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CAIXA: PATERNIDADE APÓS DIVÓRCIO OU SEPARAÇÃO* Nas últimas décadas, o divórcio e a separação conjugal tornaram-se

importantes protagonistas no desenho da mudança e da pluralidade na paternidade, na maternidade e na coparentalidade. A inclusão do princí- pio legal da guarda partilhada na legislação de vários países ocidentais propôs a mães e pais separados um novo modelo de parentalidade, ao atribuir ao bem-estar das crianças no divórcio a continuidade do envol- vimento dos dois progenitores na sua educação e nas responsabilidades parentais, bem como modalidades flexíveis de residência ou contacto. A legislação procurava atender às consequências negativas do divórcio no bem-estar emocional, económico e social de crianças, mães e pais. Principalmente, ao afastamento frequente de um dos progenitores da criança e das responsabilidades parentais (em regra, o pai) atribuído, pela literatura, às lógicas genderizadas da residência materna e das visitas pa- ternas ditadas pelo regime legal de “guarda única” (Arendell, 1995). Mas também pretendia reconhecer processos de mudança cultural em curso, nos papéis, práticas e identidades de mulheres e homens na parentalida- de. Em particular, a crescente inclusão da igualdade parental nas práticas e representações de mães e pais separados, bem como os efeitos destas no incremento da residência alternada (Neyrand, 2009; Kruk, 2015). É neste contexto que, em 1995, se inicia em Portugal uma reforma na re- gulação legal da parentalidade no pós-divórcio. Esta começa por propor- cionar aos pais a possibilidade de escolherem o “poder paternal conjun- to” ou a “guarda conjunta”, no quadro do regime-regra de “poder paternal único”, geralmente materno, ao qual estava associada a residência com a criança (Lei nº 84/95 de 31 agosto, artigo 1906). Esta reforma culmina na Lei nº 61/2008, de 31 outubro (artigo 1906), que substitui o conceito legal de “poder paternal” pelo de “responsabilidades parentais” e separa a residência com a criança do exercício de responsabilidades parentais. Neste diploma, estabelece-se como regime-regra o exercício conjunto das responsabilidades parentais quanto às questões de maior importân- cia para a criança, em combinação com o exercício exclusivo quanto aos atos da vida corrente por parte do progenitor com quem a criança reside. É, de igual modo, determinada a proteção da convivência da criança com os dois progenitores, estabelecendo a aplicação do exercício exclusivo de todas as responsabilidades parentais às situações em que a criança deve ser protegida de situações de abuso, violência ou negligência paren- tal. Institui-se, assim, um regime-regra de “partilha das responsabilida- des parentais legais” com residência única e contacto com o progenitor não-residente, em tudo semelhante à “guarda conjunta legal”, tal como é designada em outros países (Nielsen, 2011). A possibilidade de a criança residir alternadamente com os dois progenitores (33-50% do tempo com um dos progenitores, e o restante tempo com o outro), no quadro da par- tilha das responsabilidades parentais legais, não é introduzida na Lei por esta reforma. Porém, ainda assim, desde 1995 que são vários os juízes e magistrados a decretar ou homologar residências alternadas.

As experiências da paternidade na residência alternada em Portugal foram investigadas por Marinho (2011). A autora teve como principal pro- pósito explorar a diversidade na construção e negociação dos homens, das suas práticas, papéis e identidades enquanto pais, na relação com os filhos e na relação de coordenação parental, entre pai-mãe, nestas famí- lias. O estudo baseou-se em entrevistas em profundidade a homens que obtiveram sentenças judiciais de residência alternada ou que a acorda- ram com as suas parceiras, quer no decurso de um percurso de negocia- ção da transformação de uma guarda materna numa residência alterna- da, quer após a rutura de uma união de facto que dispensou a regulação judicial do acordo parental.

Os resultados deste estudo revelam a diversidade nas formas de ser pai na residência alternada através de quatro lógicas de paternidade: asser- tiva, reconstruída, conjunta e condicionada. Cada uma destas lógicas encerra uma combinação de práticas, significados e identidades, confi- guradora de formas particulares de ser pai, de construir a relação pai-fi- lhos e de partilhar com as parceiras parentais os cuidados, a educação e o tempo de residência com os filhos. Verificou-se que são delineadas ao longo do tempo, no decurso das trajetórias conjugais e parentais dos ho- mens e em relação com o quadro coletivo de valores, normas e represen- tações sociais que orienta a paternidade e a cooperação parental entre pai e mãe.

