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7. SOBRE O RURAL E AS RURALIDADES: DE ESSENCIALIZAÇÕES PARA

7.2. O PENSAMENTO ECONOMISTA EUROPEU

Diferentemente dos antropólogos norte-americanos, os economistas europeus se depararam com uma realidade condicionada pelas relações feudais de servidão e pelas alterações estruturais instituídas pelas inúmeras revoluções européias, especialmente a dupla revolução ccliii.

As construções destes autores, muitos deles não economistas, foram fundamentais para as teorizações etnográficas posteriores. Neste sentido serão abordadas as contribuições de Alexander Chayanov, Boguslaw Galeski, Jerzy Tepicht que são em certa medida seguidores da obra de Chayanov e Henri Mendras.

Chayanov representa o único economista destes teóricos. Crítico não explícito do marxismo de sua época este autor toma a sociedade camponesa a partir da família camponesa visualizada como um grupo doméstico cuja força de trabalho está hierarquicamente centrada no casal, nos filhos e em possíveis agregados que podem contribuir como seu trabalho ccliv.

Chayanov utiliza o termo fazenda familiar (family farm) em um sentido particular referindo-se aos grupos domésticos camponeses que se reproduzem quase exclusivamente do trabalho familiar de seus membros. Se a fazenda camponesa utiliza algum trabalho alugado ele seria usado para estabilizar seu equilíbrio econômico básico, que se pauta na equação entre a satisfação demandada e a força de trabalho penoso dispensada até um ponto favorável não necessariamente com objetivo de produzir lucro cclv.

Ao comparar a empresa capitalista e a fazenda camponesa, o autor aponta como característica essencial da primeira o fato da mesma operar com os trabalhadores assalariados com objetivo de produzir lucros. A fazenda camponesa, por outro lado, normalmente não empregaria trabalho assalariado em nenhuma forma. A fazenda familiar dependeria somente do trabalho dos seus próprios membros familiares cclvi.

O conceito de análise central do autor foi o de balanço consumo- trabalho entre a satisfação das necessidades familiares e o desgaste do trabalho. Segundo Chayanov para

um determinado nível de vida há uma renda total ou quantidade de produtos total do grupo doméstico camponês ao fim de um ano agrícola. Na renda total anual seriam deduzidos em primeiro lugar a rede de produtos que constituem o retorno pelo trabalho da família durante o ano agrícola. Se na empresa capitalista os lucros são o resultado do produto total deduzindo-se os salários e os gastos com matéria-prima, para a família camponesa não existiria lucro nem salários. E como na economia camponesa não existe salários, a produção total em um ano agrícola seria todos os produtos cultivados pela unidade de trabalho familiar após a dedução da soma total de material gasto durante o ano agrícola

cclvii

.

O produto de trabalho (labor product) seria o produto do trabalho familiar sendo a única categoria de renda da unidade familiar de trabalho camponês e não apresentaria uma forma de ser decomposta analítica ou objetivamente. Por isso não há salário ou lucro, sendo impossível aplicar categorias capitalistas para o calculo do lucro camponês cclviii.

A economia camponesa, com isso, seria uma forma não-capitalista de economia que apresenta suas próprias regras de funcionamento, especialmente o fato de que ela é uma unidade econômica familiar não-assalariada cclix.

A família camponesa, assim, apresenta uma evolução subjetiva, isto é, uma aprendizagem baseada na longa experiência na agricultura ao longo das gerações que são repassadas dentro da família pela experiência direta, e que podem aumentar as horas de trabalho ou trabalhar mais intensamente, ou às vezes ambas as coisas. Esta extensão dos membros da família que verdadeiramente trabalham em dadas condições representa o grau de auto-exploração do trabalho familiar, sendo que os camponeses apenas colocariam um enorme esforço se apresentarem razões para acreditar que isso iria aumentar sua produção, que retornaria para o maior consumo familiar, para ampliar o investimento na fazenda, ou ambos cclx.

Este esforço representa o mecanismo de auto-exploração que é a forma como a família procede para alcançar seu balanço consumo-trabalho. Como afirma Chayanov “In other words, we can state positively that the degree of self-exploitation of labor is established by some relationship between the measure of demand satisfaction and the measure of the burden of labor (p.81)”cclxi.

Cada família procura uma produção anual adequada para suas necessidades básicas, mas esta envolve o desgaste do trabalhador e a família não empurra seu trabalho além do

ponto onde o incremento possível na produção seja extremamente compensador12 para a formação deste trabalho extra. Cada família busca o duro balanço ou equilíbro entre o grau de satisfação das necessidades familiares e grau de desgaste do trabalho. Isso porque o principal gasto da economia camponesa não é a máxima de renda a ser assimilada como acontece no sistema capitalista, mas a subsistência familiar. É esta subsistência que determina as atividades camponesas cclxii.

