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2 RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO, RAÇA E CLASSE: UMA ANÁLISE

2.3 Patriarcado, racismo, capitalismo e suas imbricações

No âmbito da teoria feminista, estudiosas como Carole Pateman (1983), Heleieth Saffioti (2004) e Christine Delphy (2009), dentre muitas outras se dedicaram a teorizar sobre o conceito de patriarcado, cada uma aportando contribuições importantes para apreender como esse sistema se desenvolveu, atravessando as diferentes formações socioculturais, e como ele em coexistência com o capitalismo continuou a estruturar a exploração, dominação e apropriação das mulheres.

A palavra patriarcado é bastante antiga e seu sentido sofreu diversas alterações ao longo do tempo. Em um primeiro momento foi usado para referir-se ao sistema no qual o pai exercia poder sobre todos os membros da família. Em sentido literal, patriarcado significava ―autoridade do pai‖ (DELPHY, 2009).

Nos anos de 1970, já na segunda metade do século XX, com a chamada segunda onda do feminismo, o termo patriarcado passa a designar o ―sistema de dominação dos homens sobre as mulheres‖ ou simplesmente, aquele no qual o ―poder é do homem‖ (DELPHY, 2009).

De acordo com Saffioti (2004) o patriarcado produziu uma hierarquia com ―primazia dos homens sobre as mulheres‖. Em suas análises a teórica identifica as condições históricas que deram origem e nas quais se basearam esse sistema de dominação, quais sejam: o controle sobre o corpo, a sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres. Nele, as mulheres foram transformadas em objetos sexuais destinadas à satisfazer as necessidades e desejos dos homens, bem como na condição de meras ―reprodutoras de herdeiros, da força de trabalho e de novas reprodutoras‖ (SAFFIOTI, 2004, p. 105).

Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Engels (1984), baseando-se em estudos de Morgan e Bachofen, também se debruçou sobre as origens do patriarcado. Para ele seu surgimento está vinculado à formação da família patriarcal coincidindo com a transição da sociedade primitiva à sociedade de classes, ou seja, ao surgimento da propriedade privada e instituição da monogamia,

Sobre a monogamia, esta se baseava fundamentalmente: a) na primazia do homem cuja finalidade é a procriação dos filhos, de paternidade inquestionável; b) os laços conjugais passam a ser mais rígidos para as mulheres, na medida em que somente os homens poderiam rompê-los; a) as exigências sobre as mulheres eram diferentes quanto aos homens. Para as mulheres, a fidelidade compulsória, e em caso de descumprimento, restava-lhe o castigo, enquanto que para os homens esse era um direito, assim garantido pelo Código Napoleônico (ENGELS, 1984).

Em outra passagem, Engels (1984) acrescenta:

A monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como uma forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge como uma forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história (ENGELS, 1984, p. 70).

Essa forma de família monogâmica-patriarcal, de acordo com Engels, representa a origem da subordinação da mulher. Ela nasce da concentração das riquezas e, consequentemente, do poder exclusivo nas mãos dos homens, da destituição do chamado direito materno que para ele foi ―a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo‖ (ENGELS, 1984, p. 61), do controle sobre o corpo e da reprodução das mulheres como meio de garantir a herança.

A monogamia, entretanto, não fez desaparecer antigas formas de liberdade sexual características de outros momentos históricos, como o heterismo18 prática ainda que ―reprovada‖ e ―condenada com palavras‖ era tolerada aos homens e em seu proveito, principalmente aqueles das classes dominantes. Contudo, sua reprovação se dava apenas contra as mulheres ―que são desprezadas e repudiadas, para que se proclame uma vez mais, como lei fundamental da sociedade, a supremacia absoluta do homem sobre o sexo feminino‖ (ENGELS, 1984, p. 72).

Com a monogamia surgem a prostituição e o adultério. Em verdade, a prostituição representou uma forma extrema de heterismo e de legitimação da ―vontade suprema‖ dos homens. Portanto, a prostituição segundo Engels (1984) tem origem nesse processo que, de um lado, legitimou a liberdade sexual dos homens e, de outro, o controle da sexualidade das mulheres.

