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Para uma Neutralização da Concepção Sacrificial dos Sistemas Vivos

epois de percebermos em que consiste a desconstrução e o alcance das suas possibilidades de aplicação, interessa-nos, nesta fase do nosso estudo, proceder à desconstrução da mundividência proposta por Howard Bloom, designadamente a sua concepção sacrificial da natureza sustentada pela ideia de que os (super-)organismos, sejam eles naturais ou sociais, têm como destino a auto-destruição e, consequentemente, a humanidade tem por vocação o suicídio generalizado. A desconstrução da referida concepção sacrificial da natureza oferecida por Howard Bloom, concepção popular mas simplista, limitada e ingénua, terá como principal efeito o de libertar o conceito de auto-organização (self-organizing systems) de uma conotação moralmente nefasta, associada a um determinismo destrutivo das sociedades humanas. Este nosso gesto desconstrutivo da noção de auto-organização, como esta é utilizada por Howard Bloom, inspira-se do gesto derridiano da desconstrução operado na cultura ocidental e que consistiu em revelar a inferioridade de uma determinada ordem de conceitos de conotação «cadavérica», mortífera, impura e, por isso, moralmente suspeita, até mesmo «maléfica», na qual a «escrita» (rasto, vestígio, marca, sinal, símbolo, número, etc.) parece ter sido o elemento precursor. Ora, se olharmos bem para a concepção sacrificial da natureza segundo Howard Bloom, reparamos que a metáfora que a sustenta é a da lógica totalitária: dizer que os seres não passam de peças de substituição, descartáveis quando as suas existências deixam de ser úteis e justificadas pelo (super-)organismo é o mesmo que afirmar que os seres são peças de engrenagem, acorrentadas ao plano da grande máquina da qual depende as suas vidas, as suas sortes, os seus destinos. Ora, aquilo que parece não caber na lógica totalitária e, por arrasto na lógica sacrificial ou luciferina, é precisamente a acaso, a imprevisibilidade, a complexidade, correlativos da liberdade

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humana.425 Portanto, não será de admirar se for graças à noção social de «auto-

transcendência» relativamente às acções humanas, noção herdada de Friedrich Hayek e recontextualizada por Jean-Pierre Dupuy, defensor do social como «ordem espontânea» ou «autómato natural», que a desconstrução da referida concepção sacrificial da natureza, do social e da cultura, ganhará mais força abrindo assim o mundo a novas possibilidades ontológicas.

A ideia de que o mal é algo intrínseco à natureza – e ao homem enquanto ser da natureza –, pelo facto da sobrevivência dos organismos depender da redução do heterogéneo à entidade e pela sua evolução promover o sacrifício dos seus elementos a favor de outros maiores, ganha força se for habilmente, embora abusivamente, sustentada pelo uso, embora desadequado, da noção biológica de «autopoiesis», uma forma de auto- organização, desenvolvida por Francisco Varela e Humberto Maturana. Um exemplo de desmoralização da noção de «autopoiesis» é, como nota Daniel Innerarity, o modo como Niklas Luhmann vê a suposta lógica autopoietica que rege os sistemas sociais: uma lógica da irresponsabilidade, ou melhor, uma lógica propícia à «irresponsabilidade organizada».426

Niklas Luhmann opera uma redundância da noção de autopoiesis ao atribuir-lhe, no campo social, a designação de sistema auto-referencial e fechado, opondo-se, assim, ao sistema aberto caracterizado pela diferenciação entre o sistema e o ambiente; um sistema, explica o autor, não é mais do que a sua relação com o ambiente; ou melhor, um sistema é a diferença entre sistema e ambiente.427 Esta apropriação negativa da noção de «autopoiesis»

prende-se com o facto de que em Maturana e Varela, a oposição

exterioridade/interioridade, no que se refere ao sistema vivo, não fazer qualquer sentido. O que parece estar em causa, é, precisamente, a noção de «clausura operacional» ou «clausura informacional» que, à primeira vista, secundariza a noção de informação, tomada como estranha, virulenta, nociva ao sistema, à favor da significação, algo de mais redundante, menos heterónimo e, por isso, benéfico à estabilidade do sistema. Trata-se, portanto, de resgatar dos lugares sombrios da cultura a noção de informação que, ao mesmo tempo que

425 Afirmação inspirada em Friedrich Hayek quando este, na sua famosa obra intitulada O Caminho

para a Servidão, argumentava contra a planificação da economia sendo esta um sintoma do Estado totalitário:

