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Percepção da Identidade do OUTRO: Como os vejo?

A forma como percebemos as pessoas que apresentam transtorno mental e as que não apresentam influencia diretamente na construção da Identidade Pessoal do outro e da nossa Identidade do Eu, bem como no modo de manifestá-la. No entanto, Lê nos revela que tem situações que não consegue perceber características que diferenciam as pessoas que possuem o transtorno das outras que não o possuem:

Outro dia eu estava no ambulatório, esperando minha vez, e vi um homem tão bonito, tão bem arrumado, sentado na mesma fila que eu estava. Ai chegou uma moça e perguntou: - Ah está aqui também? E ele respondeu: - É eu estou fazendo tratamento, fiz tanto tratamento nos outros que agora sou eu que preciso de tratamento. Então eu perguntei: - Moço e o senhor era o quê, que cuidava dos outros? Aí ele disse: - Eu sou médico, eu cuidei tanto dos outros, que hoje os outros cuidam de mim. Mas menina eu olhando para ele, não dava para acreditar que ele tinha ficado com problema. (Lê)

Lê jamais saberia que uma pessoa tão bem arrumada como o homem que viu no ambulatório poderia estar adoecido e fazendo também tratamento, e se espantou em saber que era médico.

Essa dificuldade em perceber os traços do médico ocorreu porque Lê internalizou os estereótipos concebidos para a doença mental, e também porque não conhecia a sua biografia, ou seja, o reconhecimento da identidade pessoal ainda não havia sido iniciado. Porém, a partir do momento que conhece um pouco a biografia do médico, Lê começa a ter oportunidade para reformular o que internalizou sobre a pessoa com doença mental e passando a construir uma identidade pessoal para ele diante das informações que escutou, entretanto, a identidade social já estava construída pelo que estava visível, ou seja, para Lê aquele homem bonito e bem vestido jamais estaria doente. Goffman afirma essa interpretação ao descrever que quando um indivíduo está entre pessoas para as quais ele é um estranho completo, mas significativo em termos de sua identidade social aparente, há uma grande possibilidade de que essas pessoas comecem a elaborar uma identificação pessoal para ele.11

É interessante que Lê ao construir a Identidade pessoal do sujeito que estava à espera de ser atendido, antecipadamente já possuía uma construção da identidade social de como seria as características de um médico, que deveria ser sadio e que não poderia ocupar a posição de um paciente. Para Goffman, “o reconhecimento de identidades sociais é uma conhecida função de porteiro que muitos servidores cumprem. É menos conhecido o fato de que o reconhecimento de identidades pessoais é uma função formal em algumas organizações”.11:78

Isto se refere à maneira como a identidade social introduz uma percepção para a construção da identidade pessoal. Porém, em outro momento da entrevista, Lê se posiciona quanto a sua percepção em relação às pessoas que não apresentam transtorno mental:

Eu os acho normais. Eles olham pra gente com um jeito estranho. Só fala se for conhecido mesmo, se não for não fala. É um jeito de orgulhoso, de andar diferente. Assim a gente nota que tem um jeito diferente do da pessoa. Uma pessoa orgulhosa é uma pessoa que não dá valor para ninguém, e não é bom a pessoa ser assim. Mas a maioria a gente encontra assim. (Lê)

Lê relaciona as atitudes das pessoas ao seu adoecimento, pois no cotidiano há pessoas que não cumprimentam as outras. E neste caso observamos o quanto sua auto estigmatizada é atuante e tem força dentro dela. Lê percebe diferenças na Identidade social das pessoas consideradas “normais”. Diz que olham para as pessoas com transtorno mental de forma “estranha”. Isso nos faz compreender que a percepção de Lê é de que essas pessoas a acham diferente e, por possuir tais características que a diferencia, passam a excluí-la. Os “normais”, segundo Lê, acabam sentindo-se superiores e orgulhosos por não possuírem os traços de

exclusão. Segundo Goffman,11 os “normais” acabam construindo uma teoria para explicar a inferioridade das pessoas estigmatizadas de modo a reforçar a ideia do perigo que elas podem apresentar, reforçando seu status de normalidade e o de anormalidade das pessoas com transtornos mentais, o que pode ocorrer entre os membros da própria família.

A percepção de algumas diferenças no comportamento entre familiares pode gerar desconforto, causar discriminação que seja responsável pela exclusão social. É o que percebemos no relato entre lágrimas de Lê, quando fala da distância de sua filha. A literatura revela que alguns comportamentos que nós trazemos acabam denunciando informações íntimas que favorecem a construção de uma identidade social avessa aos padrões exigidos pela sociedade e nem sempre a família sabe lidar com essas situações, muitas vezes a atitude que tomam passa a ser a mesma que a filha de Lê, simplesmente de evitar o convívio:

Faz três meses que minha filha não vai à minha casa, ela manda a alimentação, às vezes eu vou almoçar na casa de minha mãe, mas vai fazer três meses que ela não vai na minha casa. Não é preconceito? Porque ela tem tempo, mesmo com os afazeres ela tem que tirar na semana, pelo menos duas vezes para ir à minha casa. Custa nada levar a menina para a avó vê! Não faz isso. Eu sinto que ela tem preconceito de mim. Agora eu não falo, eu fico guardando para mim.(Lê)

Esta ausência pode ser proveniente da rejeição da filha, ou de dificuldades outras que a impede de ir em sua companhia. A filha tem uma vida própria para gerenciar. Mas, se a ausência for mesmo por rejeição, esta atitude pode ser resultante da identidade socialmente construída de uma pessoa que adoece mentalmente. “A figura que o indivíduo apresenta na vida diária perante aqueles com quem ele tem relações habituais será, provavelmente reduzida e estragada por demandas virtuais criadas por sua imagem pública”,11:82 ou seja, o familiar acaba modificando a imagem que possui de seus membros que são estigmatizados, passando a estigmatizá-los ainda mais, mesmo sem perceber.

