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o seu livro intitulado Le Principe de Lucifer, Howard Bloom tece uma visão sacrificial da natureza que, para alguns leitores, pode constituir uma espécie de versão naturalista da uma concepção da sociedade e da cultura segundo a teoria do sagrado desenvolvida por René Girard a partir da interpretação dos designados «textos de perseguição», os mitos fundadores e alguns textos históricos e, sobretudo, da Bíblia Sagrada. A teoria sobre sagrado de René Girard, essencialmente antropológica, não somente dá conta do processo de hominização, como também manifesta-se como a base de toda as ciências sociais e humanas, trazendo ainda uma nova luz às ciências religiosas e à teologia. Convém referir que esta teoria sobre o sagrado, que iremos aqui formular, não constitui um saber totalmente novo emergente do nosso panorama cultural. Trata-se de uma reactualização, por parte de René Girard, de um saber extremamente antigo, existente desde a fundação das primeiras colectividades e cujo verdadeiro sentido só aparece claramente numa leitura adequada das narrativas bíblicas, narrativas que, simultaneamente, confirmam e desmistificam alguns aspectos desta mesma sabedoria arcaica à volta do sagrado. Presas na teia tecida, quer pela herança de uma racionalidade Iluminista, quer pela desmistificação desta mesma racionalidade profetizada pelos mestres da suspeita (Nietzsche, Freud e Marx), as sociedades contemporâneas desviam-se deste saber fundamental sobre a origem e o fim da Humanidade que só uma cultura percepcionada à luz do Testemunho pode restaurar. Neste capítulo, procuraremos explicar a evolução cultural do sagrado para o religioso na perspectiva de René Girard, precisamente a sua genealogia do sagrado da qual surge a consciência reveladora do mecanismo sacrificial e da necessidade da sua neutralização, demonstrando assim a ressonância desta genealogia do sagrado com a simbólica do mal delineada por Paul Ricoeur, simbólica da qual emana uma consciência ético-religiosa. Por útimo, apresentaremos a reflexão de Jacques Derrida sobre

a obra Essais Hérétiques sur la Philosphie de l’Histoire de Jan Patocka, a qual perspectiva uma genealogia da consciência que culmina na responsabilidade religiosa em vista à superação da consciência ético-política. Na senda de Jean-Pierre Dupuy, introduziremos a questão da fundamentação espistemológica da teoria do sagrado como explicativa da reorganização das comunidades (passagem do estado de pânico ou de desordem para a ordem) à luz do paradigma científico dos sistemas auto-organizacionais, precisamente o da «autopoiesis». Por fim, exporemos a concepção de uma natureza luciferina segundo Howard Blom afim de preparar a desconstrução de uma interpretação sacrificial da natureza, interpretação compatível com uma visão da cultura reduzida a sua dimensão sacrificial e esquecida do seu «telos» religioso ou, como veremos, testemunhal, reforçando, assim, a ideia de que se o mal é predominante, ele não é primordial ou originário. Nesta óptica, se a catástrofe apocalíptica aparece como o desfecho mais provável para a humanidade incapaz de reagir adequadamente às sucessivas crises que enfrenta, ela não é inevitável.

A teoria do sagrado segundo René Girard tem como base a seguinte ideia: uma comunidade em estado de crise e, portanto, onde reina a violência indiferenciada, a violência que atinge todas as classes sociais, apagando qualquer distinções entre elas, só ultrapassa o mal-estar colectivo, reencontrando assim a harmonia e a paz que acompanha a diferenciação social, depois da perseguição colectica e da morte de uma ou várias vítimas, designadas aleatoriamente. O mal-estar colectivo, resultante da indiferenciação colectiva, tem a sua origem numa dimensão negativa do desejo mimético («mimésis»), desejo de apropriação e de conflitualidade, que tende a uniformizar a sociedade à volta dos desejos uns dos outros, provocando assim uma perda de referências, uma indiferenciação, um caos social, cuja solução passa pela acusação, perseguição e expulsão de um bode expiatório e, portanto, de um vítima sacrificial.84