“É mau ser uma peça da engrenagem uma máquina impessoal, mas é infinitamente pior se não podermos sair dela, se estivermos amarrados a ela e aos superiores que nos foram escolhidos. O descontentamento das pessoas com o que lhes calha em sorte aumenta quando se tem a noção de que esse descontentamento é o resultado de uma decisão humana deliberada”. HAYEK, Friedrich – O Caminho para a Servidão. Trad. J. C. Espada. Lisboa: Edições 70 Lda., Biblioteca de Teoria Política 02, 2009, p. 141

426 Cf. INNERARITY, Daniel – O Novo Espaço Público. Trad. M. Ruas. Lisboa: Editorial Teorema

S.A., 2010, p. 214

427 Niklas Luhmann explica que a noção de ambiente passou a ter um importante lugar nas teorias

dos sistemas; pois, só a partir do ambiente é que podemos distinguir, num dado sistema, as suas funções (os elementos e a relação entre os elementos). Cf. LUHMANN, Niklas – A Improbabilidade da Comunicação. Trad. A. Carvalho. Lisboa: Veja, Limitada, Passagens, 2001, pp. 99-100.

parece sustentar a noção de significação, surge, em alguns pensadores e investigadores das ciências sociais (sociologia da comunicação ou dos média), como que rebaixada, menosprezada, associada à desordem, aos caos e ao mal-estar. Esta última associação de ideias resulta, muito provavelmente, da indissociabilidade da informação com o princípio da entropia realçada pela teoria matemática da informação com o princípio da entropia. Graças à preciosa ajuda de Henri Atlan, Bernard Morel e de Umberto Eco, tentaremos apresentar uma noção positiva, produtiva e fecunda da noção de informação que, embora herdada da cibernética, é inclusa na noção de «différance» e de desconstrução e, portanto, passível de oferecer ao paradigma dominante de «sociedade da informação» uma nova orientação.

3.1. – Auto-organização: uma Concepção Genérica

Antes de prosseguirmos com a nossa tarefa, importa esclarecermos o conceito de «auto-organização», actualmente reintroduzida na biologia físico-química mecanicista e molecular e extensível à cibernética e à inteligência artificial, conceito comum ao orgânico e ao inorgânico.428 Como nota Henri Atlan, a noção de organização constitui uma unidade

integrante de propriedades opostas, propriedades de ordem e de desordens, cada uma delas, mais ou menos, destacadas, consoante o interesse dos autores que a estudaram: alguns sublinharam o que nela há de complexo, imprevisível, variável, diversificado, rico em possibilidades ou em informação, exaltando assim as possibilidades de adaptação; outros realçaram propriedades de ordem, de regularidade, de repetição e de limites externos, pondo a tónica na estabilidade. Como veremos mais adiante, o que se refere à ordem traduz-se na redundância maximal (repetição); o que se refere à desordem remete para a quantificação da informação (diversidade e imprevisibilidade).429

Na senda de Álvaro Moreno, designamos por «auto-organização», um conjunto de fenómenos de formação espontânea de uma ordem dinâmica, aplicável quer a sistemas materiais (físicos, biológicos, ecológicos, neuronais e sociais), quer a sistemas computacionais (autómatos celulares, redes neuronais, etc.); trata-se de um processo no qual, sob determinadas condições externas, se cria espontaneamente uma forma de organização emergente de um conjunto de unidades em interacção; a auto-organização é, assim, simultaneamente processo e sistema. Mais especificamente: a auto-organização do sistema surge a partir de uma relação não linear e irreversível entre os dois níveis

constitutivos desse mesmo sistema (micro/macro), tratando-se de uma organização global e sistémica, a nível macroscópico, por sua vez, emergente da interconexão local de unidades simples, a nível microscópico, e que se manifestaria como uma espécie de «pattern macroscópico». Este último pode ser interpretado como a expressão simplificada e emergente de interacções ao nível microscópio430, interacções entre elementos que serão

apreendidas como «complexas; essa passagem, ou a continuidade, entre os níveis (complexo; simples) não se faz sem a introdução de um princípio de recursividade ou de clausura.431 Deste modo, o termo de «auto-organização» remete para «algo» que seria capaz

de produzir certos comportamentos ou acções por si próprio, acções ou comportamentos que aparecem como constitutivos da entidade autónoma, exigindo, assim, uma co- implicação entre os dois níveis (entidade e movimento).432 Em consequência, quando

falamos de sistemas auto-organizacionais, não é muito fácil distinguir o agente da sua acção constitutiva, assim como de saber se a acção gerada é um pattern dinâmico invariante ou se ela pode ser redefinida em função do ambiente, encarando-a como adaptativa.433 Aos