Segundo Goffman, os normais não tem “nenhuma intenção maldosa; quando o fazem é porque não conhecem bem a situação. Deveriam, portanto, ser ajudados, com tato, a agir delicadamente. Observações indelicadas de menosprezo e de desdém não devem ser respondidas na mesma moeda”.11:127 Sendo a conduta observada em Lê, o esforço para fazer exatamente isso.

Lê guarda o sofrimento da ausência de sua filha sem comentar com a filha o desconforto sentido, sem ao menos dialogar sobre seus sentimentos. Talvez essa resignação possa se estender para uma aceitação natural de sua condição de estigmatizada. Goffman se refere a aceitar com naturalidade a si mesmo e aos outros, muitas vezes unindo-se aos

normais, chegando a sugerir que ao sentir-se desprezada, este sentimento pode ser algo imaginário. Pode ser que intrinsecamente Lê duvide da ausência que relata sentir, pois apesar de percebermos em várias falas sentimentos de desconforto sobre a relação que mantem com a filha, também percebemos comportamentos de sua filha que reflete cuidado para com a mãe, como nos depoimentos a seguir:

Minha filha demonstra que não quer me acompanhar no meu tratamento, aqui tem reuniões de família e ela só veio um dia, nesse tempo que estou fazendo o tratamento. Ela não trabalha, então não custava nada no dia da reunião ela dizer, eu cuido do almoço cedo, saio daqui de uma hora, assisto a reunião, e volto com mainha. Mas não, ela não pensa nisso. (Lê)

Eu tive um negócio para resolver com minha filha no décimo andar de um edifício e eu subi as escadas todinhas correndo. Minha filha subiu as escadas morrendo comigo, mas eu não consegui subi no elevador. (Lê)

Eu não acho que minha família me ajuda. A minha casa está na justiça, então o assessor me disse essa semana que logo, logo será a última perícia. Eu fui e falei com minha filha. E ela disse: só eu. (Lê)

Três noites eu durmo com minha neta. (Lê)

Nessas últimas frases, percebemos que Lê enxerga sua filha e sua neta também como apoios em seu adoecimento, apesar de relatar a ausência e as reclamações da filha. Este apoio é importante porque a doença mental é uma das causas de doenças mais incapacitantes, principalmente pela dificuldade de preservar a autonomia quando se está em crise, por muitos sintomas causar insegurança e medo.34 Então, o apoio, independente deste ser proveniente da família, do namorado ou dos amigos torna-se bastante significativo.

Essa pessoa que eu comecei a namorar conversa bastante comigo. Ontem mesmo passei mal e liguei para ele. E ele passou o dia me dando atenção. (Lê)

O fato de estarmos rodeadas de pessoas nos faz questionar como Lê mantém relações com as pessoas. Quando perguntamos qual a sua preferência em estar com pessoas que apresentam transtornos mentais ou não, Lê nos respondeu:

Eu me sinto melhor com as pessoas que tem transtorno, porque elas me entendem melhor. (Lê)

O sentir-se melhor com as pessoas que possuem transtorno parece estar relacionado a ter liberdade de poder expressar e ser o que realmente é. “Em alguns casos, essa liberdade de ação é consequência da escolha da companhia de pessoas que tem estigmas iguais ou semelhantes”.11:93 Os alinhamentos intragrupais ou a tendência a estratificar-se com os seus

pares, parece dar-lhe mais segurança e compreensão. Quem vivencia experiências semelhantes tem mais elementos para entender a experiência do outro.

No entanto, é interessante que, mesmo verbalizando o oposto, Lê nas entrelinhas acaba incorporando a ideia de Goffman de que se ela voltar-se para o seu grupod estaria sendo leal e autêntica; e se se afastasse dele estaria sendo covarde e insensata. Esse sentimento de lealdade pode ser observado na fala abaixo, quando perguntamos se ela teria vergonha de cumprimentar algum colega que faz tratamento psiquiátrico:

Acho que não terei vergonha de falar não. Está com algumas semanas que eu encontrei uma usuária do CAPS e nos falamos. (Lê)

Em relação aos alinhamentos exogrupais, ou seja, aos alinhamentos com os diferentes ao seu grupo, Lê refere-se a se sentir da mesma forma que ao estar com as pessoas que possuem transtorno mental. Segundo ela,

Com pessoas que não sofrem esses tipos de transtornos, eu me sinto do mesmo jeito [...]. Meu namorado é normal. Tem uma saúde de ferro, mas é por isso mesmo que me dá medo [...], ele não tem preconceito. (Lê)

Entretanto, percebemos que apesar de Lê se relacionar com uma pessoa considerada “normal”, sem transtornos mentais, preocupa-a o fato de ser considerada diferente, não aceitando a possibilidade de o namorado gostar dela sem que tenha os mesmos atributos que os seus. No entanto, como apresentado a seguir, estar no CAPS possibilitou algumas modificações em sua identidade.