Como se pode perceber nada muito diferente do que encontramos na contemporaneidade. Embora a prostituição tenha se consolidado como uma prática permanece fortemente a ―condenação‖ das mulheres, mas não dos homens que dela usufruem. De igual modo acontece com o adultério, reprovado quando praticado pela mulher, pois esta ―não deve esquecer-se de que pertence a alguém e que, sendo propriedade de seu esposo, não pode evidentemente dispor de seu próprio corpo‖ (GUILLAUMIN, 2014, p 39). O elemento comum entre essas duas práticas - prostituição e adultério – parece ser a prevalência da ―vontade‖ suprema dos homens a qual se referiu Engels.

Não pretendemos aqui nos demorar sobre a questão da prostituição. Contudo, cabe pontuar alguns elementos que remetem a sua permanência e função na estrutura da sociedade patriarcal-capitalista-racista.

Falquet (2014) explica que a antropóloga e socióloga italiana Paola Tabet em sua obra

La grande arnaque. Sexualité des femmes et échange économico-sexuel, de 2005, fala da

existência de um ―contínuo do intercâmbio sexual‖ entre mulheres e homens, seja nas formas ―matrimoniais‖ ou ―prostituicionais‖ em diferentes contextos do patriarcado, caracterizados pela falta de acesso das mulheres aos recursos e conhecimentos e pela permanente ameaça de violência dos homens. Nesse contexto, a única opção das mulheres era ―circular entre o matrimônio e a prostituição‖ (FALQUET, 2014 p. 252).

A sociedade em diferentes tempos históricos legitimou, no âmbito das relações de sexagem, a apropriação do corpo tanto individual de cada mulher quanto do conjunto do

18 O heterismo, como utilizado por Engels a partir de Morgan, caracteriza-se pela prática aberta de relações

grupo de mulheres. A prostituição, de acordo com o pensamento de Guillaumin (2014), insere-se nessa relação de apropriação coletiva e de ―uso físico sexual‖ monetarizado dos homens sobre as mulheres, e serve de sustentáculo ao patriarcado.

Além disso, pode-se afirmar que a prostituição se assenta nas relações [rapports] sociais consubstanciadas no sexo, na raça e na classe social. Portanto, ao falar dela ―também estamos falando da dominação de raça, de classe e de sexo de umas pessoas sobre outras‖ (FALQUET, 2014, p. 253) e essas mediações devem ser consideradas para apreendê-la na contemporaneidade.

Estas são questões importantes para entender como o patriarcado se estruturou enquanto um sistema de dominação das mulheres. Contudo, no âmbito do feminismo, existem algumas reflexões críticas à Engels e sua interpretação quanto às origens da subordinação das mulheres.

Segundo Curiel e Flaquet (2014) Paola Tabet em “As mãos, os instrumentos, as

armas19”, contraria as formulações de parte da antropologia sobre as ―origens‖ da opressão

das mulheres, tornadas ―senso comum‖ sob a influência da citada obra de Engels. Em sua tese, ao contrário do que Engels afirmou, a opressão sobre as mulheres e o patriarcado não necessariamente tem origem na propriedade privada. A teórica demonstra como as mulheres foram deliberadamente mantidas na ignorância e no que ela chama de ―subequipamento técnico‖ sendo este um dos principais sustentáculos da opressão dos homens sobre as mulheres e da divisão sexual do trabalho.

O controle por parte dos homens, da produção e do uso de instrumentos e armas confirma-se como condição necessária da dominação masculina sobre as mulheres, dominação baseada na violência (monopólio masculino das armas) e no subaparelhamento das mulheres (monopólio masculino dos instrumentos) (TABET, 2014, p. 165).

A associação que Engels fez entre o surgimento da propriedade privada e a opressão das mulheres é questionada quando se verifica que em outros períodos históricos os homens já gozavam de ―vantagens‖ em relação às mulheres. Exemplo disso é que ―em grupos onde reinava o sistema do "comunismo primitivo" em relação a bens e valores já se encontrava uma divisão de tarefas entre os sexos, privilegiando os homens em detrimento das mulheres‖ (PRADO, 1985, p. 59).