Com isso, o autor compreende a fazenda camponesa “as a family labor farm in which the family as a result of its year’s labor receives a single labor income and weighs its efforts against the material results obtained (p. 41)” cclxiii. As limitações da organização da família agrícola camponesa seriam o tamanho da família e a sua composição. Estas duas variáveis permitiriam à família camponesa modificar seu volume de produção quando a disponibilidade de terra e capital fosse escassa, ao contrário da empresa agrícola capitalista que sob condições adversas quanto a capital e terra não consegue manter o seu crescimento produtivo. Isto acontece porque o volume de atividade familiar está na dependência direta do número de consumidores que a família camponesa apresenta e não no total de trabalhadores que a compõem. É a demanda de consumo familiar que estimularia a self- exploitaton do campesinato cclxiv.

Como aponta Woortmann “Chayanov considera o grupo doméstico (family household na tradução em língua inglesa) como uma unidade econômica discreta e isolada, cuja produção é o retorno da atividade indivisível da família (p.30)” cclxv.

A família constituiria um conjunto de produtores e consumidores no sentido econômico e não um valor cultural. O autor em sua análise do campesinato russo, especialmente o de fronteira, não se preocupava com as relações extrafamiliares13.

A família representava estritamente uma unidade econômica ocupada com a reprodução de seus fatores de produção. A organização da terra, dos instrumentos de produção e a divisão do trabalho fundado no trabalho familiar, singularizando a economia camponesa da economia capitalista são tomadas como simplesmente fatores de produção, sendo todas as relações estabelecidas no grupo doméstico compreendidas como relações de trabalho. Na sua análise não há a família como campo simbólico e de valores cclxvi.

12

Em inglês outweighed. 13

Como aponta Abramovay (1998), as contribuições de Chayanov, necessitam ser compreendidas no quadro intelectual e especialmente pessoal deste autor que apresentava um imenso valor pelas formas camponesas de viver, pautadas na comunitarismo e tomadas como a forma verdadeiramente russa de ser, em contraste ao universalismo ocidental.

Nestas teorizações a categoria trabalho é fundamental. Em Chayanov existe certa harmonia na divisão do trabalho dentro da família. Esta divisão, contudo, é mínima de forma que o jogo entre necessidades e consumo interno possa se manter o mais favorável possível para a família e comandado pelo chefe da família.

O tempo social para o campesinato, segundo este autor, seria organizado pelas necessidades de produção econômica da família, sendo as outras dimensões sociais reduzidas ao mínimo possível de forma a maximizar aquele.

Galeski e Tepicht, dois importantes teóricos dos estudos do campesinato, continuadores da obra de Chayanov, apresentam elementos que ampliam a compreensão da sociedade camponesa, mas também reforçando a dimensão econômica do grupo doméstico

cclxvii

.

Galeski aproxima-se de Chayanov e aponta que a compreensão do campesinato perpassa o estudo da família camponesa, entendida como o grupo formado pelas pessoas ligadas entre si por laços próximos de consangüinidade (pais e filhos) e que vivem juntas. A família é para este autor um workteam, ou seja, um grupo que se apresenta diferenciado internamente no trabalho e hierarquizado, sendo que o indivíduo encontra-se enraizado na família e dependente da mesma cclxviii.

Por outro lado, diferente de Chayanov, Galeski reconhece que as relações entre a família e a aldeia são importantes para a compreensão da sociedade camponesa. Tendo como campo empírico o campesinato polonês, Galeski, aponta que a aldeia seria responsável pelo controle sobre o comportamento dos indivíduos e das famílias e sobre o controle das formas de uso da terra, principal meio de produção e dos outros instrumentos de trabalhos. Este autor aponta assim a comunidade e as relações entre famílias cclxix.

Para Galeski a sociedade camponesa se estrutura por meio de uma razão econômica, sendo todas as relações sociais constituídas e pensadas a partir desta dimensão. Todo o campo simbólico se comportaria enquanto uma esfera dependente das necessidades materiais de reprodução econômica e social do campesinato, sendo marcante na sociedade camponesa a subordinação do indivíduo à família e à comunidade cclxx.

Já Tepicht considera a família como centro da economia camponesa, mas reconhece que este tipo de economia constitui-se pela simbiose entre o empreendimento agrícola e a economia doméstica, em que esta se constituiria pelo coletivismo rigoroso da família e o empreendimento agrícola pelo egoísmo externo. Estas duas dimensões representam cada qual a face de uma cápsula na qual a família camponesa estaria inserida cclxxi.

Para Tepicht tal cápsula está ligada às mudanças da economia camponesa resultante da expansão da economia de mercado. Sua análise aponta para a compreensão do capitalismo como elemento fundamental na diferenciação da economia camponesa e da economia moderna, e conseqüentemente da sociedade camponesa e da sociedade moderna. O caráter familiar é o ponto que singulariza a economia camponesa, sendo o local gerador das relações com os fatores de produção e com mercado e as relações entre trabalho e remuneração cclxxii.

