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POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE AS IDÉIAS DE MORIN E LIPMAN

3 Pensamento crítico

O pensamento crítico, para Lipman, é um dos componentes necessários do pensamento de ordem superior e um de seus papéis é o de manter uma luta constante contra o dogmatismo e a manipulação intelectual. Lipman cita Richard Paul66, que concebe o pensar crítico como luz que ilumina e esclarece o conflito contra as forças da obscuridade. Isso porque o ser humano possui uma força ilimitada para o auto-engano, força essa que o mantém parcial em seu próprio ponto de vista, desconsiderando as outras pessoas que estão ao seu redor; é desse fato que surgem o fanatismo, a intolerância e a doutrinação tão presentes no mundo. Por esse motivo, Lipman propõe que o pensar seja autocorretivo, sensível ao

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101 contexto, orientado por critérios e que conduza ao julgamento com lucidez. Os critérios e as razões fazem parte do pensamento crítico, são os fatores diretivos desse pensar, e deveriam orientar as decisões que as pessoas tomam diariamente na vida; por isso é necessário conhecê- los bem, a fim de evitar a alienação e o servilismo cognitivo. Diz Lipman (1995, p. 42) que o pensamento complexo pode reconhecer os fatores responsáveis pelas tendências, pelos preconceitos e pelas auto-ilusões.

Aqui, pode-se estabelecer uma nova ponte entre os dois pensadores, principalmente quando Morin diz que, na luta contra a ilusão, “devemos reconhecer como dignas de fé apenas as idéias que comportem a idéia de que o real resiste à idéia” (2002, p. 30). Também considera (ibid., p. 32) que a mente humana deve desconfiar de seus produtos ideais e estar permanentemente atenta, a fim de evitar o idealismo e a racionalização; é preciso exercer controle e negociação entre a mente e suas idéias. Afirma em O método 3 que “o pensamento não pode evitar o risco de desregulação, ou seja, de loucura” (1999, p. 204). Neste caso, para ambos, a educação poderia auxiliar as pessoas a enfrentar os problemas que dizem respeito à sua maneira de pensar.

Outra característica do pensamento crítico, para Lipman, é a autocorreção. Para ele, é preciso perceber os erros cometidos no próprio pensar e procurar corrigi-los; é possível também (e desejável) perceber os erros no pensamento das outras pessoas; é necessário detectar ambigüidades e incoerências nos textos e as inconsistências presentes nas discussões, distinguindo com clareza as razões e os critérios presentes no próprio pensamento e no das outras pessoas. Este procedimento põe os pensamentos em crise, em reexame, e isto poderá resultar num pensar da melhor qualidade.

O pensamento crítico comporta a autocrítica. Nesse sentido, Morin compartilha com Lipman a idéia de autocorreção, mas não só: Morin trata desse assunto de forma contundente em toda a sua obra, em especial no capítulo I do seu livro Os sete saberes necessários à educação do futuro, em que menciona que “o conhecimento, sob a forma de palavras, de idéias, de teoria, é fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro” (2002, p. 20). Logo em seguida, ele analisa outros problemas referentes aos erros e ilusões, dizendo em relação ao conhecimento científico, que “os paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões, e nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro” (ibid., p. 21). Em relação aos erros mentais, o pensador francês afirma que a mente humana é dotada também de potencial

102 de mentira para si (self-deception), que é a fonte permanente de erros e de ilusões; a mentira para si é fruto do egocentrismo, da necessidade de autojustificativa e da tendência humana de projetar sobre o outro a causa do mal, mesmo sabendo não ser ele o autor. Existem os erros intelectuais presentes nos sistemas de idéias (teorias, doutrinas, ideologias), que não só estão sujeitos ao erro, mas os protegem. Há os erros da razão, quando ela funciona ao contrário da “verdadeira racionalidade”, que “conhece os limites da lógica, do determinismo e do mecanicismo; sabe que a mente humana não poderia ser onisciente, que a realidade comporta mistério. [...] É não só crítica, mas autocrítica” (ibid., p. 23).

Para Morin, as pessoas pensam, conhecem e agem de acordo com os paradigmas que estão inscritos culturalmente em suas mentes – aí estão as cegueiras paradigmáticas –, porque esses paradigmas selecionam e determinam as conceitualizações e as operações lógicas vigentes. Há também o “imprinting cultural, marca matricial que inscreve o conformismo a fundo, e a normalização que elimina o que poderia contestá-lo” (2002, p. 28). Há os erros decorrentes da noosfera67; seu estudo, a noologia, nos diz que “as crenças e as idéias não são somente produtos da mente, são também seres mentais que têm vida e poder. Dessa maneira, podem possuir-nos”. Além de tudo isso, há o não saber lidar com o inesperado, que segundo Morin “brota sem parar”, daí a necessidade de “ser capaz de rever nossas teorias e idéias, em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo”.

Ao tratar da incerteza do conhecimento, Morin introduz a idéia dos metapontos de vista68, “que permitem a reflexividade e comportam especialmente a integração observação- conceptualizador na observação-concepção e a ‘ecologização’ da observação-concepção no contexto mental e cultural que é o seu” (ibid., p. 31).

