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3 OS CONCEITOS ESTRUTURANTES E MEDIADORES

3.2 DIMENSÕES DO CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL E URBANO

3.2.2 Patrimônio e identidade

Sobre a discussão do conceito de identidade, Magnavita (2010, p. 68) nos chama a atenção para o cuidado que devemos ter quanto ao uso recorrente da referida palavra, pois segundo ele, é um “[...] conceito válido apenas no mundo da representação”. Nossa pesquisa trata da análise de um objeto cuja expressão maior está em sua exterioridade. Isto é, a representatividade do patrimônio urbano através de seu uso.

Essa representatividade é entendida aqui como uma narrativa genuína do lugar, que é expressa pelos elementos de sua paisagem. A materialidade construída e usada do/no

território. Neste caso, a paisagem cultural urbana de um conjunto de cidades que, a princípio, supomos ter uma identidade comum que reforça o sentido de um espaço geográfico de caráter regional.

Ora, Magnavita (2010) nos traz outra dimensão da perspectiva do conceito de identidade que é pouco percebida e é preocupante para esse autor, pois vai além da visão puramente clássica deste conceito. Ele argumenta o seguinte:

Filosoficamente, enquanto conceito (um virtual), identidade tem o sentido de mesmo, idêntico, ou seja, afirma a permanência de algo, de uma “coisa em si”, de uma essência. Vale salientar que diferentes vertentes do pensamento contemporâneo criticam o essencialismo, pois a vida, a existência se afirma como processo transformacional, onde tudo se transforma, nada permanece o mesmo. Não existem coisas em si, pois as coisas são relações, multiplicidade de elementos resultantes de imprevisíveis conexões processuais. Trata-se, portanto, sempre de um devir – outro da existência. Justamente por isso, é preciso ter o devido cuidado, ao se usar o conceito de identidade, pois ele expressa apenas a exterioridade das coisas, como mero reconhecimento de algo, de alguém, de um grupo social, de um país e que, todavia, se encontra em contínuo processo de transformação, de diferenciação, de mudança, e não

são essências, coisas em si, que permanecem (MAGNAVITA, 2010, p. 70).

Para Massey (2009, p. 30) o “[...] espaço não existe antes de identidades/entidades e de suas relações”. Ela argumenta que identidades/entidades e as relações entre elas gera uma espacialidade que faz parte desta relação construtiva. Essa autora coaduna com a ideia de que “[...] identidades especificamente (lugares, nações) podem, igualmente, ser reconceitualizados em termos relacionais” (MASSEY, 2009, p.31).

A autora acima referida afirma o seguinte sobre a questão da relação lugar/identidade e política dessas relações de construção:

[...] Se nenhum lugar/espaço é uma autenticidade coerente e contínua, então uma questão que é levantada é a de sua negociação interna. Se as identidades, tanto as especificamente espaciais quanto as outras, são, de fato, construídas relacionalmente, então isto coloca a questão da geografia dessas relações de construção. Levanta a questão da política dessas geografias e de nosso relacionamento e responsabilidade com elas, e faz surgirem, de modo contrário e, talvez, de maneira menos esperada, as geografias potenciais de nossa responsabilidade social (MASSEY, 2009, p. 31).

As assertivas acima, grosso modo, são de fundamental importância, pois nos alertam para o fato de que, as semelhanças nas exterioridades nem sempre pressupõe semelhança nos conteúdos. Ou seja, no caso da análise geográfica, por exemplo, as formas até podem

permanecer, mas os processos de sua existência determinam diferentes estruturas e funções, assim como a dimensão política do espaço, que deve ser conceituado, segundo Massey (2009, p. 95), como “[...] aberto, múltiplo e relacional, não acabado e sempre em devir”. Concordamos, portanto, com esse ponto de vista, pois, como afirma a própria autora: “[...] é um pré-requisito para que a história seja aberta e, assim, um pré-requisito, também, para a possibilidade da política”.