A vítima sacrificial torna-se também «vítima emissária» quando, ignorando ou desconhecendo (quase) voluntariamente (méconnaissance) a inocência da vítima perseguida colectivamente, a comunidade acredita que a vítima tem algo de supra-natural,

84 Para René Girard, a palavra bode expiatório reveste três sentidos: o sentido bíblico, o sentido

antropológico e o sentido psicossocial. No sentido bíblico, o termo provém do ritual mosaico do Grande Perdão (lev. 16) durante o qual um de dois bodes é sorteado pela comunidade para ser largado no deserto em oferta a Azazel (demónio do deserto), levando com ele, simbolicamente, os pecados da comunidade e tornando-se, assim, expatório, enquanto o outro bode destina-se ao sacrificio. No domínio antropológico, o sentido é essencialmente ritual resultante da transferência da culpabilidade, dos sofrimentos e de outros males na comunidade para uma vítima (animal ou humana) ritualmente designada – ritual do bode expiatório. O sentido psicossocial do termo bode expiatório aparece nos romances populares, nos artigos de jornais, nas conversas, sob a forma da pessoa discriminada, acusada, punida ou violentada injustamente, quer no lugar de outros, quer no seguimento de tensões, conflitos e outras dificuldades – bode expiatório (scapegoat), persecutar bode expiatórios (to scapegoat), mecanismo do bode expiatório (scapegoating). Cf. GIRARD, René – “Un Mécanisme Générateur: Le Bouc Émissaire”. In: BURKERT, Walter, GIRARD, René, ROSALDO, Renato, SMITH Z., Jonathan – Sanglantes Origines. Paris: Champs Essais, 2013, pp. 11-13

precisamente porque cria-se a ilusão à volta dela de que foi enviada para reinstalar a paz na comunidade.85 É esse efeito benéfico, esse sentimento de dom, associado à vítima sacrificial que, nas sociedades arcaicas, levava a comunidade a atribuir-lhe uma dimensão sagrada que conduzirá a sua divinização e a reorganização e, até mesmo, a refundação da sociedade. Do sangue inocente da vítima sacrificial, surgem, assim, novos mecanismos de imunidade, de protecção, na comunidade restabelecida, precisamente através de ritos e de práticas que, à volta do novo símbolo sagrado (a vítima sacrificial), simulam o estado de crise e a resolução desta, afastando, controlando e neutralizando a violência intestina das comunidades. Estes mecanismos de imunidades, chamados de mecanismo sacrificial ou de mecanismos vitimários (mecanismos do bode expiátorios), são princípios geradores de comunidades, de mitologia, de rituais, da religião primitiva e da cultura.86 A teoria do sagrado de René Girard

é, portanto, uma teoria sobre a fundação e a auto-organização das culturas e das comunidades.

Para que o mecanismo sacrificial funcione eficazmente, René Girard identifica a existência de quatro factores que aparecem em certos mitos (fundadores) e textos históricos de perseguição:87 1) a unanimidade colectiva à volta do sacrifício da vítima,

mascarando qualquer ideia de crime colectivo que possa inviabilizar a justificação da acção; 2) a convicção absoluta por parte da comunidade da culpabilidade da vítima, convicção sustentada por acusações extravagantes, pouco prováveis, sem fundamentos, contradizendo provas materiais, convicção que se faz ainda acompanhar da quase ignorância, ou ignorância voluntária, sobre a inocência e a arbitrariedade da vítima; 3) a existência de uma vítima sacrificial, um ser portador de sinais vitimários e cuja presença é bastante forte, suficientemente perturbadora, para fazer advir o acontecimento, a convergência e a polarização sobre si dos ódios e dos mal-estares da colectividade, acontecimento que travará a devastação da comunidade em crise – bode expiatório.88 À essa ignorância ou não