430 Por outras palavras: diz-se que a propriedade de auto-organização de uma dada entidade ou

sistema implica uma relação entre dois níveis na medida em que, a partir de um conjunto de interacções mútuas entre elementos (a nível microscópico) constitutivos e determinantes da totalidade, emergem, de um modo não linear e irreversível, uma forma simplificada de organização, um pattern espácio-temporal estável (a nível macroscópico); diz-se que ela é «emergente» uma vez que a sua estrutura macroscópica não é previsível a partir do conhecimento das interacções dos seus elementos constitutivos a nível microscópico; é um processo espontâneo de criação de novas formas de correlações dinâmicas, de configurações não trivialmente determinadas por leis ou regras de base, nem directamente especificadas por controlos ou limitações externas; se podermos falar em «identidade», no contexto da auto-organização, diríamos que ela é a organização construída e, portanto, constituída através da organização (constrangimento global invariável); sistema e processo aparecem indistinguíveis. Cf. MORENO, Álvaro – op.cit., pp. 138-139

431 Cf. Ibidem. pp. 138-139

432 Um exemplo de fenómeno de auto-organização é o tornado: o movimento coerente de milhões

de moléculas de ar forma uma organização que, sob determinadas condições limitadoras, se mantém recursivamente; o tornado não existe sem o seu próprio movimento. Cf. Ibidem. pp. 135-137

433 A noção de auto-organização teria origem nos trabalhos da «Segunda Cibernética» (Heinz von

Foerster) e Termodinâmica dos Processos Irreversíveis estudada pela Escola de Bruxelas (Ilya Prigogine): para a cibernética, a auto-organização refere-se ao modo de funcionamento de sistemas abstractos, capazes de gerar novas formas de organização não trivialmente previsíveis para um observador; para a Escola de Bruxelas, o conceito de auto-organização reenvia à emergência espontânea de uma organização estrutural num estado de não-equilíbrio a um nível macroscópico, emergência proveniente da interacção colectiva de numerosos subsistemas microscópicos; esta deriva do conceito de «estrutura dissipativa» que refere o processo no qual uma flutuação se amplifica e se estabiliza para formar uma configuração macroscópica dinâmica (correlação amplificada) através do fluxo de energia que atravessa o sistema. A manutenção da estrutura macroscópica requer, por um lado, uma determinada quantidade contínua de energia e, por outro lado, que a intensidade desse mesmo fluxo de energia se mantenha entre valores pré-determinados, isto é, que o sistema se mantenha sob certas condições limitadoras – células de convecção de Bernard; manchas solares; tornados; as reacções químicas de Belusov-Zhabotinsky, etc. Todavia, o que é próprio da auto-organização é a emergência «não trivial» de estruturas e de funções a partir de interacções locais relativamente simples, interacções não impostas por um gerador central ou programa preestabelecido – «não trivial» significa, diria Heinz von Foerster, «em parte imprevisível» (indeterminado, aleatório, desconhecido), imprevisibilidade proveniente quer do acaso, quer da complexidade do sistema; pois, se, num dado sistema, as interacções locais, entre elementos tomados como isolados, são determinadas e conhecidas, elas tornam-se complexas a nível global onde ocorrem os fenómenos de emergência. Cf. Ibidem. pp. 135-137; Cf. ATLAN, Henri – op.cit., pp. 18-22

sistemas auto-organizacionais capazes de adaptação e do exercício de acções funcionais num dado ambiente e, portanto, «agentes», dizemos que eles são autónomos. Graças a um controlo interno das condições-limites, os agentes autónomos desenvolvem uma variedade de acções funcionais que permitem, dentro de grande leque de condições externa – até mesmo, na ausência temporária de entrada de energia externa –, não só a manutenção da identidade do seu sistema como também a participação na constituição desse mesmo sistema através da acção. O que caracterizaria o agente autónomo seria, portanto, a capacidade de actuação «por» e «para» si mesmo, manifestando-se simultaneamente como «origem» e «destinação» da sua acção. Daí a consideração de que a questão da identidade é mais substancial no contexto dos sistemas autónomos, do que no contexto dos sistemas auto-organizacionais, uma vez que os primeiros supõem a clara demarcação com o exterior de modo a poderem redefinirem as suas interacções com o meio ambiente e, assim, reconstruírem-se. Portanto, no contexto dos agentes autónomos, dizemos que a identidade é activa porque dotado de «agencialidade funcional». Entende-se por «agencialidade funcional», capacidade que os sistemas demonstram em construir recursivamente as limitações («clausura funcional») que lhes são constitutivas gerando, activamente, trocas de matéria e de energia com o meio circundante.434

