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Por outro lado, é no contexto da distinção entre “pensamento” e “conhecimento” que Hannah Arendt lançará luzes sobre o grande risco que ronda a atividade dos ditos filósofos profissionais que – por desconsiderarem a capacidade de reflexão dos homens comuns – afastam-se da esfera dos negócios humanos, isolando-se em sistemas filosóficos, alheios às demandas e contingências que constituem o mundo humano. “Pensar e conhecer são ambos diferentes da política, porém o pensar filosófico é o menos político dos dois, porque está mais distante do reino das aparências e não busca fins práticos específicos” (FRY, 2010, p. 122). Por isso, é possível afirmar também que o projeto de Arendt em O Pensar destina-se a propor

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não só as semelhanças mas, sobretudo, as diferenças entre o pensar filosófico e o pensar político.

De acordo com a percepção arendtiana, o pensar político não se afasta da esfera fenomênica por muito tempo, apenas a duração e o afastamento necessários para a construção autônoma e responsável do juízo político. Enquanto os atores políticos visam distinguir-se na esfera pública, através de atos e palavras, a fim de serem lembrados pela posteridade; os filósofos afastam-se das questões de interesse prático, pois o retraimento necessário ao exercício da faculdade de pensar obriga-os a retirar-sem da companhia dos outros e do mundo das aparências. Esse afastamento do mundo fenomênico resulta numa espécie de desamparo, pois o filósofo acaba se perdendo no mundo abstrato enquanto pensa, tornando-se refém das “teias” de seu próprio sistema de pensamento. Uma das consequências drásticas desta perdição é que o pensamento pode acabar parecendo mais real do que efetivamente é, “ao passo que o que simplesmente é parece ser tão transitório que é como se não existisse” (ARENDT, 1978, p. 221).

O pensar filosófico difere, portanto, do pensar político porque a exigência da retirada da consciência do mundo prático torna-se uma condição para que o pensamento aconteça. Trata-se de um salto para a interioridade que é marcada pelo que Sócrates denominou de “dois-em-um” da consciência (ARENDT, 1978, p. 206), um diálogo silencioso da alma consigo mesma (kath’ hauto). Neste diálogo consigo mesma a mente conserva uma pluralidade interior que pode ser entendida como uma antecipação da pluralidade constitutiva da esfera pública. Segundo Eugênia Wagner (2006, p. 179), “trata-se da alteridade que faz com que aquele que tem o hábito de pensar se perceba como pessoa única na medida em que o diálogo consigo mesmo é já a forma de manifestação da pluralidade humana, tal como Kant ressaltou”. Por outro lado, isso nos revela que a coerência entre pensar e ser é uma exigência moral anterior e muito mais profunda à fenomenologia do aparecer dos indivíduos no mundo público. Arendt entendeu que, da perspectiva da faculdade de pensar, o conceito de pluralidade guardava os laços mais absconditus entre moral e política.

Arendt reativou de certa maneira o potencial do socratismo através do enfoque em suas características mais políticas, ou pelo menos naquelas que podem possibilitar a construção de uma nova forma de pensar político, engajada com as contingências do mundo público. Com esse intuito, ela recupera a figura de Sócrates que está presente nos primeiros diálogos de Platão, ou seja, nos diálogos essencialmente aporéticos. Além do mais, é pertinente pontuarmos que, diante das controvérsias sobre o Sócrates histórico, Hannah

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Arendt posicionou-se declaradamente a favor da distinção entre os ensinamentos de Platão e de Sócrates.

a saber, a minha crença que existe uma nítida linha de demarcação entre o que é autenticamente socrático e a filosofia ensinada por Platão. O obstáculo aqui é o facto que Platão usou Sócrates como filósofo, não apenas nos primeiros diálogos claramente “socráticos”, mas também mais tarde, quando frequentemente fez dele porta-voz de teorias e doutrinas que eram inteiramente não socráticas.(ARENDT, 1978, p. 187)

Para Hannah Arendt, Sócrates é o paradigma por excelência do filósofo político, ou do político filósofo, que melhor representa e exerce o pensar político. Ele está sempre às voltas com os problemas candentes que surgem na arena política (ágora). O uso dos instrumentos – ironia (éroneia) e maiêutica (maieutiché) – de seu método dialógico é sempre dirigido para questões presentes na vida dos homens. Sócrates entendia que “pensar significa que de cada vez que estamos confrontados com alguma dificuldade da vida temos de decidir a partir do zero” (ARENDT, 1978, p. 195). Não há verdades definitivas e imutáveis que sejam imunes ao crivo da crítica. Na medida em que coloca à prova o próprio saber, o exercício da faculdade de pensar é pura subversão, por isso “não existem pensamentos perigosos; o próprio pensar é perigoso” (ibidem). Pensar é como a teia de Penélope que é desfeita e refeita todos os dias, no qual buscar significados (Bedeutung) é um reexaminar interminável – semelhante ao trabalho de Sísifo – pois a cada significado que é encontrado segue-se a dissolução e um novo reexame se inicia (WAGNER, 2006, p. 169). Por isso, talvez a melhor metáfora que esclareça a atividade de pensar seja o “vento do pensamento”, uma espécie de furação que a tudo estabelece e pode solapar (ARENDT, 1978, p. 196).

Ao contrário da interpretação tradicional, Sócrates seria então uma figura híbrida que ora atuaria como filósofo e ora como político. Ainda que ele domine as formas do pensar universal e abstrato, também é versado no pensar político, nunca apartado do mundo, mas atento às contingências que são peculiares à esfera pública. De toda sorte, a remoção dos interesses práticos da esfera do pensar torna-se uma condição da filosofia, porquanto para pensar é necessário abstrair os fenômenos imediatos da experiência dos sentidos, com a finalidade de alcançar a generalização do particular.

As essências não podem ser localizadas. O pensamento humano que se apodera delas abandona o mundo do particular e sai em busca de algo com sentido em geral, ainda que não necessariamente universalmente válido. O pensar “generaliza” sempre, extrai de muitos

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particulares – os quais, graças ao processo do tornar não sensível, pode depois compactar para uma rápida manipulação – qualquer sentido que lhes seja inerente. A generalização é inerente a todos os pensamentos, mesmo se esses pensamentos, mesmo se esses pensamentos estão a insistir na primazia universal do particular. (ARENDT, 1978, p. 221)