Neste contexto, a diversidade na paternidade na residência alternada emerge interligada a vários processos sociais: a negociação da individua- lização das formas de ser pai; o balanço entre autonomia e união parental; e a construção ou desconstrução do género nas interações. Deste modo, a coordenação parental tende a construir-se em torno de períodos de residência tanto iguais como desiguais. Mas também em torno de eixos de paralelismo parental (separação de práticas, territórios e decisões parentais no dia-a-dia da partilha) e de negociação parental (compatibili- zação de práticas e decisões parentais no dia-a-dia da partilha), podendo estes ser combinados e mais ou menos acentuados. Por sua vez, a refe- renciação da paternidade ao género emerge em conceções variadas dos papéis e das competências parentais de homens e mulheres, negociadas nas parcerias parentais e na relação pai-filhos: iguais e permutáveis; iguais e complementares; e diferentes e complementares.

Marinho, Sofia. 2011. Paternidades de Hoje. Significados, práticas e ne- gociações da parentalidade na conjugalidade e na residência alterna- da. Tese de Doutoramento. Lisboa: Universidade de Lisboa. Disponível em: http://repositorio.ul.pt/handle/10451/4940

1.3.2 As mudanças no trabalho pago e não pago

Na sociedade portuguesa, a atribuição às mulheres de um papel de esposa submissa e mãe cuidadora, assente numa ‘ordem natural’ de género, estava inscrita em normas jurídicas que sustentaram, durantes décadas, a ideologia patriarcal do Estado Novo e que legitima- vam as desigualdades e a hierarquia entre homens e mulheres dentro e fora da família (Wall, 2011). Com efeito, a Constituição de 1933 estabelecia, no seu artigo 5.º, a “igualdade dos cidadãos perante a lei [...], salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natu- reza e do bem da família”; e o Código Civil de 1966 determinava, no seu artigo 1677.º, que “Pertence à mulher, durante a vida em comum, o governo doméstico, conforme os usos e a condição dos cônjuges”.

Apesar das transformações que têm vindo a ocorrer nas relações sociais de género na sociedade portuguesa, nomeadamente com a extensiva participação das mulheres no mercado de trabalho e a sua crescente qualificação escolar (ver Capítulos 2 e 3), as mudanças na esfera doméstica têm sido mais lentas, daqui resultando a reconhecida sobrecarga ou dupla jornada das mulheres, i. e., uma acumu- lação de tempos de trabalho pago e não pago, compreendendo o primeiro a atividade profissional e o segundo as tarefas domésticas e os cuidados aos/às filhos/as ou a outros/as familiares dependentes (Amâncio, 2007). Se ambos são exigentes em termos do tempo que consomem no seu desempenho, o reconhecimento social do valor de cada um deles é bem distinto e apenas o primeiro é ‘estimável’ (traduzindo-se em rendimento económico), pelo que o “interesse crescente no valor do tempo inestimável deve-se à insatisfação de

* Texto gentilmente elaborado e cedido por Sofia Marinho para o Livro Branco (Setembro 2016)

1.3.2.1 As horas de trabalho pago e não pago

Na viragem do milénio, o INE realizou um grande inquérito aos usos do tempo de homens, mulheres e crianças na sociedade portuguesa – o Inquérito à Ocupação do Tempo 1999 – tendo sido inquiridos cerca de 10 000 indivíduos, com 6 e mais anos, em todo o território nacional. A análise efetuada por Perista (2002), a partir da subamostra de indivíduos com 15 e mais anos, permitiu confirmar a existência de diferenças entre homens e mulheres muito expressivas a nível da participação no trabalho não pago: 59% dos homens e 94% das mulheres declaravam desempenhar tarefas domésticas e de cuidado; os homens des- pendiam, em média, cerca de 2 horas por dia na realização dessas tarefas, enquanto as mulheres despendiam 5 horas. Totalizando o tempo despendido diariamente em trabalho pago e não pago, os dados comprovaram ainda que apesar de os homens dedica- rem, em média, mais uma hora e 13 minutos por dia à atividade profissional, a dupla jornada das mulheres era, em 1999, superior em praticamente 2 horas. Resultados de inquéritos do Eurofou- nd para Portugal vieram confirmar a intensidade da jornada de trabalho das mulheres (ver Caixa Eurofound: Index 18).