Embora concordemos com parte dos questionamentos levantados por Prado (1985) e Tabet (1994) e das demais críticas às interpretações de Engels, uma ressalva é necessária: a de

que acreditamos no papel fundamental do surgimento da propriedade privada para a estruturação do patriarcado como sistema de dominação das mulheres.

Há de ser considerado, ainda o contexto e as condições em que o referido teórico produziu sua obra, preso às descobertas etnológicas do seu tempo, notadamente muito restritas em relação ao que existe hoje. De modo geral, sua obra é importante, sobretudo, porque nela pode-se pela primeira vez ―encontrar um enfoque sistemático‖ sobre ―o estatuto das mulheres através dos tempos‖ (VINTEUIL, 1989, p. 3) além de realizar uma ―crítica radical das versões ‗naturais biológicas‘ no que concerne à origem das instituições como a família patriarcal e o Estado‖ (CHABAUD-RYCHTER, FOUGEYROLLAS-SCHEWBEL e SONTHONNAX, 1985, p. 125 apud ÁVILA, 2009, p. 75).

Essa digressão fez-se necessária para evidenciar as diversas perspectivas e interpretações acerca do processo de estruturação do sistema patriarcal, permeado por divergências e embates teóricos, questões que retomaremos mais adiante.

Pateman (1993) na sua obra O contrato sexual, desenvolveu importante análise sobre o patriarcado. Ela elabora sua crítica aos teóricos do contratualismo e o modo como abordam, ainda que de maneira indireta, o conceito de patriarcado. A autora ao explorar as letrinhas miúdas do Contrato Social, descobre que ele possui dois lados: o contrato social e o contrato sexual, vinculados à liberdade e à sujeição, respectivamente.

Conclui a autora que os contratualistas omitiram uma parte, para ela, e também para nós, fundamental do contrato: ―invariavelmente, apenas metade da história é contada. Ouvimos muito sobre o contrato social, mas se mantém um silêncio profundo sobre o contrato

sexual” (PATEMAN, 1993, p. 15). A parte esquecida é justamente a que representa o

domínio dos homens sobre as mulheres, ou seja, o contrato sexual, conforme explica:

O contrato original é um pacto sexual-social, mas a história do contrato sexual tem sido sufocada. As versões tradicionais da teoria do contrato social não examinam toda a história e os teóricos contemporâneos do contrato não dão nenhuma indicação de que metade do acordo está faltando. A história do contrato sexual também trata da gênese do direito político e explica por que o exercício desse direito é legitimado; porém, essa história trata o direito político como direito sexual ou instância patriarcal - o poder que os homens exercem sobre as mulheres. A metade perdida da história como uma forma caracteristicamente moderna de patriarcado se estabelece. A nova sociedade civil criada através do contrato original é uma ordem social patriarcal (PATEMAN, 1993, p. 16).

Pateman desnuda assim o caráter desigual do contrato, em particular no que diz respeito à relação entre mulheres e homens. Ao contrário de opor-se ao patriarcado, o contrato cria o que ela chama de patriarcado moderno.

Além da diversidade de origens e sentidos que o conceito abarca ou abarcou, existe ainda o debate em torno da sua atualidade ou não como categoria explicativa das relações de dominação/exploração das mulheres. Tal discussão chegou a pautar-se na continuidade ou abandono do uso desse conceito. Expliquemos melhor este processo, sem, contudo, pretender esgotá-lo, mas nos limites deste texto, trazer alguns dos seus principais aspectos.

Algumas objeções ao uso do conceito de patriarcado, bastante presente entre algumas autoras feministas nos anos de 1970, mas ainda não totalmente superadas. Uma dessas objeções refere-se a sua suposta ―generalidade‖ e seu baixo poder explicativo. O mesmo estaria vinculado a um contexto histórico específico, e, portanto, não daria conta de explicar as formas contemporâneas de dominação dos homens sobre as mulheres.

Diante dessa alegação, Delphy (2009) afirma: ―pode-se reprova-lo por universalizar uma forma de dominação masculina situada no tempo ou no espaço; ou então correr o risco de cair na falha inversa de ser trans-histórico ou transgeográfico‖ (DELPHY, 2009, p. 177).

