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3 EMPREENDEDOR INDIVIDUAL E RESPONSABILIDADE

3.3 Modelos de limitação da responsabilidade patrimonial para o

3.3.2 Patrimônio de afetação despersonalizado

A segunda forma de limitação da responsabilidade patrimonial do empreendedor individual consiste na separação de patrimônio especial para os fins empresariais, porém mantendo-o vinculado, como objeto de direito, à pessoa física do empresário. Este continua como titular dos direitos e obrigações advindos da empresa, mas responde, enquanto empresário, apenas com os bens afetados, e, enquanto pessoa natural, com o patrimônio restante.

É possível ver este modelo sob duas óticas distintas. O empresário poderia ser titular de um patrimônio geral e de um patrimônio empresarial separados, seguindo a teoria do perfil patrimonial da empresa apresentada por Alberto Asquini (1996, p. 118): “o fenômeno econômico da empresa, projetado sobre o terreno patrimonial, dá lugar a um patrimônio especial distinto, por seu escopo, do restante patrimônio do empresário”. Ante a resistência à

divisibilidade do patrimônio, comum na doutrina francesa, pode-se compreender, de outra forma, que este patrimônio especial consistiria em mero destaque do patrimônio uno do comerciante, como já acontece há tempos no direito de família, em relação aos bens que entram na comunhão do casal e aqueles que pertencem a cada cônjuge em particular. A questão acerca da teoria da unidade patrimonial, no entanto, parece já superada, como aduz Antônio Martins Filho (1999, pp. 30-31):

Mas esta doutrina, como acentua Cunha Gonçalves, “é vivamente contestada por outros escritores, especialmente italianos, segundo os quais o patrimônio não é inerente à pessoa, pois podem existir pessoas sem patrimônio, embora todos tenham

capacidade patrimonial; nem é único, nem inalienável e indivisível, pois poderá

uma pessoa ter dois ou mais patrimônios, ou pode um patrimônio ser dividido e alienado, sendo exemplos disto a responsabilidade limitada, a cessão de heranças, a

aceitação de herança a benefício de inventário”.

[...]

Estas e outras razões levam-nos a acreditar que o tradicional princípio da indivisibilidade do patrimônio, predominante em alguns sistemas jurídicos, notadamente o francês – não será tão forte que justifique uma tenaz resistência aos novos rumos do ordenamento jurídico, determinados pela evolução da sociedade. Não é, em verdade, a rigidez ou a suposta invulnerabilidade dos princípios que devem sufocar os fatos da vida social, porque, ao invés, são êstes que fundamentam aquêles. (grifos no original)

É importante destacar que esta separação patrimonial revela-se de acordo com os interesses do empresário e também de seus credores, como bem explicita Calixto Salomão Filho (2006, p. 189). Ela permite ao comerciante a limitação dos riscos ao impedir que as dívidas oriundas da empresa atinjam o seu patrimônio pessoal e, ao mesmo tempo, garante aos credores da empresa um patrimônio livre de concorrência com os credores particulares do titular do empreendimento para responder às dívidas contraídas na atividade empresarial.

Um dos principais defensores deste modelo, como dito anteriormente, foi Sylvio Marcondes Machado, com sua tese publicada em 1956. O jurista aponta (p. 282) que o patrimônio em separado reúne condições satisfatórias para centralizar as relações jurídicas emergentes da atividade empreendedora do comerciante singular e dá a estas relações autonomia objetiva suficiente para desmembrá-las do patrimônio do sujeito, mesmo que a titularidade dos bens permaneça a mesma.

A professora Wilges Ariana Bruscato (2011, p. 3), reiterando o que afirmara em sua obra Empresário individual de responsabilidade limitada, lançada em 2005, também se posiciona pela adoção deste formato:

O sujeito de direito sempre foi, entre nós, o empresário ou a sociedade empresária, conforme a exploração da atividade se desse de modo individual ou coletivo,

respectivamente. A empresa, ou seja, a atividade empresarial, por sua vez, sempre foi objeto de direito. Daí havermos proposto com todas as minúcias, já há alguns anos (Empresário Individual de Responsabilidade Limitada, Quartier Latin, 2005), a possibilidade franca da limitação da responsabilidade do empresário individual, através da constituição de um patrimônio especial, nos moldes do patrimônio de afetação, sem necessidade de elaborações fantasiosas, como personalizar a atividade. (destaques no original)

O modelo ora apresentado denota-se mais simples do que a fórmula anterior, visto que não exige a criação de nova pessoa jurídica, livrando-se da esquizofrenia apontada por Waldirio Bulgarelli (1990). Compartilha-se, entretanto, das preocupações esposadas por Tatiana Facchim (2010, pp. 57 e seguintes), que se aplicam a ambas as soluções baseadas na separação do patrimônio: em primeiro lugar, porque a profunda ligação entre o titular e o organismo reduzem sua liquidez e dificultam sua transferência. A ampliação do negócio com recursos próprios do empreendedor também fica comprometida, já que implicaria na definição de nova linha limítrofe entre o patrimônio pessoal e o empresarial – em potencial confronto com os interesses dos credores pessoais do empresário. A obtenção de crédito de maneira desvinculada à figura do empresário seria utópica. A entrada de novo investidor, por sua vez, exigiria profunda mudança estrutural.

Em suma, estaria comprometido o princípio da preservação da empresa, uma vez que o espaço de manobra do empresário (e de seus sucessores, em caso de falecimento) para a continuidade da atividade seria tão limitado quanto à sua responsabilidade, como explica Calixto Salomão Filho (2006, pp. 200-201):

A conseqüência das fórmulas não societárias é uma drástica redução da capacidade de circulação da empresa e de sua liquidez. Esses problemas traduzem-se na impossibilidade de venda parcial da empresa sem transformação de forma, ou seja, sem transformá-la previamente em sociedade. Torna-se, portanto, mais difícil a venda parcial com manutenção do controle, objetivando mera capitalização. De outro lado, reduz-se a possibilidade de preservação da empresa em caso de morte do empresário. Objeto da sucessão são diretamente os bens da empresa, e não, como nas sociedades de capital, “os bens de segundo grau” representados pelas ações e pelas quotas.

O doutrinador deixa, com isso, evidente a sua preferência pela forma societária de limitação de responsabilidade do empreendedor individual, consubstanciada na sociedade

unipessoal, da qual se tratará a seguir.