85 Cf. Ibidem. pp. 38-50 86 Cf. Ibidem. p. 57

87 René Girard apresenta uma noção primeira e sucinta dos textos de perseguição sendo estes os

testemunhos escritos de violências reais, muitas vezes colectivas, redigidos por testemunhas, isto é, testemunhas oculares ou implicadas no acontecimentos relatados, geralmente escritores na qualidade de perseguidores, afectados por ilusões perseguidoras, isto é, por perspectivas contaminadas por impressões, fabulações, mentiras partilhadas colectivamente, ilusões que turvam a visão e interpretação da testemunha. Cf. GIRARD, René – “Guillaume de Machaut et les Juifs”. In: Le Bouc Émissaire. Paris: Éditions Bernard & Fasquelle, 1992, p. 17; Entre os textos históricos de perseguição, René Girard identifica os arquivos judiciários referentes às caças às bruxas, os documentos sobre a Inquisição e os testemunhos sobre a perseguição de judeus. Cf. GIRARD, René – “Un Mécanisme Générateur: Le Bouc Émissaire”. In: BURKERT, Walter, GIRARD, René, ROSALDO, Renato, SMITH Z., Jonathan – op.cit., p. 30

88 Cf. Ibidem. pp. 30-31. Para René Girard, o bode expiatório é o inocente que polariza sobre ele o

reconhecimento sobre a inocência da vítima, que mais parece uma mentira ou um «não querer ver» colectivo, René Girard chama-la de méconnaissance cuja definição mais assertiva é a de “um desconhecimento ou uma ignorância activa e produtiva, uma ocultação sistemática e necessária da verdade”89 para o funcionamento do mecanismo sacrificial e a

evolução das sociedades humanas de essência sacrificial. Esta mentira colectiva ou social, que constitui a méconnaissance, dificilmente se revela enquanto tal devido ao fenómeno de clausura própria de toda a representação que cega os homens; cada sistema cultural enclausura o homem numa determinada representação da realidade, clausura que o sacrifício da vítima e, portanto, o mecanismo sacrificial, ajuda a manter e perpetuar.90 Os

referidos factores, remissivos à presença do mecanismo sacrificial, aparecem dissimulados nos mitos fundadores e em alguns textos históricos (testemunhos, registos, etc.), designados de «narrativas de perseguição»; factores aos quais está subjacente, num primeiro momento, um fenómeno de indiferenciação, de uniformização social, quer no mal-estar colectivo provocado pelas rivalidades miméticas, quer na polarização dos ódios e da violência sobre a vítima sacrificial e, num segundo momento, uma diferenciação social, quer pelo surgimento do bode expiatório no meio da multidão indiferenciada, quer pela reconciliação social e a restauração da ordem, uma vez a vítima sacrificada e divinizada; a uniformização social ou coletiva costuma ser assinaladas e antecedidas, nas narrativas mitológicas por meio de aspectos cósmicos ou naturais – por exemplo: o tema dos gémeos nos mitos reenvia à reciprocidade indiferenciadora do mimetismo, sendo os gémeos vistos como sinal do demoníaco em algumas colectividades arcaicas.91 Em última análise, a

existência do bode expiatório, apesar da polarização do ódio colectivo e da perseguição serem reais, é gerador de uma ilusão social que, parcialmente imaginária e parcialmente real, produz textos enganadores, falseados por preconceitos e representações perseguidoras e, portanto, engendra falsos testemunhos que, por sua vez, segredam um enigma, uma verdade dissimulada à espera de ser desvendada.92 Ora, os indícios ou sinais da presença do mito, presença revelada pelo testemunho de Jesus Cristo, constituem a informação verdadeira sobre a violência transfigurada pelo mito, informação ou a voz desconhecido da

89 COSTA DIAS S., José Miguel – O Desejo como História. O Sentido da Cultura Humana em René Girard.

Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia de Braga da U.C.P., 2005, p. 128