Outra objeção ao uso do conceito de patriarcado é que ele daria prioridade ao capitalismo em detrimento das relações de dominação. Contudo, não é o caso de dar maior ênfase a uma dimensão ou outra, mas ao contrário; buscar compreender o processo de dominação/exploração das mulheres considerando o conjunto das relações sociais.

Em meio a esses debates e dissensos quanto ao conceito, algumas feministas defenderam o abandono do seu uso. Contrária a essa posição, Pateman (1983) argumenta:

Seguir tal caminho representaria, na minha maneira de entender, a perda pela teoria política feminista, do único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens. Se o problema não for nomeado, o patriarcado poderá muito bem ser habilmente jogado na obscuridade, por debaixo das categorias convencionais da análise política [...] Grande parte da confusão surge porque 'patriarcado' ainda está por ser desvencilhado das interpretações patriarcais de seu significado. Até as discussões feministas tendem a permanecer dentro das fronteiras dos debates patriarcais sobre o patriarcado. É urgente que se faça uma história do feminismo do conceito de patriarcado. Abandonar o conceito significaria a perda de uma história política que ainda está por ser mapeada (PATEMAN, 1993, p. 39-40)

Esta defesa de Pateman é apoiada por Saffioti (2004) quando afirma que abandonar o termo ou colocá-lo à sombra é justamente corroborar com a ideologia patriarcal, que naturaliza a dominação-exploração dos homens sobre as mulheres (SAFFIOTI, 2004, p. 56). Mais que isso, ―permite que esse esquema de dominação-exploração grasse e encontre formas e meios mais insidiosos de se expressar‖ (SAFFIOTI, 2004, p. 122).

Para justificar a manutenção do uso do patriarcado como categoria de análise da dominação/exploração das mulheres Saffioti (2004, p. 57-58) aponta algumas de suas principais características:

1 – não se trata de uma relação privada, mas civil;

2 – dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição... 3 – configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços da

sociedade;

4 – tem uma base material; 5 – corporifica-se;

6 – representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência.

Infere-se com base no argumento da autora, que o patriarcado transversaliza as diferentes esferas da vida, não se restringindo, portanto, ao âmbito privado ou das relações pessoais. Ele estrutura o conjunto da vida social e se expressa de múltiplas formas, corporifica-se nas violências que atingem as mulheres, nas interdições sobre sua sexualidade e seus corpos.

Efetivamente o desafio que se coloca para o feminismo é pensar como o patriarcado enquanto sistema de dominação/exploração, inclusive anterior ao capitalismo, persevera na contemporaneidade mesmo diante da aguerrida luta dos movimentos feministas ao longo dos anos. Como bem colocou Castells (1999) o patriarcado ―dá sinais no mundo inteiro de que ainda está vivo e passando bem‖ (CASTELLS, 1999 p. 278 apud SAFFIOTI, 2004, p. 58) e segue operando firmemente sobre a totalidade da vida das mulheres.

A permanência desse sistema, entretanto, não significa que ele seja imutável. Ao contrário, enquanto uma relação social encerra determinações histórico-sociais, passou e pode ainda passar por alterações ao longo do seu desenvolvimento. Assim sendo, as análises sobre o patriarcado devem considerar suas particularidades nos diferentes contextos históricos e sociais.

É necessário ainda apreendê-lo em conjunto com outras relações sociais, como raça e classe. Como já visto anteriormente, Saffioti (2004) usa a metáfora do ―nó‖ para explicar como o patriarcado, o racismo e o capitalismo estão inter-relacionados ou para usar outra expressão da própria autora, de que modo encontram-se ―enovelados‖. Apesar de cada um deles referir-se a momentos diferentes da história – o patriarcado e racismo são anteriores ao capitalismo - e apresentarem características particulares, os três formam uma ―simbiose‖.

Como bem nos lembra Saffioti (2004), estas três contradições não atuam de forma autônoma e isolada.

O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas e enoveladas ou enlaçadas em um nó. [...] Não que cada uma destas condições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos. E esta motilidade é importante reter, a fim de não se tomar nada como fixo, aí inclusa a organização social destas subestruturas na estrutura global, ou seja, destas contradições no seio da nova realidade — novelo patriarcado- racismo-capitalismo — historicamente constituída (SAFFIOTI, 2004, p. 125). Sob a nova ordem capitalista o patriarcado encontrou as condições para reorganizar-se e reproduzir-se. Neste processo ele assume particularidades e novas expressões, mas preservando a primazia dos homens na sociedade, de modo geral, mas, sobretudo, sobre as mulheres.

