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Período mais recente da descentralização, a Reforma do Estado e a expansão do

(PSF)

A década de 90 é marcada por uma conjuntura de desmonte do Estado brasileiro e a conseqüente desresponsabilização do governo federal de suas atribuições no terreno social. É a chamada Reforma do Estado, que atinge as políticas sociais sensíveis às condições econômicas de restrição financeira. Para que possamos compreender como as reformas do setor da saúde se articularam com as reformas mais gerais experimentadas pelo Estado brasileiro e em qual contexto fora criado o Programa Saúde da Família, tornam-se indispensáveis esclarecimentos acerca desse contexto histórico.

44 Soares (2001) argumenta que as causas da Reforma estão na “Crise do Estado”, quanto o aspecto fiscal (financiamento e endividamento), a forma burocrática da administração e o esgotamento da “estratégia estatizante” de intervenção do Estado. Tornam-se inadiáveis o ajustamento fiscal, a reforma da previdência, as reformas econômicas, a reforma do Estado e a “modernização” da gestão. (SOARES, 2001, p.48)

Segundo Rizzotto e Conterno (2001), o governo buscava a redefinição das funções do Estado, sob o argumento de que este tinha se ampliado além da sua capacidade operativa e financeira e se desviado de suas funções básicas, o que teria contribuído para o agravamento das sucessivas crises econômicas, ocorridas nas duas últimas décadas. Sendo assim, conforme os propósitos do governo:

[...] haveria a necessidade de reformá-lo, reduzindo o seu tamanho e tornando-o ágil para desempenhar as funções que são de sua competência, ou seja: dar assistência mínima àqueles que se encontram excluídos do mercado, manter o direito de propriedade, responsabilizar-se pela segurança e exercer ação reguladora. (RIZZOTTO; CONTERNO, 2001, p.73).

De acordo com o “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado” (1995), utilizado por Rizzoto e Conterno (2001), era necessário a reconstrução e redefinição da administração pública em bases modernas e racionais, destacando e valorizando a descentralização e o controle dos resultados das ações e serviços do Estado.

Sobre esse documento, Soares (2001) argumenta conter a idéia de que a transferência para o setor privado daquelas atividades que poderiam ser controladas pelo mercado, deveria ser tida como alternativa para a correção das distorções do Estado.

Para o setor público da saúde, Rizzoto e Conterno (2001) mostram que, naquele momento, as diretrizes políticas do MS incorporaram os pressupostos do Plano Diretor da Reforma do

Aparelho do Estado (1995), onde estava expressa a lógica da Reforma do Estado, assim como

absorveram as sugestões e orientações que o Banco Mundial havia apresentado em documentos específicos para a reforma da saúde.

Segundo as autoras, algumas das sugestões do Banco Mundial eram propostas que, ao serem implementadas, mudariam significativamente o arcabouço jurídico e institucional do SUS. Eram elas: as propostas de flexibilização do SUS; redefinição do papel dos estados federados na gestão do sistema de saúde; controle da oferta de serviços públicos em função dos custos; adoção

45 de formas de co-pagamento; ênfase no controle de resultados; favorecimento à iniciativa privada; incentivo à concorrência na prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares, envolvendo indistintamente os setores público e privado e o papel regulador do Estado.

Para Rizzoto e Conterno (2001), muitas das propostas citadas, mesmo não em suas íntegras, já foram, em alguma medida, contempladas nas reformas promovidas no âmbito da saúde, pelos governos brasileiros, na década de 90.

As autoras elucidam que os representantes do MS, no governo Collor de Mello, partiam do pressuposto de que a falta de eficácia das ações de saúde teria origem na inadequada organização e gerência de serviços, na falta de capacidade de seus dirigentes, no desconhecimento e na falta de práticas coerentes. Ainda segundo as autoras, o que de fato interessava ao governo daquela época, detentor de recursos escassos, era um modelo gerencial para otimizá-los, munindo-se da gerência participativa por objetivos, para nortear a gestão, definindo metas e a quantificação de resultados.

Além disso, nota-se que o governo partia do princípio de que a descentralização permitiria maior controle da qualidade e dos custos dos serviços prestados, favorecendo também o controle social por meio do acesso direto dos usuários ao sistema de fiscalização e de Conselhos Municipais de Saúde. Pretendiam, com a reforma, implantar um processo decisivo e rápido de descentralização. No entanto, para Soares (2001), a descentralização da saúde assumida nesse período, apresenta face neoliberal, contrária aos princípios preconizados pela Constituição de 1988, descentralizando encargos sem a equivalente descentralização de recursos.

