• Nenhum resultado encontrado

TRABALHO MEIO DE

2. A LIBRAS E O NOVO OLHAR SOBRE A EDUCAÇÃO DE SURDOS

2.1. A história e os diferentes métodos de ensino para surdos

2.1.2. O período da comunicação total

Com o advento da publicação de pesquisas a respeito da língua de sinais americana (ASL) que a comprovavam em seu caráter linguístico verbal – Sign Language Structure (STOKOE, 1960) e A Dictionary of American Sign Language on Linguistic Principles (id., 1965) –, novas discussões a respeito de um método mais adequado para a escolarização de alunos surdos vieram à tona.

Apesar da crítica e contraindicação dos educadores oralistas no uso de gestos, com o tempo foi possível observar que algumas escolas ou instituições para surdos tinham desenvolvido, às margens do sistema proposto, um modo próprio de comunicação através dos sinais. Como dito anteriormente, a primeira caracterização de uma linguagem de sinais mais estruturada usada entre pessoas surdas se encontra nos escritos do abade de l'Epée. Muito

tempo se passou até que o interesse pelo estudo das línguas de sinais de um ponto de vista linguístico fosse despertado, isto ocorreu, enfim, com os estudos de Willian Stokoe.

Ao estudar a ASL, Stokoe encontra uma estrutura que, de muitos modos, se assemelha àquela das línguas orais. Argumenta que, assim como da combinação de um número restrito de sons (fonemas) cria-se um número vastíssimo de unidades dotadas de significado (palavras), com a combinação de um número restrito de unidades mínimas na dimensão gestual (queremas) pode-se produzir um grande número de unidades com significados (sinais). Propôs também em sua análise que um sinal pode ser decomposto em três parâmetros básicos: o lugar no espaço onde as mãos se movem; a configuração da(s) mão(s) ao realizar o sinal; e, o movimento da(s) mão(s) ao realizar o sinal, sendo estes os "traços distintivos" dos sinais (QUADROS; KARNOPP, 2004). Com os avanços dos estudos linguísticos das línguas de sinais, descobriu-se mais dois parâmetros elementares, são eles: orientação da(s) palma(s) da(s) mão(s), e expressões não-manuais8.

Esses estudos pioneiros e outros que surgiram após, revelaram que as línguas de sinais eram línguas de fato, preenchendo em grande parte os requisitos que a linguística depositava para as línguas orais. Mais tarde, os estudos de Klima e Bellugi (1979) foram decisivos para comprovar as estruturas linguísticas das línguas de sinais, e para divulgar a concepção de bilinguismo na educação de surdos. O descontentamento com o oralismo unido às novas pesquisas sobre as línguas de sinais deram origem a outras propostas pedagógico- educacionais em relação à educação da pessoa surda.

O método que ganhou impulso no Brasil nos anos de 1970 foi o chamado de comunicação total, "A Comunicação Total é a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplificação e alfabeto digital para fornecer inputs lingüísticos para estudantes surdos, ao passo que eles podem expressar-se nas modalidades preferidas" (LACERDA, 1998, p. 6). O objetivo é fornecer à criança a possibilidade de desenvolver uma comunicação ampla e real com seus familiares, professores e demais membros da sociedade, para que possa construir seu mundo interno. De acordo com Freeman, Carbin e Boese (1999, p. 171):

A Comunicação Total implica em que a criança com surdez congênita seja introduzida precocemente em um sistema de símbolos expressivos e receptivos, os quais ela aprenderá a manipular livremente e por meio dos quais poderá abstrair significados ao interagir irrestritamente com outras pessoas. A Comunicação Total inclui todo o espectro dos modos lingüísticos: gestos criados pelas crianças, língua de sinais, fala, leitura oro-facial, alfabeto manual, leitura e escrita. A Comunicação Total incorpora o desenvolvimento de quaisquer restos de audição para a melhoria

8

Para uma compreensão mais aprofundada dos parâmetros linguísticos das línguas de sinais, sugerimos os estudos apresentados em Língua de sinais brasileira: estudos lingüísticos (QUADROS; KARNOPP, 2004).

das habilidades de fala ou de leitura oro-facial, através de uso constante, por um longo período de tempo, de aparelhos auditivos individuais e/ou sistemas de alta fidelidade para amplificação em grupo.

