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Da ocupação ao assentamento: uma nova conquista

A história dos trabalhadores rurais que lutam pela terra no Brasil assemelha-se bastante nas diversas regiões do país: aproximar-se de outras pessoas com igual interesse, integrar-se a uma organização de trabalhadores, participar das reuniões e articulações preparatórias às ocupações, ocupar a área de terra pretendida, resistir a longas jornadas de negociações com os governantes, às ameaças de desocupação via força militar (armada) e a toda ordem de dificuldades com estadia e alimentação. As particularidades dessa luta ficam por conta das características culturais e políticas de cada grupo de trabalhadores que impõem o ritmo e a escolha de estratégias de ação mais apropriadas, apoiadas pelas lideranças do movimento, como do MST, por exemplo, e pelas experiências de outros processos de ocupação e assentamento.

A decisão de ocupar a terra não é uma tarefa simples. Exige muita coragem e determinação para embrenhar-se na mata na escuridão da noite, superando o medo de ser surpreendido a qualquer momento e de sofrer represálias, muitas vezes de natureza tão violenta que podem provocar a morte de mulheres, homens e crianças. Mais difícil ainda, é manter a ocupação, que tem dia e hora marcada para começar, mas não para terminar.

Com a ocupação, o problema que era latente fica configurado: é preciso fazer reforma agrária, é preciso repartir a terra. A resolução desse problema é morosa. Da ocupação ao assentamento, com a distribuição definitiva dos lotes, é uma longa história. É um pouco dessa história que moradores do Assentamento Nova Conquista relataram, e à qual passaremos a seguir.

Sete mil em ação

Cansados da espoliação sofrida por seus patrões, ou da miséria a que estavam submetidos, e ansiosos por uma vida mais digna, na madrugada de 08 de abril de 1996, sete mil trabalhadores ocuparam uma grande fazenda, hoje assentamento Margarida Alves, no município de Mirassol D’Oeste, a oitenta Km de Cáceres. Ali permaneceram unidos por um mesmo objetivo: conquistar um pedaço de terra.

Realizando pequenas marchas pelas cidades vizinhas, reunidos em assembléias ou mesmo entrincheirados os sem terra procuraram chamar a atenção da opinião pública para a Reforma Agrária. Na histórica mobilização feita em Cuiabá, no período de julho a setembro de 1996, montaram acampamento em frente ao INCRA-MT, reivindicando audiência com o Superintendente daquele órgão e com o Governador. Deslocaram-se para essa atividade, dois mil trabalhadores. Os outros cinco mil permaneceram acampados em Margarida Alves, guardando a área.

Dispostos a enfrentar todo tipo de adversidades, os trabalhadores armaram barracas, dormiram e comeram à beira do asfalto, em frente à sede estadual do INCRA. Durante setenta e cinco longos dias esse espaço constituiu-se em uma espécie de casa e principal campo de luta política, pois, ali se reuniam as forças capazes de solucionar o impasse colocado pela reivindicação da terra: INCRA e Governo Estadual. E se reuniam, também, as forças fermentadoras da luta pela Reforma Agrária na região leste de Mato Grosso: Coordenação do MST e trabalhadores rurais.

As péssimas condições de estadia e alimentação nunca dispensaram a organização e disciplina no acampamento. As atividades diárias eram tratadas através dos núcleos formados pelos próprios acampados, responsáveis pelo funcionamento e operacionalização de tarefas atinentes a cada área, quais sejam: alimentação, mística, limpeza, negociação, mobilização, etc. Todas as pessoas, inclusive as crianças, eram envolvidas na realização dessas tarefas, numa prática solidária e igualitária onde todos procuravam pensar e agir juntos, responsabilizando-se pelas ações e atitudes tomadas.

As manhãs eram sempre incertas: era difícil prever se permaneceriam sem ser incomodados pela polícia que, volta e meia, rondava o local, se teriam comida para toda aquela gente, e ainda qual seria o desfecho daquela situação. Perigos de diversa natureza ameaçavam a vida dos acampados, tanto no meio do mato quanto na cidade.

Os dias arrastavam-se demoradamente. O cansaço e a impaciência tomavam conta de muitos trabalhadores. Alguns, mais desacostumados com esse tipo de luta, não agüentaram e desistiram. Outros persistiam, procurando animar os demais companheiros. Nesse processo foram fundamentais as diversas formas de pressão utilizadas, passando das reuniões de núcleo, às assembléias, das orações à mística, dos cantos aos gritos de ordem,

com os punhos erguidos ou empunhando enxada, foice e facão – instrumentos de trabalho -, das negociações às manifestações públicas (caminhadas, ato-show).