Todavia, se é verdade que os sistemas vivos (auto-organizacionais) se auto- sustentam, se auto-reparem, se auto-reproduzem, modificando os seus comportamentos e a sua estrutura em função das suas interacções com o ambiente, a autonomia não deixa de ser posta em causa pelo facto de serem constituídos por uma hierarquia entrelaçada de meta-redes onde se inserem os organismos individuais. Esta realidade aparece mais claramente quando transposta para o «social»: os sistemas individuais, autónomos, inserem- se em meta-sistemas (ecossistemas, colónias, sistemas pluricelulares, sociedades, etc.) que, por sua vez, podem constituir outras (meta-)identidades individuais, outros meta-sistemas de complexa interdependência, dificultando a autonomia a níveis inferiores, isto é, a capacidade de se reconstruírem individualmente; por outras palavras: em vez de gerarem formas de auto-organizações complexas (hierarquias entrelaçadas de meta-redes) cuja autonomia seria semelhante a de indivíduos isolados, os sistemas complexos tendem a gerar sistemas que se vão aglomerando, formando sistemas superiores em complexidade mas também em dependência relativamente a outras formas de organizações globalmente intrincadas, auto-sustentáveis colectivamente; desta perda de autonomia de base dos sistemas a nível inferior surgem, não só outras unidades autónomas (espécies, grupos

sociais, etc.), resultante de novas formas de complexidade, como também outras formas de autonomia (racionalidade, cognição, etc.).435 É precisamente no contexto da formação dos meta-sistemas, ou dos super-organismos, que a informação se revela fundamental: ela gera novas formas de clausuras operacionais nos indivíduos (e nas organizações colectivas), contribuindo, por um lado, para a limitação da autonomia de base e, por outro, para a formação de novas identidades.436 Todavia, como veremos, nem sempre a informação teve

o seu destaque quando se fala em auto-organização sendo, portanto, uma noção mais relevante no contexto da cibernética.

3.2. – Autopoiesis e Clausura Operacional

Se Francisco Varela acaba por aceitar a extrapolação da sua teoria da autopoiesis para as ciências sociais, nomeadamente quanto à emergência do social, não podemos esquecer que, para o biólogo chileno, a extensão do conceito de autopoiesis a outras esferas da realidade permanece problemática. Varela insiste em afirmar que a autopoiesis designa um tipo particular de auto-organização próprio do funcionamento celular que não deve ser confundido com outras organizações, também elas com um funcionamento próprio. Alinhando-se a Humberto Maturana, Varela aceita a aplicação da noção de autopoiesis a outros campos de investigação distinguindo a existência de sistemas autopoieticos de primeira, de segunda e de terceira ordem: os de primeira ordem referem-se às células como sistemas autopoieticos moleculares; os de segunda ordem são os organismos; os de terceira ordem, em continuidade as ordens anteriores, dizem respeito aos grupos de organismos como os sistemas sociais (colónias, famílias etc.).437 Se a passagem da primeira ordem (auto-

organizações celulares), para a segunda ordem (organismos), não levanta grandes problemas para a nossa investigação, a passagem das anteriores para a terceira ordem (colectividades), merece algumas objecções. Ainda segundo Varela, mesmo se as organizações sociais geram a sua própria autonomia, isto é, um domínio de comportamento autónomo, este último, mesmo apresentando semelhanças com os sistemas vivos, não deixa de possuir características bem diferentes. Antes de aprofundarmos o problema identificado, precisamente a tendência em estender a

435 Cf. Ibidem. pp. 145-148

436 Um outro nome para a «clausura operacional» é a «clausura semântica», nome atribuído ao

mecanismo que possibilita a acção causal auto-construtiva da informação e exprime a identidade genética do indivíduo. Cf. Ibidem. p. 147

437 Cf. MATURANA R., Humberto e VARELA G., Francisco – op.cit., p. 18; Cf. VARELA

Francisco J. – Autonomie et Connaissance. Essai sur le vivant. Trad. P. Bourgine et P. Dumouchel. Paris: Seuil, Les Couleurs des Idées, 1989, p. 90

autopoiesis à auto-organização das sociedades, vejamos em que consiste a teoria da autopoiesis.