A oralização não é o objetivo em si da comunicação total, mas uma das áreas trabalhadas para possibilitar a integração social do indivíduo surdo. A comunicação total pode utilizar tanto sinais retirados da língua de sinais usada pela comunidade surda quanto sinais gramaticais modificados e marcadores que indiquem elementos presentes na língua falada. Dessa forma, tudo o que é falado pode ser acompanhado por elementos visuais que o representam, o que facilitaria a aquisição da língua oral e, posteriormente, da leitura e da escrita. Entretanto, a forma de desenvolver a comunicação total mostrou-se muito diferente nas diversas experiências relatadas. Muitas foram as maneiras de realizar essa prática envolvendo sinais, fala e outros recursos. Práticas reunidas sob o nome de comunicação total, em suas várias acepções, foram amplamente desenvolvidas nos Estados Unidos e em outros países nas décadas de 1970 e 1980, e estudos foram realizados para verificar sua eficácia.

Segundo Ciccone (1990), os profissionais que defendem a comunicação total concebem o surdo de forma diferente dos oralistas, ele não é visto como alguém que tem uma patologia que precisa ser eliminada. A surdez é percebida como uma condição que repercute nas relações sociais e no desenvolvimento afetivo e cognitivo dessa pessoa. Em relação ao oralismo, alguns aspectos do trabalho educativo foram melhorados e os surdos, no final do processo escolar, conseguiam compreender e se comunicar um pouco melhor. Entretanto, conforme análises avaliativas, eles ainda apresentavam sérias dificuldades em expressar sentimentos e ideias complexas e em se comunicar em contextos extra-escolares. Em relação à escrita, os problemas apresentados no oralismo continuaram, sendo que poucos surdos alcançaram autonomia nesse modo de produção de linguagem. Os educadores observaram poucos casos bem-sucedidos, a grande maioria não conseguiu atingir níveis acadêmicos satisfatórios esperados para sua faixa etária (ibid.).

Na comunicação total, com frequência os sinais ocuparam um lugar meramente acessório, de auxílio para a conquista da fala, não havendo um espaço para seu pleno desenvolvimento. Assim, muitas vezes, os surdos educados segundo essa orientação comunicavam-se precariamente apesar do acesso aos sinais. Esse acesso mostrou-se ilusório no âmbito de práticas educacionais que uniam o uso simultâneo de fala e sinais de maneira indiscriminada, pois os alunos não aprendiam os sinais como um instrumento verbal estruturado, e nem recebiam condições linguísitcas suficientes para elaborar a língua falada.

Ainda assim, a comunicação total favoreceu o aumento do contato com os sinais, que tinha sido praticamente abolido pelo oralismo no espaço escolar. Esse contato propiciou que os surdos se despertassem para o imperativo que a língua de sinais apresenta em sua constituição social. Essas línguas passaram a ser mais frequentemente usadas entre os alunos, essa nova dinâmica dentro da escola proporcionou o progresso social da língua.

O período da comunicação total nas escolas de surdos foi transitório. Paralelamente à difusão e aplicação da proposta de comunicação total, mais estudos sobre as línguas de sinais foram sendo divulgados e, a partir deles, apontamentos para uma educação bilíngue começaram a surgir. A proposta bilíngue, como veremos em seguida, busca respeitar ambas as línguas em suas especificidades, sem que uma interfira na outra

Nesse momento, cabe abrir um espaço para elucidar brevemente o que se entende por comunidade surda. De acordo com os estudos da Sociologia, o termo comunidade pode indicar a organização de pessoas em torno dos mesmos preceitos, que vivem em reciprocidade a favor de estabelecer fins comuns. Fichter (1973) alerta que o termo comunidade pode ter múltiplos significados. A ideia de comunidade que apresentamos no texto está amparada na existência de vínculos simbólicos que reúnem indivíduos com interesses coletivos. O termo, cultura surda, difundido nos Estudos Surdos (QUADROS; STUMPF et al., 2009, QUADROS et al., 2008, QUADROS; PERLIN et al., 2007 e QUADROS et al., 2006), e muito usado entre profissionais, está ligado às causas das pessoas surdas.