90 Cf. GIRARD, René – “I. Premier Survol, Ici et Maintenant”. In: Quand ces Choses Commenceront.

op.cit. p. 16; Cf. GIRARD, René – “V. Le Christ – Ordres et Désordres”. In: Quand ces Choses Commenceront. op.cit. p. 69

91 Cf. GIRARD, René – “Le sacrifice dans la tradition védique et dans la tradition judéo-chrétienne”.

In: Le Sacrifice. Paris: Bibliothèque Nacional de France, 2003, p. 23

92 Cf. GIRARD, René – “III. La Crise Mimétique, Les Mondes Sacrificiels”. In: Quand ces Choses

realidade – «la voix méconnue du réel».93 A tarefa do homem cristão (ou do pensador cristão) é,

precisamente, interpretar os indícios e, assim, desvendar a verdade sobre o crime fundador da realidade social.94

Os ritos sacrificiais nas comunidades arcaicas reproduzem este mecanismo sacrificial patente nos mitos, esperando, assim, proteger-se dessa mesma violência testemunhada nos mitos, percebida então como exterior à comunidade, dirigindo-a para vítimas sacrificáveis – primeiras humanas, depois animais e vegetais – cuja morte não fará ressurgir a violência, precisamente, porque não despertará o desejo de vingança.95 A função

primeira da mitologia será de olhar para o interior da comunidade, para os seus engajamentos sociais, revelando-se um poderoso instrumento de autoridade e de coerção social.96

Todavia, alerta René Girard, o mecanismo sacrificial, que fundamenta, sustenta, desestrutura e reestrutura as comunidades à volta de uma vítima emissária mas sobretudo inocente (bode expiatório), só funciona adequadamente se permanecer dissimulado às consciências participativas desse mesmo mecanismo de forma a que a culpabilidade da vítima, relativamente ao desencadear da catástrofe, não seja contestável apesar de não aparecer totalmente maléfica. A violência intestina aparece-nos como um «mau suplemento», algo necessário, indispensável, cuja negação, por parte dos agentes, é proporcional à sua operatividade.97 Ora, a crença na culpabilidade da vítima aquando do

mecanismo sacrificial, auto-regulador e auto-organizador das comunidades tradicionais, só estremece quando confrontada com a visão antropológica oferecida pela Sagrada Escritura.98

93 Cf. GIRARD, René – “Introduction”. In: La Voix Méconnue du Réel. Une théorie des mythes archaïques

et modernes. Paris: Éditions Grasset & Flasquelle, Bernard Grasset, 2002, pp. 15-16

94

Cf. GIRARD, René – “IV. La Bible”. In: Quand ces Choses Commenceront. op.cit. p. 56

95 Cf. GIRARD, René – “Avant-propos”. In: Le Sacrifice. op.cit. p. 7 96 Cf. FRYE, Northop – op.cit., p. 98

97 Cf. GIRARD, René – “Avant-propos”. In: Le Sacrifice. op.cit. p. 7

98 Entre as influências do pensamento girardiano na antropologia, destaca-se a antropologia

generativa de Eric Gans admite a convergência dos gestos de apropriação da multidão sobre o objecto desejado mas considera este mesmo gesto de apropriação «abortado» a tempo de evitar o desencadeamento da violência – «gesto de apropriação abortada». A razão do aborto do gesto de apropriação está no medo da violência generalizada e da morte. Isto acontece porque Eric Gans acredita que a ideia originária não seria tanto o homicídio mas antes a representação do conflito e do seu diferir. Ao contrário dos homens, os animais não precisam de sistemas de representações de diferir da violência porque inserem-se em sistema de dominância, numa hierarquia natural que os domina e que previnem dos conflitos generalizados. Assim, o signo originário da hominização seria, mais exactamente, o gesto de apropriação abortada porque, no preciso momento em que todas as mãos convergem para a apropriação do mesmo objecto, os agentes caiem na conta que não podem concretizar o acto sob pena de todos os outros agentes se voltarem contra ele. Nesta representação está patente a ideia de uma igualdade primitiva que permitiu o surgimento da ideia de democracia. A antropologia generativa põe ainda em causa a ideia de que o processo de hominização concretiza-se num total não reconhecimento de si – «méconnaissance de soi». Cf. GANS, Eric – “Désir,