No contexto de uma fenomenologia da biologia, e mais amplamente no contexto de biologia do conhecimento, cujo interesse centra-se no tema da identidade biológica do ser vivo e da sua manutenção através de operações produzidas pelo mesmo, Humberto Maturana e Francisco Varela atribuem aos seres vivos a designação de «sistemas autopoietico», ou de «máquinas autopoieticas», ou de «organizações autopoieticas» – «autos», si mesmo, «poien», produzir ou criar, isto é, «auto-criação» –, de primeira (células, autoconstituição celular), de segunda (organismos) e de terceira (colectividades) ordem.438

Assim, aplicando aos sistemas vivos (em qualquer parte do universo físico apesar da diversidade dos sistemas terrestres) a designação de «autopoiesis», podemos definir a evolução biológica como o processo histórico da autopoiesis de unidades biológicas.439 As

principais características do sistema autopoiético são a autonomia, a individualidade, a unidade e a circularidade (nem entrada, nem saída). Genericamente, podemos chamar de «sistema autopoiética» o sistema cuja organização é como uma rede de processos de produção de compostos que, (1) continuamente, regeneram, através das suas transformações e das suas interacções, a rede que os produziu e que (2) constituem o sistema enquanto unidade concreta. Por outras palavras: o que é próprio do sistema autopoiético é a transformação da matéria em ele mesmo (sistema autopoiético) de modo a que a sua organização seja o produto da sua própria operação (relação entre as interacções dos processos de produção).440

Um olhar mais pormenorizado sobre o sistema autopoiético identificará neste dois níveis distintos, a organização e a estrutura: a primeira refere-se ao conjunto de relações dinâmicas que definem o sistema como uma unidade; a segunda corresponde ao conjunto de relações efectivas entre compostos presentes num sistema concreto num determinado espaço (materialidade).441 É a organização, enquanto unidade organizacional constituída

438 O que é próprio da autopoiesis é a organização determinada pelas relações, não entre

componentes, mas antes entre os processos de produção dos componentes. Cf. VARELA Francisco J. –

op.cit., p. 46; Distingue-se, assim, o sistema autopoiético do sistema alopoietico: se um sistema autopoiético

(homeostático) “produz a sua própria organização cujas virtudes essenciais são conservar a identidade do sistema ao mesmo tempo que o faz sofrer transformações indispensáveis à sua sobrevivência” [...], “as máquinas alopoieticas não produzem os componentes que as constituem em unidades e, devido a isso, o produto do seu funcionamento é diferente delas mesmas” – exemplos: automóvel; cristal. SFEZ, Lucien – A

Comunicação. Trad. J. Paz. Lisboa: Instituto Piaget, Epistemologia e Sociedade, s.d., p. 82

439 Cf. MATURANA R., Humberto e VARELA G., Francisco – op.cit., p. 109; Cf. Ibidem. p. 96; Cf.

VARELA Francisco J. – op.cit., p. 74

440 Cf. VARELA, Francisco J. – op.cit., p. 48

441 Para melhor explicar a distinção entre a organização e a estrutura num sistema autopoiética,

pelo conjunto de relações entre componentes simultaneamente independentes e constitutivas da organização (estrutura), que define a identidade da máquina autopoiética. A organização, sendo a essência do sistema do ser vivo, aparece-nos como invariável, constante, ininterrupta, e, assim, fechada ao meio ambiente não podendo assim sofrer alterações que poria em causa a sua estabilidade, a sua identidade, correndo o risco de desintegração. É ao nível da estrutura, ao nível do encadeamento e da interacção entre compostos particulares que a mudança ocorre. Assim, o ser vivo mantém uma certa abertura ao exterior graças a sua estrutura sofrendo assim alterações e perturbações. A capacidade de sobrevivência de uma unidade organizacional e, portanto, de uma máquina autopoiética, está precisamente na habilidade desta em manter a sua identidade mesmo em presença de mudanças estruturais. Se a organização é a quididade do ser vivo manifestando assim uma dimensão ontológica, a estrutura é a existência factual e material e apresenta uma dimensão ôntica. Dizemos, portanto, que os sistemas vivos são auto-organizados, auto-gerados, essencialmente fechados ao nível das suas organizações e acidentalmente abertos ao nível das suas estruturas.442

Recapitulando: o que faz como que a máquina autopoiética seja uma unidade é precisamente a coincidência das suas fronteiras com o funcionamento do seu processo de auto-produção; o que garante à máquina autopoiética a sua autonomia é a capacidade de compensar perturbações externas (entradas), deformações, através da operação de mudanças, transformações estruturais internas (saídas) assegurando a sua sobrevivência; o que torna a máquina autopoiética uma individualidade, uma identidade independente capaz

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