Esse contexto de reformas influenciou a política de saúde na medida em que foi atinginda pela restrição financeira e pela escassez de recursos. Baseados nas propostas do MS, Rizzoto e Conterno (2001) explicitam que as reformas no setor da saúde pretendiam proporcionar o uso racional dos recursos disponíveis, com a racionalização do acesso ao atendimento hospitalar, evitando internações e exames desnecessários. Entretanto, as autoras explicam que, na verdade, a racionalização do acesso tem se efetivado por meio de algumas estratégias, como a redução de leitos disponíveis ao SUS na rede conveniada, a privatização de leitos na rede pública, o controle das Autorizações das Internações Hospitalares (AIHs) e até mesmo a cobrança irregular de complementação ou taxas extras.

Para o MS, a reforma da saúde, como esclarecem as autoras, tinha como características: a clara separação entre a demanda de serviços hospitalares e a oferta desses serviços de saúde; o

46 aprofundamento da descentralização e da municipalização e o aproveitamento das economias realizadas na assistência médica para sua utilização nas ações de medicina sanitária.

O MS também pretendia separar os níveis de assistência, sendo que os Distritos responsáveis pela atenção primária e secundária ficariam sob a responsabilidade do município, e os hospitais, que oferecem assistência terciária, de alto custo, ficariam sob a responsabilidade do nível estadual ou federal.

Os documentos do MS, relativos ao governo FHC, analisados por Rizzoto e Conterno (2001), já expressavam a política de redução do papel do Estado na oferta direta de serviços de saúde e a intenção de priorizar as suas ações na avaliação dos resultados.

As autoras demonstram que no governo FHC a participação do setor privado não seria apenas complementar. O setor público ficaria com a responsabilidade pela prestação de serviços de atenção primária à saúde e, a iniciativa privada, filantrópica, entidades sem fins lucrativos e hospitais públicos disputariam a prestação de serviços na atenção terciária que, em parte, seriam compradas pelo Estado, mas aos poucos, a atuação deste, tenderia a ficar restrita à formulação de políticas, à regulamentação e à avaliação dos sistemas, contribuindo com a oferta dos serviços que não são do interesse do mercado.

Em 1997, de acordo com Rizzoto e Conterno (2001), o Ministro da Saúde Carlos Albuquerque afirmou que a meta do MS seriam as ações básicas de saúde. Para o MS, o Estado poderia garantir a saúde por meio de regulamentação e fiscalização dos serviços prestados pela iniciativa privada. Para as autoras, a NOB-SUS 01/96, que veremos a seguir, contemplou esta lógica da Reforma do Estado, ao propor que estados e municípios superassem o papel exclusivo de prestadores de serviços e assumissem seus papéis de gestores.

Outro aspecto ressaltado pelas autoras é a centralidade que a atenção básica9 tem adquirido nas políticas, a partir de 1997, quando o governo definiu que as ações e metas

9 A Atenção Básica foi definida, em documento do MS, como um conjunto de ações, de caráter individual

ou coletivo, situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da saúde, a prevenção dos agravos, o tratamento e a reabilitação.” (BRASIL, 1999, p.10).

Souza frisa, ainda, “que essas ações não se limitam àqueles procedimentos incluídos no Grupo de Assistência Básica da tabela do SIA/SUS, quando da implantação do Piso da Atenção Básica. A ampliação desse conceito se torna necessária para avançar na direção de um sistema de saúde centrado na qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente.” (SOUZA, R.R., 2003, p.451,453).

47 prioritárias do MS deveriam seguir a lógica seletiva e focalizadora da atenção básica, articulada com o desenvolvimento da comunidade.

Rizzoto e Conterno (2001) consideram que, usando em seu discurso a crítica ao modelo médico hospitalocêntrico e defendendo a necessidade de “inversão do modelo”, o MS tem assumido, como política estratégica para a mudança do padrão assistencial, a implantação de programas como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) 10 e o Programa Saúde da Família (PSF), que explicitam a centralidade na atenção básica à saúde.

Na área da assistência, o pressuposto parece ser, de um lado, a implementação de programas de baixo custo que atinjam o maior número de pessoas, “focalizando a assistência aos mais pobres”, e de outro, o fortalecimento da expansão do setor privado para prestar assistência ao restante da população. (RIZZOTO; CONTERNO, 2001, p. 94).

Para Soares (2001), isso explica a ênfase local como o único espaço capaz de dar respostas supostamente mais eficientes e conforme às necessidades da população, reduzida hoje à comunidade. As pessoas e as famílias passam a se responsabilizar por suas saúdes, significando o

abandono, por parte do Estado, do papel ativo que possui nas condições de vida da população. Silva (2001) argumenta que o período mais recente da descentralização da saúde no Brasil

se caracteriza pela expansão de dois programas mencionados acima, o PACS e o PSF, e que apresentam como objetivo introduzir mudanças no modelo assistencial hegemônico da saúde, apresentando novas propostas. Tais programas, como veremos na próxima seção, enfatizam a

10 De acordo com o Ministério da Saúde, o PACS, existente desde o início dos anos 90, foi instituído e

regulamentado em 1997, quando se iniciou o processo de consolidação da descentralização de recursos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). “O PACS, importante estratégia no aprimoramento e consolidação do SUS, a partir da reorientação da assistência ambulatorial e domiciliar, é hoje compreendido como estratégia transitória para o Programa Saúde da Família” (BRASIL, 2001a, p. 5). O PACS foi criado baseado em experiências anteriores bem sucedidas, que se voltaram à prevenção da saúde, através de orientações sobre os principais cuidados para obtê-la, e constituiu uma estratégia que agregou idéias de proporcionar à população o acesso e a universalização do atendimento à saúde, descentralizando as ações. Sua meta, desde então, é de contribuir na reorganização dos serviços municipais de saúde e na integração das ações dos diversos profissionais, visando à ligação efetiva entre a comunidade e as unidades de saúde. O desenvolvimento das principais ações desse programa se dá por meio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS).