Nas análises de Galeski há, assim, uma diferenciação e hierarquização do trabalho, ou seja, uma maior complexidade das relações de trabalho na economia camponesa em que é fundamental a subordinação do indivíduo ao processo produtivo e as necessidades da família e da comunidade, reguladoras de tempo de trabalho e das outras dimensões da vida social do campesinato. Tepicht, por sua vez, apresenta uma compreensão da organização do trabalho similar à de Galeski, mas aponta ainda para modificações na economia camponesa e em suas relações de trabalho orquestradas pela expansão da economia de mercado.

O quarto autor, Henri Mendras, apresenta também uma produção teórica sobre o campesinato francês tomado em uma dimensão econômica. Para este autor o camponês seria o agricultor, o produtor agrícola, sendo simultaneamente trabalhador e dono dos meios de produção cclxxiii.

Influenciado por Redfield, que contrapõe sociedades camponesas às sociedades selvagens e às industriais, Mendras caracteriza as coletividades camponesas por apresentarem uma relativa autonomia frente à sociedade envolvente e do seu sistema econômico camponês que não distingue a produção de consumo e tem relações com a economia circundante. No campesinato, o grupo doméstico seria a estrutura central para a sua organização social e econômica. Com isso as relações internas de interconhecimento são fundamentais, enquanto as relações com a sociedade envolvente são débeis. Esta última característica resultaria na existência dentro da sociedade camponesa de um grupo intermediário entre os camponeses e a sociedade envolvente, uma camada de indivíduos específicos responsáveis pela mediação (os notáveis) cclxxiv.

A partir destes elementos, Mendras analisa a coletividade camponesa, baseada em grupos domésticos, ressaltando a sua dimensão econômica. Os grupos domésticos enquanto famílias indivisas apresentam apropriação comunal da terra e toda a reprodução social do grupo doméstico encontra-se na produção econômica e não nas relações sociais

cclxxv

Tendo o trabalho a partir de uma dimensão econômica, a organização interna dos grupos domésticos e da vida social camponesa se assentaria na exploração máxima das condições e dos meios de produção de forma a assegurar a reprodução destes grupos domésticos. Conseqüentemente, as regras de conduta pautadas no universo de valores, especialmente no parentesco, são irrelevantes cclxxvi.

Nestes autores, a família ou no caso de Mendras, o grupo doméstico, como dimensão econômica representaria o principal elemento para compreensão do campesinato. Em todos estes autores, a principal ênfase é a produção econômica pela família, e não para a produção social da família enquanto instituição e campo de valores cclxxvii.

O economicismo destes autores, entendido por Sahlins como elemento da teoria da utilidade, é por si uma forma simbólica de compreensão do campesinato e demonstra certa compreensão econômica da cultura e das relações de trabalhos no campesinato. A teoria da utilidade, por sua vez, pressupõe a existência de uma lógica do proveito material governando a produção, pautada na maximização das relações meios-fins cclxxviii.

Contrapondo-se à teoria da utilidade, característica de uma razão prática, Sahlins propõe a razão simbólica que compreende a própria lógica instrumental do trabalho como uma ordem cultural inserida em um esquema de significação, que é somente uma possibilidade dentre várias outras. Neste sentido, se as forças materiais (relações de produção, as condições e mesmo os limites materiais) são socialmente constituídas, os seus efeitos específicos são culturalmente determinados. Em outras palavras:

A produção, portanto, é algo maior e diferente de uma prática lógica de eficiência material. É uma intenção cultural. O processo material de existência física é organizado como um processo significativo do ser social- o qual é para os homens, uma vez que eles são sempre definidos culturalmente de maneiras determinadas, o único modo de sua existência (p.169) cclxxix.

Com Sahlins é possível problematizar a proposta dos culturalistas norte-americanos que predominantemente desconsideram os aspectos econômicos e dos economistas europeus que reificam a economia e desconsideram os arranjos simbólicos e mesmo sociais. Nos dois casos se desconsideram as relações engendradas pelas duas dimensões. As propostas contemporâneas sobre o rural irão se apropriar das contribuições destes dois grupos e demonstrar a necessidade de aproximar a dimensão cultural e econômica para a compreensão dos mundos rurais.

Iremos discutir estes enfoques no próximo tópico, contudo, apresentaremos anteriormente, alguns aspectos sobre o rural que advém de diferentes áreas de

conhecimento e buscam dimensionar outras esferas das experiências sociais e culturais impressas nas realidades rurais.

7.3. PARA TECER DISPERSÕES... CIRCUNSCREVENDO CONCRETUDES E