeia e do seu direccionamento em direcção à economia baseada

no conhecimento.

O nosso ponto de partida é o de que a mobilização relativa às anunciadas vantagens de uma evolução europeia em direcção à sociedade da informação (vulgo sociedade do conhecimento) e à economia baseada no conhecimento pode ser relacionada com as lógicas do capitalismo neoliberal, predominante europeu, e a sua necessidade urgente de se posicionar na economia global.

Capítulo II

Discursos sobre educação e sociedade da informação na