Em Os sete saberes necessários à educação do futuro, o autor aponta a educação como principal responsável “em armar cada um para o combate vital para a lucidez” (ibid., p. 33).

Neste ponto há uma convergência significativa entre Lipman e Morin: ambos propõem um pensamento capaz da autocorreção para dar conta dos gigantescos problemas que não cessam de brotar ao longo da história. A educação, para os dois autores, é caminho e

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Noologia origina-se do termo noosfera, criado por Teilhard Chardin, em o Fenômeno humano, e designa o mundo das idéias, dos espíritos, dos deuses, das entidades produzidas e alimentadas pelo espírito humano dentro da cultura (Cf.: MORIN, 2005, p. 208).

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Metaponto de vista – “as regras, os princípios, os parâmetros [...] os paradigmas que regem o conhecimento podem tornar-se objeto de exame por um conhecimento de segundo grau (conhecimento relativo aos instrumentos do conhecimentos) [...]” (Cf.: MORIN, 1999, p. 24).

103 apoio indispensável para o desenvolvimento do pensamento permanente, aberto, lúcido, capaz de promover a metacognição, o pensar sobre o pensar, o conhecimento do conhecimento.

O pensamento crítico, segundo Lipman, é sensível ao contexto, isto é, ele considera “as uniformidades e regularidades que são genéricas e intercontextuais”, as características de cada situação, que podem ser específicas ou mais gerais. Para o autor (LIPMAN, 1995b, p. 180), o pensamento crítico considera as circunstâncias e as condições excepcionais ou irregulares em que ocorrem os fatos e, ainda, as limitações especiais, as contingências ou restrições, as configurações globais, as possibilidades de que a evidência seja atípica e de que alguns significados não sejam traduzidos de um contexto ou domínio para outro.

Lipman apresenta uma série de exemplos de comportamentos e, conseqüentemente, de pensamentos que associam ou contextualizam idéias e fatos. O pensamento crítico leva em conta o contexto, as circunstâncias e as limitações, as contingências, as eventualidades espaciais e as configurações globais.

As idéias de Lipman se aproximam novamente das de Morin, ou vice-versa. A idéia de contextualização é inerente ao pensamento complexo, pois nele reside a capacidade de pensar o contexto considerando as inter-relações, as implicações mútuas e a multidimensionalidade dos fenômenos e das realidades, simultaneamente solidárias e conflitivas.

Segundo Morin, a complexidade compreende que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e vice-versa; como diz no seu livro A cabeça bem-feita “os componentes que constituem um todo [...] são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes” (MORIN, 2004, p. 14). O conhecimento pertinente e, conseqüentemente, o pensamento, tem a capacidade de situar-se no contexto para enxergar os detalhes de qualquer informação, ao mesmo tempo que é capaz de ampliar sua visão (ibid., p. 15). A capacidade do conhecimento de contextualizar e englobar está ligada à idéia da complexidade, pois o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo, e assim reciprocamente.

Ainda sobre a relação parte-todo e entre o contextual e o global, Morin, em Os sete saberes necessários à educação do futuro, que trata os princípios do conhecimento pertinente, esclarece o pensamento que distingue e une, dizendo que “não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da análise pela síntese; é preciso conjugá-las” (2002, p. 46). Desse modo, para que o conhecimento tenha sentido, é necessário situar os dados colhidos nas informações dentro de seus contextos. Em

104 síntese, o pensar bem, para Morin, “permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano” (ibid., p. 100).

Para Lipman, o resultado do pensamento crítico é o juízo. Os juízos são opiniões, estimativas ou conclusões; são uma determinação do pensar, do falar, do agir e do criar. Um gesto, um aceno, uma metáfora etc. podem ser um juízo. Segundo Lipman, “o pensar crítico é um pensar responsável e habilidoso que facilita bons juízos porque se apóia em critérios” (1995b, p. 35). Então, critérios e razões são os fundamentos do pensar crítico.

Nesse aspecto, a comparação com Morin pode ser estabelecida com os “critérios” do pensamento complexo, que mantém um complexo de condições internas capaz de enfrentar as incertezas e contradições e todos os condicionantes do pensamento. São mais do que critérios, são princípios, porque podem ser entendidos como constituintes da própria natureza da complexidade. São os princípios: hologramático, do circuito retroativo, do circuito recursivo, da autonomia/dependência, dialógico e da retrointrodução do conhecimento em todo conhecimento. Todos eles foram abordados no primeiro capítulo69.

Morin e Lipman tratam de maneira semelhante algumas idéias sobre pensamento autocrítico e autocorretivo. Para Morin o pensamento comporta a autocrítica e necessita estar atento e controlado, a fim de evitar as ilusões, as racionalizações, as desregulações e a loucura. Lipman destaca a autocorreção como um importante componente do pensamento crítico, que tem a função de identificar, no próprio pensamento e no pensamento dos interlocutores, os erros e as ilusões, as ambigüidades e inconsistências existentes no pensamento e no discurso.

Os dois autores, em relação ao pensamento crítico e suas características, apresentam muitas idéias concorrentes, com especial destaque às idéias de autocorreção e autocrítica, de critérios, razões e princípios. A comparação entre as idéias dos autores continua na próxima seção.

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