A assimetria registada nas horas alocadas ao trabalho não pago refletia, como é óbvio, a participação diferenciada de homens e mulheres em diversas tarefas domésticas, com destaque para o tratamento da roupa, a limpeza da casa e a preparação das refei- ções. A feminização destas tarefas (particularmente intensivas em termos do tempo que consomem e da regularidade com que são executadas) constituía uma realidade em 1999: entre 74% e 79% das mulheres tratavam ‘sempre ou com frequência’ da rou- pa, da limpeza e das refeições, enquanto a proporção de homens que asseguravam ‘sempre ou com frequência’ as três tarefas era, respetivamente, de 7%, 10% e 17%. No entanto, entre os inquiri- dos com níveis de rendimento e de escolaridade mais elevados, a autora verificou uma maior participação nas tarefas domésticas por parte dos homens, em particular na preparação das refei- ções, bem como uma menor participação por parte das mulhe- res, em virtude da maior externalização do trabalho doméstico que ocorre nestes contextos familiares, tal como se constatou noutro inquérito nacional à vida familiar de 1999 (Wall, 2005). A existência de crianças pequenas no agregado também se asso- cia a uma maior participação dos homens nas tarefas domésti- cas, o que sugere que esta fase da vida dos casais constitui um momento-chave de reorganização do trabalho não pago. Com efeito, o nascimento de uma criança amplia o tempo alocado ao trabalho não pago – seja em cuidados parentais, seja em tarefas associadas – conduzindo, muitas vezes, à maior participação dos homens no trabalho doméstico com o intuito de aliviarem a

sobrecarga das companheiras, como salientam pesquisas qua- litativas (Rosa, 2013; Wall, Aboim e Cunha, 2010; Wall, Cunha e Marinho, 2013).

Outro resultado do Inquérito à Ocupação do Tempo 1999 a sa- lientar prende-se com a diferente relação que se estabelece, para homens e mulheres, entre o tempo alocado ao trabalho pago e não pago. Se a jornada mais ou menos longa de trabalho pago dos homens não influenciava o tempo que dedicavam às tarefas domésticas, já no caso das mulheres revelava-se determinante: “quanto menor é a duração semanal do trabalho pago, maior é o tempo dedicado a trabalho doméstico e a cuidados à família; as- sim, quando as mulheres afectam menos de 35 horas por semana à actividade profissional, o tempo por estas dedicado a trabalho não pago é superior a 5 horas em cada dia” (Perista, 2002: 450). Trata-se de um resultado muito interessante, que confirma que ainda persistia, na viragem do milénio, uma perspetiva dualista dos papéis de homens e mulheres na sociedade. Com efeito, a compensação entre tempos de trabalho pago e não pago (que não tinha lugar no caso dos homens, pois sobre eles recaem ex- petativas principalmente de ordem económica) revela que a par- ticipação das mulheres no mercado de trabalho não as libertou da responsabilidade última pela esfera doméstica; e que esta

cobrança social é tanto maior quanto mais desigual é a situação

de homens e mulheres na esfera laboral, constituindo ainda um fator dissuasor à maior participação dos homens na esfera do- méstica e à mudança de atitudes face aos papéis de género na vida familiar.

Em 2015, o CESIS, em parceria com a CITE, lançaram um novo grande Inquérito Nacional aos Usos do Tempo (INUT), aplicado a uma amostra representativa da população residente com 15 e mais anos de idade (N=10 146 indivíduos). Apesar de os resul- tados não serem totalmente comparáveis com os de 1999, vêm confirmar a persistência de assimetrias no tempo que homens e mulheres dedicam ao trabalho pago e não pago (Perista et al., 2016). Tendo como referência o último dia útil, os homens com atividade profissional reportaram, em média, 11 horas e 39 mi- nutos de trabalho pago e não pago e as mulheres 12 horas e 52 minutos. Esta assimetria global de 1 hora e 13 minutos resulta, sobretudo, da diferença a nível do tempo dedicado ao trabalho não pago, que foi superior entre as mulheres em 1 hora e 40 mi- nutos no último dia útil. Já os homens dedicaram mais 27 minutos ao trabalho pago, o que abrange o tempo afeto à atividade pro- fissional, incluindo horas extra ou em atividades laborais secun- dárias, e as deslocações entre casa e trabalho3.

A assimetria global no tempo diário que homens e mulheres de- dicam ao trabalho pago e ao trabalho não pago (que se reflete necessariamente no tempo disponível para o seu descanso e lazer) confirma que a redistribuição entre estes dois tempos não explica tudo. A sobrecarga feminina radica, portanto, na acu- mulação de desigualdades de género no mercado de trabalho e na vida familiar, assim como nas atitudes de homens e mulheres face aos papéis de género e às expetativas que se colocam no exercício desses papéis.

3 Para mais informações sobre o projeto INUT consultar: http://www.inut.info/.

muitos grupos sociais, especialmente as mulheres, dado que o seu trabalho é escassamente visível na maioria das interpretações económicas e políticas” (Durán, 2013: 18). Deste modo, tal como o tempo dedicado pelas mulheres ao trabalho pago tem constituído um indicador-chave na aferição da igualdade de género no merca- do de trabalho, o tempo dedicado pelos homens ao trabalho não pago é, hoje, um indicador fundamental na análise da igualdade de género na vida familiar e da mitigação da dupla jornada de traba- lho das mulheres.