Ao delinear a sua teoria do sagrado, René Girard elabora o que ele denomina de genealogia do sagrado na cultura. Esta genealogia do sagrado na cultura apresenta duas fases importantes na dissimulação do sagrado, dissimulação fundamental para o bom funcionamento do mecanismo sacrificial e regeneração da cultura: num primeiro momento, a tendência clara dos mitos em desculpar os deuses pelas atrocidades cometidas e, num segundo momento, a auto-acusação por parte dos acusados, das vítimas e, portanto, o auto-sacrifício, disfarçando o desejo de sacrifício e de expulsão do acusado por parte da comunidade. A genealogia do sagrado vai de par com uma genealogia do religioso se considerarmos que as narrativas bíblicas renovam a leitura retrospetiva das narrativas mitológicas e dos textos de perseguição em geral, possibilitando ver a tendência dissimuladora que os mitos operam relativamente aos mecanismos sacrificiais existentes nas comunidades e, portanto, à culpabilidade das vítimas sacrificadas.

Importa, assim, reter que é com a Bíblia, principalmente com a revelação evangélica, a paixão e a ressurreição de Jesus Cristo, que René Girard completa a sua leitura sobre o sagrado (religioso arcaico) e a fundação das sociedades e das culturas, actualizando a revelação concedida à humanidade, designadamente, a consciência da existência de um mecanismo sacrificial nas sociedades e culturas humanas e a consequente inocência da vítima sacrificada pelos agentes arrastados na violência generalizada, própria do mecanismo sacrificial.99 Embora estruturalmente parecida com um mito (crise, perseguição e

restauração da ordem), os Evangelhos diferenciam-se pela resistência ao fenómeno do bode expiatório, neutralizando a falsa acusação da multidão perseguidora, sobrepondo à esta a voz da vítima que clama inocência e contando a ocorrência, não mais do ponto de vista do perseguidor, mas sim do olhar da vítima. Ao mecanismo sacrificial que repõem a ordem fazendo vítimas, à envolvência que torna a colectividade perseguidora e ao falso testemunho que constitui a falsa acusação, René Girard chama-lhe «Satanás» ou «Legião»; denomina ainda de «escândalo» à experiência de simultânea atracção e repulsa que suscita o rival que, também, é obstáculo.100 Opondo-se à «Satanás», surge o Espírito de Deus que

anima Jesus Cristo como «Paracleto», o defensor ou o advogado das vítimas que, descredibilizando o falso testemunho, revela a nulidade de «Satanás» e liberta o homem do

René Girard. Paris: Éditions Grasset et Fasquelle, 1985, p. 404; Cf. VINOLO, Stéphane – René Girard: Du Mimétisme à l’Hominisation. «La violence différante». Paris: l’Harmattan, Ouverture Philosophique, 2005, pp. 212-

214

99 Cf. GIRARD, René – “IV. La Bible”. In: Quand ces Choses Commenceront. op.cit. p. 56

100 Cf. GIRARD, René – “V. Le Christ – Ordres et Désordres”. In: Quand ces Choses Commenceront.

op.cit. pp. 62-66; Cf. GIRARD, René – “XI. Quelques Autres – Freud”. In: Quand ces Choses Commenceront. op.cit. p. 185

niilismo.101 Através da revelação, Deus anuncia seu Reino: para acedê-lo, Ele pede aos

homens para escolher imitar Jesus Cristo, renunciando à dimensão negativa da mimesis e, assim, abstendo-se da acção violenta (violência sacrificial)102 – Je suis venu apporter une paix

telle, une paix tellement privée de victimes, qu’elle surpasse vos possibilités et que vous allez devoir en passer par une explication avec vos phénomènes victimaires.103

