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3 CRIMINALÍSTICA NO SISTEMA JURÍDICO-PROCESSUAL-PENAL BRASILEIRO

3.3 ATIVIDADE DE CRIMINALÍSTICA NA PERSECUÇÃO PENAL

3.3.2 Perícia Criminal na fase inquisitiva

Conforme visto anteriormente, a fase pré-processual da persecução penal tem início com a notícia da ocorrência de um fato supostamente criminoso.

A partir desse momento, conforme definido pelo próprio CPPB, de maneira inquisitiva, a autoridade policial33 promove a instauração de uma investigação criminal oficial, no curso da qual, com base no princípio da obrigatoriedade do exame do corpo de delito, terá início a atividade de Criminalística:

Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;

II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;

[...]

VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;

Neste sentido, cumpre lembrar que a chamada investigação criminal se constitui em etapa preliminar, definidora de justa causa para instauração de outra fase persecutiva mais complexa e abrangente, de natureza acusatória, já no âmbito do processo penal propriamente dito.

Por sua natureza instrumental, o inquérito pode constituir-se tanto em elemento legitimador como em elemento prejudicial de um possível futuro processo judicial, que se instaurará (quando, e se for o caso) com a finalidade de realizar a Justiça Criminal (seja com condenação ou com absolvição) no caso concreto.

Desta forma, a atividade de investigação criminal tem por escopo a constituição de um entendimento provisório acerca do fato supostamente delituoso, a fim de que seu posterior julgamento ocorra em face da reunião de mínimos elementos objetivos de convicção, justificadores da instauração do processo judicial de natureza criminal.

33 Em se tratando de fato que envolva autoridade com prerrogativa de função, o procedimento inquisitivo que

define a primeira fase da persecução criminal será promovido não por uma autoridade policial, mas sim por uma autoridade judicial, como foi o caso, por exemplo, da investigação criminal que resultou na Ação Penal 470. Nesse caso, a autoridade judicial que preside o feito (denominado, então, de inquérito judicial) pode até delegar funções investigativas à autoridade policial ou a Ministério Público, mas o procedimento é conduzido sob a responsabilidade formal do Poder Judiciário e não da Polícia Judiciária.

Com base nesse pretenso caráter provisório das conclusões produzidas no curso de um inquérito policial, tem-se admitido que, na fase preliminar da persecução penal, as garantias do contraditório e da ampla defesa sejam relativizadas, adotando-se como princípio o método inquisitivo de investigação.

Por outro lado, há de se reconhecer que, apesar da relativização do contraditório e da ampla defesa, o contexto metodológico da investigação criminal sofre um condicionamento normativo, derivado de outras garantias constitucionais capazes de impor limites objetivos (condicionantes negativas) à realização de determinadas práticas investigativas (PEREIRA, 2010).

São consideradas inadmissíveis, por exemplo, a prática da tortura, a violação do sigilo das comunicações, do sigilo bancário e do sigilo fiscal sem a devida autorização judicial, entre outras práticas consideradas ofensivas às garantias constitucionalmente instituídas.

Se, por um lado, em respeito à dignidade da pessoa humana, a ordem jurídica estabelece as condicionantes negativas da investigação criminal, por outro, em proveito também da efetividade e da legítima aplicação da lei penal, observadas as limitações estabelecidas, a atividade de Criminalística, tanto que oficial e obrigatória, deve garantir à investigação criminal a aplicação do método técnico-científico mais adequado à apuração do fato penalmente tido como relevante.

A ideal de efetividade dessa fase pré-processual deve, contudo, incluir o reconhecimento dos limites que são próprios de uma investigação criminal. Como a cognição ocorre em regime inquisitivo (o que, a rigor, serve a constituição de apenas um ponto de vista), as conclusões que dela derivam devem servir de fundamento à formação de opiniões e compreensões provisórias acerca da natureza delituosa dos fatos em apuração, os quais, por óbvio, precisarão ser ainda contraditoriamente testadas na segunda fase da persecução penal, caso uma ação penal correspondente venha a ser proposta e admitida.

Assim, mesmo com a entrada em vigor da Lei n.º 11.690/2008, que reformou o CPPB buscando promover o exercício do contraditório e a ampla na produção da prova criminal, em regra, mantém-se o entendimento de que essas garantias não são aplicáveis na primeira fase da persecução penal.

Ocorre, entretanto, que muitas vezes se faz necessária a produção imediata da prova pericial, entes do encerramento da fase de investigação, até mesmos para a comprovação da materialidade do delito e identificação da sua autoria. Por isso, em razão da natureza cautelar que informa tais provas, não será

possível – e nem há previsão legal – a participação da defesa na produção da prova. E, mais. A prova também não será produzida diante do juiz, porque ainda não provocada a jurisdição. Relembre-se que a atuação do juiz na fase pré-processual é permitida apenas na tutela das liberdades públicas e dos direitos e garantias individuais, bem como do controle cautelar da efetividade no processo. Nesses casos, fala-se me contraditório diferido. (OLIVEIRA, 2004, p. 338/339)

Decorre da própria natureza inquisitorial da investigação criminal a compreensão de que, nela, não há espaço para o exercício do contraditório e da ampla defesa, sob pena de, na generalidade dos casos, tornar inócua ou inviável a apuração dos fatos.

Em muitos casos, o procedimento apuratório é instaurado sem que sequer haja ainda um suspeito a quem se possa imputar a autoria do fato. Noutros, ainda que haja um suspeito, o procedimento precisa ser desenvolvido em sigilo, sob pena de ser inviabilizado por manobras evasivas que poderiam ser assumidas pelos suspeitos que soubessem da existência da investigação. Por fim, há os casos em que o sigilo das investigações se impõe como garantia da segurança dos investigadores e de terceiros que poderiam ser expostos a reações violentas por parte dos investigados.