A diferença do PACS em relação ao PSF é, principalmente, o fato dos ACS do PACS estarem ligados a uma tradicional unidade básica de saúde (UBS), enquanto que aqueles que trabalham no PSF, estão ligados a uma Unidade de Saúde da Família. No PSF, forma-se uma equipe de saúde da família, já no PACS, os ACS trabalham juntamente com os profissionais da UBS. Podem-se atribuir críticas ao PACS no que se refere ao fato de permanecer atrelado ao modelo tradicional de saúde e por não apresentar uma equipe onde os profissionais têm os mesmos objetivos e a mesma compreensão do processo saúde-doença.

48 atenção primária de saúde e salientam a importância da prevenção nas ações públicas de saúde, juntamente com ações curativas, focando a família e não o indivíduo.

O PACS e o PSF foram propostos na tentativa de uma redução no número de problemas encontrados no SUS, tais como: as filas imensas e a escassez de recursos. Ambos propõem a prevenção, o tratamento e acompanhamento dos casos de doenças crônicas que atingem a população brasileira, entre elas o diabetes, a hipertensão arterial, a tuberculose e a hanseníase. Também procuram melhorar os indicadores de saúde, de morbidade, de mortalidade infantil e os indicadores sociais, através do desenvolvimento de ações educativas e preventivas. Primeiramente, realizam um diagnóstico da área adscrita e de sua população, observando o saneamento, a coleta de lixo e a quais riscos a população, do referido local, está exposta, baseados numa concepção ampliada de saúde em que se considera a abordagem social e não apenas a biológica.

A criação do conjunto de instrumentos indutores do modelo assistencial, entre eles o incentivo à adesão municipal no PACS e no PSF, realizada pela Norma Operacional Básica de 1996, a NOB 01/96, tem propiciado a expansão dos programas.

Como explicita Silva (2001), em 1998, o PACS contava com 64.776 agentes. Já em 2000, este número cresceu para 125.993 agentes, atuando em 4.330 municípios brasileiros e em todas as regiões do país. O PSF também apresentou crescimento rápido, segundo o autor, em maio de 1998, o número de equipes era de 1.992, em janeiro de 2000, passou para 5.139 equipes e, em julho do mesmo ano, tal número era de 7.291 equipes, atuando em 2.438 municípios.

De acordo com estudo realizado pela Universidade Federal da Bahia (2002), observou-se uma grande expansão numérica da estratégia de saúde da família, especialmente a partir de 1998, com ampliação quantitativa e geográfica da cobertura e com o progressivo aumento do número de implantações em municípios, estados e regiões. Além de se constatar a consolidação de tais programas pelo fortalecimento dos mecanismos de sustentabilidade financeira.

Com base em informações do Ministério da Saúde (MS), dados mais recentes também podem ser observados. Em 2003, o total de equipes de Saúde da Família implantadas era de 19 mil, com uma cobertura populacional correspondente a 35,7% da população brasileira. No ano de 2004, o número de equipes era de 21,3 mil, e a cobertura cobria 39% da população brasileira. Já

49 em 2005, o número de equipes era de 24,6 e a cobertura correspondia a 44,4% da população brasileira – cerca de 78,6 milhões de pessoas).11

Como assegura Silva (2001), os dados exemplificam a influência do governo central no rumo do processo de descentralização, no final dos anos 90 e início do ano de 2000.

A notável expansão do PACS e do PSF está correlacionada com os incentivos financeiros do MS, que agregou valores ao Piso Assistencial Básico (PAB)12 para contribuir com o financiamento dos programas. Com a Portaria nº. 1.329, de 12 de novembro de 1999, regulamenta-se que os municípios que alcançarem cobertura maior que 50% da população com o PSF, receberão mais por equipe que aqueles que tiverem uma cobertura menor que 50% da população.

A estratégia desses programas objetiva a transformação da prática sanitária brasileira e a garantia de uma a melhora na qualidade de vida dos cidadãos brasileiros. No entanto, ainda estão em andamento diversos estudos que analisam o potencial transformador dos programas PACS e PSF, existindo muitas divergências a respeito de suas reais efetividades. O PSF é ainda uma estratégia recente que precisa ser analisada no sentido de avaliar seus resultados.