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O Pedido de Tombamento da Estrada de Ferro Perus-Pirapora

2. SOBRE OS SOLICITANTES E SUAS INTERPRETAÇÕES

2.3. O Pedido de Tombamento da Estrada de Ferro Perus-Pirapora

Em 1980, a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF) manifestou ao CONDEPHAAT sua preocupação com a venda da Estrada de Ferro Perus-Pirapora (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980). Naquele momento, juntamente com os bens da Companhia Cimento Portland Perus, a ferrovia estava incorporada ao patrimônio nacional e tinha leilão previsto para 20 de maio do mesmo ano. Seguindo a lógica das ações mencionadas no tópico anterior, alegam, como motivação do pedido, o risco de extinção da ferrovia. Para justificar o pedido, o grupo encaminhou um estudo detalhado e outras publicações complementares sobre a estrada de ferro. Esse documento é base das reflexões apresentadas neste tópico.51

A Estrada de Ferro Perus-Pirapora foi aberta em 1914, com o propósito de transportar romeiros entre São Paulo e Pirapora do Bom Jesus. Contudo, após aditamentos de prazo, a ferrovia nunca atingiu seu destino final. Conforme Siqueira (2001), as metas da Companhia Industrial e de Estradas de Ferro Perus-Pirapora (CIEFPP) superavam o transporte de passageiros e a exploração de cal, sendo estudada desde 1915 a possibilidade de instalação de uma usina de cimento nas dependências da companhia. Em Agosto de 1924, a CIEFPP e a Drysdale & Pease, empresa canadense com sede em Montreal, firmaram sociedade com objetivo de fabricação e venda de cimento e de produtos derivados. Assim, ainda segundo o autor, a empresa brasileira arrendou, pelo prazo de trinta anos, a própria estrada de ferro, material rodante, oficinas e edifícios nas dependências da linha férrea.

Em 1951, a fábrica de cimento passou ao capital nacional, adquirida pelo empresário João José Abdalla, passando a ser denominada Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus. A ferrovia, empresa independente e do mesmo proprietário, prestava serviços de transporte para a fábrica de cimento. Foi também após esse período, com o desuso da bitola de 60 cm, que a EFPP adquiriu material rodante de companhias como a Tramway da Canteira, Fazenda Dumont, Companhia Paulista, etc. Na década de 1970, foi confiscada pelo Governo Federal, situação na qual se encontrava, quando da abertura do processo.52

51 A documentação inicial apresentada pelo solicitante corresponde ao intervalo entre as páginas 2 e 62 (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980).

52 As informações detalhadas sobre a propriedade da EFPP no período estão presentes no item 3.1. A posição dos proprietários.

Conforme presente nas considerações da ABPF, a Perus-Pirapora era um exemplo característico de pequena ferrovia com finalidade dirigida, similar a outras denominadas por Odilon Matos (1974 apud PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980; MATOS, 1990) como “cata-café” ou “puxa-cana”. Diferente de suas congêneres, relacionadas à agricultura, a construção da EFPP estava relacionada à primeira fábrica de cimento do país, em um subúrbio que se industrializava (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980). Ainda conforme o solicitante, foi justamente essa particularidade transporte para indústria o fato dessa fonte não se haver esgotado em poucos anos, o que torna o caso uma exceção: “[...] salvando-a do fechamento que atingiu suas congêneres quando da decadência do café nas regiões que serviam ou de sua obsolescência nas usinas de açúcar” (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980, p.5).

Ainda que a EFPP não estivesse integrada à Rede Ferroviária Nacional, como os outros bens e ferrovias mencionados nas ações do grupo, os argumentos da ABPF também estiveram apoiados em uma ideia de decadência do modal: “Após o chamado ‘ciclo ferroviário’, advém a decadência das ferrovias, gerando nova era de profundas modificações nos sistemas de comunicação do país, em que as estradas de ferro são substituídas pelas rodovias” (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980). Em sequência, recorrem a Matos (1974 apud PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980; MATOS, 1990) para apontar a ausência de aparelhamento e a concorrência do automóvel como causa da obsolescência dessas pequenas ferrovias.

A Associação menciona o contexto dos anos de 1950 e a autorização de supressão dessas pequenas ferrovias; contudo, a organização dessas considerações demonstra a conexão com os argumentos do grupo nos anos de 1970 e nos de 1980. O exemplo mais claro é a referência ao número de quilômetros de ferrovias similares, suprimidas a partir de autorização legal em 1955 (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980): “só no Estado de São Paulo, quase mil quilômetros de estradas foram suprimidas, abrangendo vinte e sete trechos de pequenas estradas ou ramais de grandes empresas” (MATOS 1974 apud PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980; MATOS, 1990). Esse assunto, em nosso entendimento, aparece associado às discussões sobre as linhas antieconômicas, tema contemporâneo ao pedido de tombamento e aos propósitos da ABPF.