Em Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004) Sílvia Federici desenvolve brilhante análise sobre o processo de transição do feudalismo para o capitalismo, sob o ponto de vista das mulheres. Nele, busca localizar as imbricações entre patriarcado, capitalismo e colonialismo e as diferentes estratégias e mecanismos desenvolvidos e/ou reconfigurados para a subordinação e exploração das mulheres.

Federici parte do conceito de acumulação primitiva de Marx - Cap. XXIV de ―O Capital‖ - enquanto processo que funda e revela as condições estruturais que possibilitaram a emergência da sociedade capitalista, marcado profundamente pela violência. Nas palavras do próprio Marx (2013) ―o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção (...) aparece como ―primitiva‖ porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde‖ (MARX, 2013, p. 961).

Entretanto, conforme explica a autora, sua análise sobre acumulação primitiva inclui diversos fenômenos ausentes em Marx, mas que para ela, foram fundamentais para esse processo. Dentre esses fenômenos estão:

i) o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho; ii) a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; iii) a mecanização do corpo

proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de

produção de novos trabalhadores [...] (FEDERICI, 2004, p. 16, grifos nossos). No centro de suas análises está a caça às bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII e a defesa de que, tanto na Europa como no Novo Mundo, esse processo foi igualmente fundamental para o desenvolvimento do capitalismo quanto para a colonização e a expropriação dos camponeses europeus de suas terras (FEDERICI, 2004, p. 16). Tal processo ajudou a sedimentar a subordinação e exploração das mulheres, que sob a chamada acumulação primitiva, foram destituídas do controle que tinham sobre sua função reprodutiva

o que criou condições para um regime patriarcal de caráter mais opressivo; o controle da sexualidade das mulheres instituiu-se como mecanismo para subordinação; as tarefas produtivas e reprodutivas de homens e mulheres foram redefinidas; o corpo das mulheres (e seus produtos) foi apropriado pelos homens e também pelo Estado para cumprir a função de reprodução e acumulação do trabalho.

A destruição das ―terras comunais‖ a partir da estratégia dos ―cercamentos‖20

, não sem resistência21, deteriorou profundamente a situação econômica das mulheres. As terras comunais tinham uma função social muito importante para as mulheres. Com a sua privatização, as mulheres encontravam maior dificuldade para seu sustento, caindo no empobrecimento. Para a autora, a ―feminização‖ da pobreza foi um dos primeiros efeitos do capitalismo sobre as mulheres, o que as tornavam mais dependentes dos homens.

Para Federici (2004) não restam dúvidas de que na transição do feudalismo para o capitalismo ―as mulheres sofreram um processo excepcional de degradação social que foi fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim desde então‖ (FEDERICI, 2004, p. 134).

Assim, Federici (2004) também inclui em suas análises o trabalho escravo e o sistema de plantation demonstrando como estes foram cruciais para a acumulação capitalista:

De forma significativa, a tendência da classe capitalista durante os primeiros três séculos de sua existência era impor a escravidão e outras formas de trabalho forçado como relação de trabalho dominante, uma tendência que só foi limitada por conta da resistência dos trabalhadores e pelo perigo de esgotamento da força de trabalho. Era assim que ocorria não só nas colônias americanas, onde, no século XVI, se formavam as economias baseadas no trabalho forçado, mas também na Europa (FEDERICI, 2014, p. 114-115).

A autora aponta similaridades e diferenças, resguardando as devidas proporções, entre a situação das mulheres na Europa ocidental e as mulheres escravizadas nas plantations coloniais americanas. Reconhece, entretanto, que ―a condição de mulher escrava revela de uma forma mais explícita a verdade e a lógica da acumulação capitalista‖, mas nos dois casos ―o corpo feminino foi transformado em instrumento para a reprodução do trabalho e para a expansão da força de trabalho‖ (FEDERICI, 2014, p. 163). A autora conclui que