Apesar da nova compreensão sobre a condição e as possibilidades humanas que a Revelação oferece à humanidade, a visão pessimista de René Girard para com o futuro da humanidade prende-se com o seguinte facto: se o impacto do judeo-cristianismo na cultura ocidental incidiu sobre a revelação da crueldade da arbitrariedade da vítima sacrificando, pondo a nu o mecanismo sacrificial existente nas comunidades e tornando-nos assim menos ingénuo relativamente aos fenómenos de bode expatórios, ela contribui também para a perda de eficácia da dimensão restauradora das comunidades em crise, restauração resultante da divinização da vítima sacrificada, neutralizando a dimensão protectora do sagrado contra o mal-estar intrínseco às colectividades e expondo estas à violência.104 O

problema estaria na existência de um desfazamento entre, por um lado, a revelação do mecanismo sacrificial como principio da (re-)fundação das sociedades, concedendo aos homens um saber de forma a poderem despreender-se de tal violência, e, por outro lado, a compreensão do testemunho de Jesus Cristo e, portanto, de uma dimensão testemunhal na cultura que se insinua sem ainda impor-se suficientemente para neutralizar a violência sacrificial.105 Do ponto de vista da revelação evangélica, o mundo actual encontra-se a

mercê de um Cristianismo que existe apenas na infidelidade; um mundo cristão corrompido, povoado de homens que não querem compreender, nem tirar partido da revelação, do testemunho de Jesus Cristo e, portanto, de um saber que possibilita a libertação da lógica de «Satanás».106

Compatível com a genealogia do sagrado/religioso esboçada por René Girard, é a evolução da consciência da falta («faute») na cultura judaico-cristã evidenciada por Paul Ricoeur, evolução que participa igualmente de uma genealogia do religioso. Através de uma análise dos símbolos constitutivos da nossa cultura, símbolos expostos e desenvolvidos narrativamente pelos mitos fundadores, sobre a origem e a finalidade do mal, Paul Ricoeur

101 Cf. GIRARD, René – “VI – Retour sur l’Imitation”. In: Quand ces Choses Commenceront. op.cit. p.

67

102 GIRARD, René – “X. Dieu, la Liberté”. In: Quand ces Choses Commenceront. op.cit. p. 158

103 Cf. GIRARD, René – “V. Le Christ – Ordres et Désordres”. In: Quand ces Choses Commenceront.

op.cit. p. 67

104 Cf. GIRARD, René – “VIII. L’Un et le Multiple”. In: Quand ces Choses Commenceront. op.cit. pp.

116

dá conta da existência de uma fenomologia da falta na cultura, fenomologia da falta correlativa de uma simbologia do mal da qual emergem às consciências humanas as experiências da falta enquanto «mancha» («souillure»), enquanto «pecado» («péché») e enquanto «culpabilidade».107 Estas experiências da falta, patentes nas narrativas mitológicas,

testemunham da compreensão que o homem formula sobre o mal e o sofrimento mas igualmente o tipo de ligação que o homem estabelece com o sagrado e a relação que mantém com Deus. Assim, na análise de Paul Ricoeur, os mitos fundadores dão conta da primeira forma de inteligibilidade do sagrado por parte dos homens: é, primeiramente, através do mundo (elementos ou aspetos da realidade cósmica, da natureza, como o céu, a lua, o sol, a vegetação, as águas) que o homem sente a ligação com o sagrado; o simbolismo falado reenvia às manifestações do sagrado, manifestações objectivas perceptíveis em fragmentos do cosmos, acarretando assim inúmeras significações, integrando e unificando uma diversidade de experiências antropocósmicas.

A dimensão cósmica do mito, enquanto narrativa simbólica, é própria da experiência da falta enquanto mancha («souillure»), experiência mergulhada no terror, no

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