Assim, seja por ausência de suspeitos, seja pela necessidade de preservação do sigilo da investigação, muitas vezes se faz necessária a realização de perícia criminal ainda na fase do inquérito, sem que seja possível ou viável a participação da defesa no procedimento de produção da informação técnico-científica. Ademais, nessa fase, o procedimento pericial também não se realiza perante a autoridade judicial, tendo em vista que não há ainda uma ação penal na qual se encontre devidamente estabelecida uma imputação criminal, sobre a qual se tornasse viável a realização de um procedimento contraditório.

Nesse sentido, alterado pela Lei n.º 11.690/2008, o CPPB admitiu o contraditório na produção da prova pericial, mas apenas o garantiu em sede processual. É o que fica evidente quando, no § 3º, do art. 159, percebe-se a ausência do investigado/indiciado do rol das pessoas autorizadas a formular quesitos e indicar de assistentes técnicos. O mesmo entendimento parece sugerido quando se declara, no § 4º, também do art. 159, que ―o assistente técnico atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais‖. E também no § 5º, do mesmo art.159, quando se estabelece que a oitiva de peritos e a indicação de assistentes técnicos é uma faculdade conferida às partes, no curso do processo judicial.

Naturalmente, quando se tratar de perícia que, realizada na fase pré-processual, venha a se tornar irrepetível pelo perecimento ou desaparecimento dos vestígios, ou mesmo pelo desfazimento da cena de crime, a despeito da ausência de contraditório em sua postulação e produção, o procedimento poderá ser aproveitado na segunda fase da persecução penal, vindo a contribuir para formação do convencimento da autoridade judicial, desde que submetida ao contraditório diferido, postergado, tardio, ou seja, aquele contraditório limitado, exercido somente por ocasião da valoração da prova, mas não na sua postulação nem na sua produção. É o caso, por exemplo, das perícias de local de crime e das perícias médicas em geral.

Vale destacar também a condição das chamadas provas cautelares, assim compreendidas aquelas normalmente produzidas no curso da investigação criminal, mas que, por envolver a relativização de alguma garantia constitucional (quebra de sigilo bancário, fiscal, das comunicações ou da inviolabilidade da residência, por exemplo), dependem de uma ordem judicial autorizativa.

Em tais situações, um vez produzida a prova pericial, o contraditório somente será realizado no curso da ação penal, quando então se permitirá, quando nada, o exame acerca da idoneidade tanto dos profissionais responsáveis pela perícia como também das conclusões por eles alcançadas. Nesse campo, o objeto da prova na maior parte das vezes, será a qualidade técnica do laudo e, particularmente, o cumprimento das normas legais a ele pertinentes, como, por exemplo, a exigência de motivação, de coerência, de atualidade e idoneidade dos métodos, etc (OLIVEIRA, 2004, p. 339).

Na postulação ou na produção desse tipo de prova, não faz sentido contar com de participação contraditória da defesa, tendo em vista que, sabendo antecipadamente da medida, naturalmente, o investigado poderia tornar inócuo seu cumprimento, empreendendo manobras evasivas (destruindo ou ocultando documentos, instrumentos ou produtos do crime, p. ex.).

Ainda assim, necessário se faz levar em consideração a natureza das fontes (vestígios) sobre as quais se constituem a prova pericial criminal. Há de se ressaltar que, mesmo obtido em procedimentos essencialmente cautelares, admite-se duas possibilidades em relação ao material que serviu de base para realização dos exames periciais:

a) O material possui clarividência necessária para constituir-se, por si só, em elemento de prova, tornando dispensável a realização de perícia;

b) O material traduz-se em corpo de delito ou mostra-se complexo a ponto de sua compreensão depender do exame pericial.

A primeira possibilidade define a constituição de uma autêntica prova cautelar, que, como tal, à luz do art. 155 do CPPB, reclama contraditório diferido, a ser exercitado no curso do processo penal.

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Por sua vez, no segundo caso, a perícia criminal eventualmente realizada ainda na investigação criminal poderá ser aproveitada no processo penal a) por meio de contraditório diferido, se o exame for do tipo irrepetível, ou b) por meio de reprodução da perícia, se o exame for repetível.

Evidentemente, a hipótese que estamos agora a nos referir é aquela em que

não há mais a possibilidade de realização de nova perícia, ou seja, quando

não existir mais o objeto periciado, por alteração do estado de coisas ou pelo desaparecimento da própria coisa. Não tendo esse perecido ou se modificado, é perfeitamente possível, e mesmo indispensável, a repetição da prova (OLIVEIRA, 2004, p. 339).

Assim, não importando se derivada de uma medida cautelar ou se simplesmente produzida por necessidade de uma investigação criminal, sendo realizada na fase inquisitiva e havendo condições técnicas para sua repetição, em respeito às garantias constitucionais, impõe-se que, na instrução processual, a perícia criminal seja refeita em regime contraditório, assegurando-se às partes a mais ampla defesa, o que inclui as faculdades postular a repetição da prova, formular quesitos, indicar assistente técnico e inquirir o perito em audiência, sem o que restará prejudicado seu aproveitamento em sentença.

No chamado Caso Mensalão, as perícias criminais de natureza contábil-financeira realizadas na fase inquisitiva tiveram como objeto documentos oriundos da CPMI dos Correios, documentos obtidos por meio de medidas cautelares determinadas pelo próprio STF e documentos outros, provenientes das próprias diligências periciais.

Tratando-se, portanto, de vestígios não perecíveis, essas perícias realizadas na primeira fase da persecução penal do Caso Mensalão poderiam ser repetidas a qualquer tempo, como, de fato, em parte, por provocação da defesa, acabaram sendo repetidas no curso da Ação Penal 470.