• Nenhum resultado encontrado

“A filosofia (a cognição kata logon) não se ocupa de particulares, de coisas dadas aos sentidos, mas sim de universais (kath’ holou), coisas que não podem ser localizadas” (ARENDT, 1978, p. 222). O pensar filosófico se inscreve numa temporalidade chamada por Arendt de nunc stans (ARENDT, 1978, p. 232), isto é, um agora permanente, um eterno presente, no qual as formas (eidos; morphé) do pensamento têm sua morada. Não se trata, porém, de uma região na qual residiriam as substâncias imutáveis, à parte do mundo sensível e existindo de modo perfeito (téleios) e independente, como o hiperurânio da teoria dos dois mundos de Platão. Negando a teoria eidética, Arendt se aproxima da ontologia aristotélica, na qual as categorias do pensamento são induzidas da observação empírica dos fenômenos particulares. Concordando com Aristóteles, ela reconheceu que é somente a partir da existência do ser que se poderia atingir a essência das coisas, através de um de um processo indutivo que caminharia do individual específico para o universal e genérico. Os conceitos e idéias não existiriam independentes do mundo. É por isso que, quanto à teoria do conhecimento, Arendt se mostrava decididamente nominalista.

Desse modo, a temporalidade em que ocorre o pensamento não é a eternidade. Lançando mão de uma parábola de Kafka, Arendt (1978, p. 224) propõe que o pensar ocorre no vácuo entre o passado e o futuro, num eterno presente, que permite ao ego pensante refletir infinitamente sobre determinados tópicos. A natureza abstrata do pensar implica, portanto, num tipo de “eterna atemporalidade”. “A dimensão temporal do nunc stans experimentada na actividade do pensar recolhe e reúne [no agora (nunc) da existência] os tempos verbais ausentes, o ainda-não e o já-não, juntando-os na sua própria presença” (ARENDT, 1978, p. 233, meus acréscimos). Conforme declarou Immanuel Kant, a temporalidade do pensar é restrita à “terra do puro intelecto” (Land des reinen Verstandes), “uma ilha fechada pela própria natureza dentro de limites inalteráveis, e rodeada por um vasto e tempestuoso oceano, o mar da vida quotidiana” (ibidem).

Se por um lado Arendt percebeu que não há dicotomia entre pensamento e existência, por outro, ela considerou que o conhecimento só pode dar-se no e pelo existir, como espanto

90

(thaumadzein) desse fato inexplicável. Mais uma vez contestando a filosofia da história de Hegel – e caminhando nas trilhas abertas por Kierkegaard – Hannah Arendt também “vê que o conhecimento inicia, não com um conceito dialético do ser puro que necessariamente passaria para sua antítese, senão com a existência como o fator primordial. Como disse: o pensar é a resposta humana à irrupção da existência em nossa subjetividade” (COLLINS, 1958, p. 142). Nessa perspectiva, o lema hegeliano de que “a história universal é o julgamento do mundo” (Die Weltgeschichte ist das Weltgericht) perde sua validade e relevância, pois a existência deixa de ser vista como o lugar de realização da Razão Absoluta, tornando-se apenas o reino da liberdade e da contingência, isto é, da possibilidade.

A existência , ao contrário, é o reino do devir, do contingente e, portanto, da história. Em suma, a existência é o reino da liberdade: o homem é o que ele escolhe ser, é o que se torna. Isso quer dizer que o modo de ser da existência não é a realidade ou a necessidade, e sim a

possibilidade. (REALE, G.; ANTISERI, 1990, p. 245)

Para Arendt, longe das falácias metafísicas, as essências (tí estin), enquanto produtos da faculdade de pensar, não são espaciais, não há determinação possível do seu topos. Transcrito de modo aporético, apesar de estarem por toda parte, as essências não se encontram em nenhuma parte, pois resultam do nomadismo da atividade de pensar (ARENDT, 1978, p. 222). O pensar é pura atividade do eu pensante.

Por outras palavras, o “essencial” é o que é aplicável por toda parte, e este “por toda parte” que confere ao pensamento o seu peso específico é, espacialmente falando, um “nenhures”. O eu pensante, movendo-se no meio de universais, no meio de essências invisíveis, não está, estritamente falando, em lugar algum; é nómada num sentido enfático – coisa que pode explicar a precoce ascensão de um espírito cosmopolita entre os filósofos. (ARENDT, 1978, p. 221)

Segundo Arendt, o nenhures da faculdade de pensar se deve ao fato de que “nós não estamos apenas no espaço, mas também no tempo, rememorando, colhendo e recolhendo do ‘ventre da memória’ o que já não está presente (Agostinho), antecipando e planeando no modo do querer o que ainda não é” (ARENDT, 1978, p. 223). Isso mostra que o pensar não pode ser exclusivamente orientado pelo espaço, sem que se incorra em intransponíveis aporias. O pensamento só pode estar relacionado com o tempo, na medida em que este é entendido como o sentido interno à consciência, através do qual se estabelecem as condições de representação dos fenômenos que nos estão ausentes. Em conformidade com Immanuel

91

Kant, Arendt declara que “o tempo nada é a não ser a forma do sentido interno, ou seja, da intuição que temos de nós mesmos e do nosso estado interno” (ibidem).

Para Kant, isso significava que o tempo nada tinha a ver com as aparências enquanto tais – “nem com a configuração nem com a posição” como são dadas aos nossos sentidos – mas somente com as aparências enquanto afectam o nosso “estado interno”, no qual o tempo determina “a relação de representação”. E estas representações – por meio das quais tornamos presentes o que está fenomenicamente ausente – são, é claro, coisas-do-pensamento, isto é, experiências ou noções que sofreram a operação de desmaterialização por meio da qual o espírito prepara os seus próprios objectos e também os priva, pela “generalização”, das suas propriedades espaciais. (ARENDT, 1978, p. 223 e 224)

Assim, a operação de desmaterialização das intuições fenomênicas que gera os “objetos” do espírito – as “coisas-do-pensamento” (ARENDT, 1978, p. 60) – é fruto das leis e procedimentos próprios ao intelecto (Verstand). Tanto da perspectiva do ato de conhecer quanto do pensar político, as representações do pensamento estão em conexão permanente com as intuições provenientes da sensibilidade. Embora a faculdade de conhecer seja diferente da política, assemelham-se com relação ao aspecto de que, tanto o conhecer quanto o pensar político, voltam-se sempre à percepção comum e à realidade do mundo, uma vez que o que chamamos de existência não pode ser vivida ou pensada fora dos limites da experiência sensível. Arendt considera que a realidade e a existência só podem ser concebidas em termos de tempo e espaço (ARENDT, 1978, p. 221).