É isso que nos parece estar claro quando tratamos do nosso objeto de pesquisa numa dimensão galgada na Geografia Histórica Urbana, pois a ideia de rever o passado por intermédio de sua materialidade construída num recorte temporal pretérito, não congela as possibilidades de encarar o espaço geográfico na sua dimensão atual, tendo em vista, numa dimensão miltoniana, suas rugosidades, seus fixos e seus novos fluxos. Tudo isso sempre teve implicações políticas, até mesmo no processo de salvaguarda dos bens patrimoniais como

Patrimônios da Humanidade.

Chamamos a atenção de que, no caso da nossa pesquisa, são os significados das exterioridades que nos interessam. As permanências em forma de patrimônio urbano na sua essência material. Portanto, como se trata de uma análise que busca detectar a narrativa espacial comum entre sete cidades de uma mesma região, a identidade da essência do patrimônio urbano em sua exterioridade aparente, que nos interessa. Ou seja, se trata, aqui, da própria arquitetura percebida como representação em pedra e cal, de uma dada identidade. Uma concomitância temporal e uma similaridade de formas e, portanto, identidade regional baseada num “fazer” regional.

Entretanto devemos estar atentos para o que afirma Magnavita (2010) quanto ao uso do termo “identidade” na atualidade. Segundo o autor:

Hoje, o termo mais empregado do ponto de vista filosófico, não é o de identidade, mas o de diferença, pois se as coisas mudam, via de regra, elas se repetem, diferenciando-se, ou seja, ocorrem diferenças, que podem ser tanto diferenças de grau e/ou de nível, ou mesmo, diferenças de natureza, e isto, quando ocorrem atos criativos, evidenciando a mobilidade processual da existência. É sempre a diferença e não a identidade que se afirma. Pois identidade é um conceito conservador, herdado da antiguidade, e que integra o repertório conceitual da lógica clássica aristotélica, reciclada pela modernidade, e que pretende assegurar a permanência de uma essência que se pressupõe existir. Entretanto, o que de fato ocorre é a permanente mudança, transformação que evidencia a diferença, ou seja, uma descontinuidade (ruptura), um acontecimento, uma criação, um devir-outro da existência (MAGNAVITA, 2010, p. 70).

Entretanto, estamos cientes e concordamos que o espaço é um produto de relações, assim como diz Massey (2009) e Santos (2006), quando concordam que é “um conjunto indissociável entre objetos e ações”. Tais proposições se coadunam com o que Magnavita (2010) pressupõe para o conceito menos essencialista de identidade e espaço. Ou seja, como afirma Massey:

[...] um espaço jamais poderá ser essa simultaneidade completa, na qual todas as interconexões já tenham sido estabelecidas e todos os lugares já estão ligados a todos os outros. Um espaço, então, que não é nem um recipiente para identidades sempre já constituídas nem um holismo completamente fechado. É um espaço de resultados imprevisíveis e de ligações ausentes. Para que o futuro seja aberto, o espaço também deve sê-lo (MASSEY, 2009, p. 32)

Seguindo as sugestões de Magnavita (2010) e Massey (2009) nos apoiaremos em Gil Filho (2005, p. 57-58) com a abordagem das representações sociais na geografia que vem ser “[...] uma geografia do conhecimento simbólico, que assume as representações sociais como ponto de partida para uma Geografia Cultural do mundo banal, da cultura cotidiana, universo consensual impactado pelo universo reificado da ciência e da política”. Neste sentido, tais pressupostos nos remete, segundo este mesmo autor, a duas linhas de argumentação as quais corroboramos para identificar e analisar a relação entre a percepção da paisagem e sua representação para a população, num processo de observação relacionada ao senso comum, e posteriormente, interpretada pela ciência.

As argumentações são as seguintes, segundo Gil Filho (2005):

I) A primeira é relacionada às identidades sociais como resultado da imposição dos universos reificados sobre os consensuais das representações.