As negociações foram conseguidas à custa de muita pressão: cercando os responsáveis, pelos pátios e corredores do Centro Político Administrativo, ocupando a sala do Presidente do INCRA. O vai-e-vem das seguidas reuniões e decisões tomadas traduzia o clima de instabilidade vivido pelos acampados, que não viam as palavras do representante do Governo tornarem-se realidade no jogo de empurra-empurra que se estabeleceu entre as diversas instâncias do Governo.

“Aí, vai lá... Toda Segunda-feira falava: “-É Segunda-feira...” Nada. Esse homem tá brincando com nois. Nois vamos prendê ele lá dentro do INCRA... Nois prendeu ele lá dentro do INCRA. O Elarmim tava enganando a gente. Ele ia no telefone telefonar... mentira, ele num tava telefonando nada! Depois, um dos nossos descobriu que ele tava com onda...” (Dona Maria, assentada, 10/11/00).

O desgaste já estava patente quando os trabalhadores exigiram um parecer final sobre a liberação da fazenda destinada ao assentamento:

“... o Dante de Oliveira teve com nois lá em frente o Palácio lá em Cuiabá, ele entrô lá no meio de nois... conversou... e o povo juntou ele (...) Não queria entrar lá pra dentro do Palácio pra conversar, pra negociar, fizeram ele entrar lá pra dentro. Ele entrou. Aí ele negociou, liberou, assinou...” (Dona Maria, assentada, 10/11/00). Liberada a terra onde seriam assentados, os trabalhadores dirigem-se ou são transportados para lá, permanecendo com acampamento montado em um único ponto, com todos os trabalhadores reunidos, vivendo em sistema comunitário/coletivo, apoiando-se mutuamente, procurando atender às necessidades básicas colocadas pela presença de um grande contingente de pessoas, tais como alimentação, habitação, saúde e educação. A escola foi improvisada em uma das casas da antiga sede da fazenda, pois era sentimento geral de que as crianças precisavam estudar, e que este processo não podia esperar.

A liberação da área para o assentamento significou um grande momento para os trabalhadores. Contudo, apenas metade da batalha estava vencida, faltando o sorteio dos lotes, momento sublime para os trabalhadores, significando a concretização do sonho de ter acesso à terra para nela morar e produzir. Receber o lote foi como receber a chave de um

tiveram tão pouco ou quase nada. Não é difícil de entender o choro das pessoas no momento da distribuição dos lotes de terra, fato ocorrido em 11 de maio de 1997, mas que até hoje é lembrado com emoção.

“... nessa hora eu chorei (...). Eu num sabia se eu festejava, se eu chorava, eu num parava nem lá nem cá... Daí, a três dia chegou os caminhão, ônibus pra nois vim pra cá. A emoção foi tão grande!...” (Dona Maria, assentada, 10/11/00)

A distribuição dos lotes é uma das fases mais significativas do processo de assentamento pelo fato de representar a objetivação da luta pela terra. Essa conquista é sempre muito festejada, comemorada, fazendo parte dessa comemoração a escolha de um nome para o novo assentamento, que geralmente vem associado à causa da Reforma Agrária e a destacados militantes das causas populares de outras épocas. No caso específico do grupo em referência, o assentamento foi batizado solenemente como Nova Conquista, em alusão ao sentimento coletivo dos trabalhadores ali reunidos.

O júbilo pela conquista da terra prolonga-se até o desencadeamento das discussões relativas à organização e estruturação do assentamento, nas quais já não é possível perceber a mesma união que caracterizara as lutas pré-assentamento. As dificuldades no encaminhamento de tais questões desestimulam muitos trabalhadores:

“... Algumas pessoas querem perder a cabeça, perder a paciência, querem largar, mas outros não, é firme. Outros é assim: só saem da terra depois de morrer...Eles tavam em busca da terra, depois que tem a terra vai largar ela pra que? Eu não largo a minha... só depois que eu morrer... Então, ainda existe muita união nas pessoas que têm a cabeça no lugar. Tem gente que não tem a cabeça no lugar... Alguns acha que porque pegou a terra, que basta, né? Eu não, eu quero mais...” (Dona Maria, assentada, 11/10/00).