Após a apresentação desse contexto, o solicitante afirma que, frente a isso, — a supressão dos exemplos similares —, fica evidente a singularidade da qual se reveste a sobrevivência de uma dessas empresas, com equipamentos e instalações em funcionamento (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980). Assim sendo, notamos que a representação do bem está atrelada ao testemunho dessas pequenas

ferrovias e, por consequência, à interpretação do solicitante, associada à decadência do modal.

O documento principal era composto pelos seguintes tópicos: Estrada de Ferro Perus-Pirapora: histórico; O seu patrimônio: valor histórico; O pedido de tombamento; Bibliografia e Fontes; e, Notas (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980). A própria organização do texto contém indicadores sobre a interpretação do bem, em especial seu conjunto de locomotivas. O tópico O seu patrimônio: valor histórico é composto por dois subtítulos, “material rodante” e “instalações”. Nesse item, há uma descrição detalhada sobre as locomotivas a vapor e sua origem, atenção dada em menor proporção aos demais componentes.

Sobre as justificativas para a proteção, os argumentos destacam o fato de ser um conjunto completo e suas características de uso e manutenção:

O motivo essencial de se solicitar a preservação da Estrada de Ferro Perús-Pirapora, é o fato de ser ela um conjunto completo, em funcionamento normal e integral, o que lhe atribui um valor cultural mais amplo que o de uma amostragem histórica composta por objetos, ainda que muito completa, visto que no presente caso sobrevive com ela uma tradição de uso e manutenção artesanal já que quase morta pelo progresso e tecnologia. Fica clara, porém, a necessidade de se conciliar a preservação ideal com a possível (PROCESSO CONDEPHAT 21273/80, 1980, p. 4, grifos nossos).

A leitura completa do pedido de tombamento (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980) nos permitiu identificar que a mencionada “tradição de uso e manutenção” estava distante das questões das práticas do trabalhador ferroviário, como poderia aparentar em um primeiro momento. Em verdade, a justificativa estava associada à tecnologia a vapor e, a partir disso, às suas características técnicas e operacionais. A defesa dessa tecnologia específica não é uma novidade, como visto, as ações da ABPF no período foram focadas na defesa de locomotivas a vapor (vide 2.2.).

A lógica desse argumento apareceu também em outro pedido de tombamento realizado pela ABPF, referente à proteção do trecho entre Aureliano Leite, São João Del Rei e Antônio Carlos, da antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM), encaminhado ao IPHAN em 1983:

O referido trecho da ex EFOM, em bitola de 76 cm, é hoje a última ferrovia a conservar integralmente um sistema ferroviário típico e expressivo da época de implantação das estradas de ferro no Brasil, mantendo o traçado, vias, edificações, equipamentos de apoio e veículos originais em uso, com todas as suas características técnicas intocadas (PROCESSO IPHAN 1096-T-83, 1983, p. 1).

São características comuns entre os exemplos as menções à ferrovia no todo e à defesa da singularidade do objeto, entendidos enquanto sobreviventes. Em ambos os casos, a ideia de serem objetos únicos está apoiada também na mencionada interpretação de sucateamento do setor. Na EFPP, esse entendimento é sugerido pela expressão: “quase mortos pelo progresso” (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980, p.4). No segundo exemplo, a ferrovia é considerada como última a conservar um sistema ferroviário típico (PROCESSO IPHAN 1096-T-83, 1983).

Fazem-se necessárias ainda algumas considerações sobre a proposta de preservação integral e argumentos relativos aos sistemas ferroviários, elementos presentes em ambos os casos. A interpretação da ferrovia e do patrimônio ferroviário enquanto um sistema está presente na bibliografia atual (RODRIGUES, 2010; FERRARI, 2010; TICCIH, 2003), contudo, difere das considerações apresentadas pela ABPF nos pedidos mencionados. Novamente, com base na pesquisa sobre o grupo (vide 2.2.) e na leitura do processo da EFPP (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980) notamos que a abrangência — tombamento integral — estava mais relacionada ao ideal de proteção proposto pelo grupo: a preservação em movimento, em atividade. Assim sendo, ainda que as locomotivas fossem o objeto em destaque, os demais equipamentos eram necessários para garantir a capacidade operacional do acervo.

Como resultado desta análise, identificamos que a abrangência do pedido e posterior efetivação de tombamento estavam relacionadas aos interesses dos solicitantes evitar a destruição de locomotivas a vapor, preservando sua operacionalidade. Dessa forma, o conjunto de objetos protegidos estava relacionado às necessidades operacionais. As mesmas características aparecem no processo de proteção da antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas (PROCESSO IPHAN 1096-T-96). Por informação, simultâneo ao pedido de tombamento estadual da EFPP, a ABPF encaminhou solicitação de proteção também ao IPHAN. Esse processo foi indeferido, tendo recebido parecer de arquivamento no início dos anos 2000 (PROCESSO IPHAN 1104-T-83).

3. ESTRADA

DE

FERRO

PERUS-PIRAPORA:

UM

OBJETO,