II) A segunda é uma Geografia do Conhecimento banal que cada comunidade produz a partir da representação que cada grupo faz de si mesmo. Uma Geografia Cultural do mundo banal, da cultura cotidiana, do universo consensual impactada pelo universo reificado da ciência e da política (GIL FILHO, 2005, p. 56).

Ainda para Gil Filho (2005),

[...] existe uma identidade comum ao grupo, livre e de certo modo igualitária. Dois mundos coexistem: um consensual, próprio das representações sociais, e outro reificado, próprio das ciências e da política. Enquanto o segundo surge fora de nós de modo coercitivo e é aquele ao

qual devemos ser submetidos na forma de um espaço de relações de poder, o primeiro é a consciência coletiva que restabelece uma harmonia convencional na explicação das coisas e dos fatos do cotidiano em um espaço banal. A análise das representações sociais nos coloca diante da necessidade de decodificar este mundo próprio do universo banal, o do ser no espaço para o ser enquanto espaço (GIL FILHO, 2005, p. 57-58).

Afinal como afirma Torres (2008), analisando as cidades como expressão cultural em suas paisagens e objetos ali contidos,

[...] as instituições culturais - aquelas que reúnem um conjunto de práticas, técnicas, símbolos e valores capazes de garantir a reprodução de um estado de coexistência social e ainda, de sentidos de pertinência social, ainda que atravessados por discursos múltiplos e imaginários - inscrevem-se na paisagem das cidades como lugares relevantes para a re-apresentação da memória desta mesma paisagem, constituindo-se estruturas dinâmicas no tecido urbano. Portanto, a paisagem à qual estamos nos referindo é a acumulação, no tempo e no espaço, de práticas, técnicas, valores e símbolos culturalmente constituídos (TORRES, 2008, p. 40).

Para Torres (2008) a cidade é o lugar da representação da cultura, e afirma que:

[...] A noção de patrimônio se torna fundamental para a compreensão da cidade como lugar de re-apresentação da memória e da cultura. Cidade como representação da cultura e patrimônio, portanto, fundamentam o trabalho da memória. Uma memória que se escreve no singular, mas que se afirma e se estrutura como plural e tensa. Sem o trabalho da memória, a ossatura da cidade ficaria exposta de uma outra maneira e nos distanciariam da “alma da cidade” (TORRES, 2008, p. 40).

Na assertiva acima se percebe a fusão dialética entre os conceitos de paisagem, patrimônio, cultura, memória e representação social, todos imbricados na atmosfera urbana das cidades e que serão refletidos na identidade com o lugar.

Neste sentido, Gonçalves (2013) afirma que:

A discussão da dimensão urbana do patrimônio é uma agenda muito oportuna no contexto brasileiro, onde está em curso um redirecionamento das políticas culturais no sentido da integração dos sítios históricos nos seus propósitos de salvaguarda. Esta oportunidade se estende a outros contextos geográficos e sociopolíticos, como é o caso dos países do sul europeu cujas políticas de ordenamento do território tendem a dar menos valor às dinâmicas de expansão urbana e a valorizar cada vez mais as operações que tem o prefixo re no seu nome: regeneração, revitalização, renovação, reabilitação e várias outras [...] Porém, se por um lado é importante e necessário debater as políticas e as metodologias de

salvaguarda e gestão do patrimônio de dimensão urbana, também não deixa de ser verdade que esse debate não encerra grandes novidades ou, pelo menos não encerra novidades em termos absolutos. Há muito que se sabe que a salvaguarda deve ser integrada no desenvolvimento. Porém essa não é a prática corrente [...] (GONÇALVES, 2013, p. 29).

A assertiva apresentada por Gonçalves (2013) se aplica em parte à realidade do Recôncavo Baiano, no sentido de que algumas intervenções de conservação do patrimônio urbano, no caso deste estudo, o patrimônio edificado, já foram realizadas na cidade de Cachoeira de forma mais intensa, numa articulação mais imbricada entre esferas político- administrativas do país (União, Estado e Município). Entretanto, ainda há muito por fazer nas outras cidades da região, especialmente naquelas que são o foco da nossa pesquisa.