Um sentimento tipicamente associado à etapa do assentamento é o de ser dono, ser proprietário que, por um lado associa-se à idéia de liberdade, pela desobrigação de vender a força de trabalho, e por outro, à falsa idéia de auto-suficiência, que conduz ao individualismo, onde cada dono de “sítio” age por conta própria. Tais sentimentos e atitudes chocam-se com a perspectiva de organização coletiva colocada pelo MST, dificultando, de certa forma, a estruturação do Assentamento, que exige permanentes gestões junto aos poderes públicos no sentido de verem atendidas as reivindicações e os projetos de infra-estrutura e de caráter social, tais como saúde e educação.

Esta questão tem sido apontada como um dos principais desafios do MST, cuja proposta de Reforma Agrária, em que pesem algumas contradições internas, consubstancia- se em um projeto político-social mais amplo, que objetiva a construção de um novo modelo de sociedade. Uma sociedade com princípios e práticas coletivistas, da produção à distribuição dos produtos, das relações sociais de trabalho às relações interpessoais.

Organizar o assentamento é uma tarefa eminentemente política que exige em primeiro lugar a constituição de uma coordenação capaz de articular as diversas necessidades e interesses dos assentados, de fazer a ponte com a Coordenação Nacional e Estadual do MST, e encaminhar as reivindicações do coletivo do Assentamento junto aos órgãos públicos.

A exemplo de outros assentamentos, em Nova Conquista a coordenação funciona apoiada pelos Núcleos organizados por proximidade física, onde a cada vinte famílias os assentados de uma mesma região formam um núcleo. Um representante de cada núcleo compõe a Coordenação, cabendo tanto a ela quanto aos núcleos estimular e encaminhar o processo de estruturação e melhoria do Assentamento visando o interesse e o bem-estar coletivo. Esta, diga-se de passagem, não é uma tarefa fácil, pois os responsáveis têm que driblar as distâncias e dificuldades de comunicação devido à dimensão do assentamento e à forma de distribuição dos lotes, chamada de “quadrado burro”, e procurar conciliar tais atividades com as de suas vidas particulares e, em alguns casos, com outras funções, como por exemplo, a docência. A atuação dos núcleos, que era efetiva nos anos anteriores, decaiu em 2001. Diversos são os motivos apontados pelas lideranças, mas o principal está associado à incorporação de trabalhadores ao assentamento diretamente pelo INCRA, sem experimentar o processo de mobilização e luta do MST. Havendo também aqueles que abandonaram a luta do MST, passando a intitular-se “Grupo do INCRA”, conforme explica o Coordenador do assentamento:

“Aqui nós temos o MST, né? E temos um grupo de sessenta e nove famílias que não quiseram mais o movimento, né? E aqui entre nois eles falam que são do INCRA, do movimento do INCRA – todo mundo foi assentado pelo INCRA... Eles não saíram do movimento, não criaram um outro nome pro movimento, mas falam que são do INCRA...” (Sr. Josué, Coordenação do Assentamento).

Para a efetivação dos serviços de infra-estrutura são reivindicados recursos financeiros junto ao Governo Federal, com uma contrapartida das Prefeituras, responsáveis pela operacionalização das obras. Por sua vez, a liberação e a aplicação de tais recursos financeiros dependem, em grande parte, da mobilização e organização de cada Assentamento, apoiados pela Coordenação Regional do MST. Há um entendimento entre os trabalhadores rurais de que o Estado é obrigado a garantir a satisfação das necessidades básicas de todos os cidadãos, e de que eles têm direito de usufruir os bens públicos, sem que isso implique numa relação de subserviência com o Estado.

Dos seis assentamentos realizados na região de Cáceres em 1996, três contam com infra-estrutura básica do tipo: energia elétrica, telefone, estrada asfaltada ou em boas condições de tráfego, posto de saúde funcionando, e escola para crianças e jovens. Os outros três dispõem de escola, mas enfrentam sérios problemas nos demais setores, que são precários ou mesmo inexistentes.

O Assentamento Nova Conquista está situado há 60 quilômetros do município de Cáceres-MT, e a 180 quilômetros da capital de Mato Grosso, Cuiabá. Esse assentamento comporta um número aproximado de 200 famílias, e é considerado o segundo maior do Estado.

Nova Conquista não conta com energia elétrica e nem com asfalto, sendo o trânsito interno dificultado pelas péssimas condições de conservação das estradas. Tais fatores aliados à ausência de rede telefônica comprometem a comunicação entre os assentados, provocando morosidade no encaminhamento das questões relativas à organização do assentamento; a comunicação com a cidade revela-se bastante difícil, sendo que o meio mais rápido de que podem dispor é o transporte terrestre por meio de ônibus interestadual ou dos ônibus municipais, que fazem linha para a cidade de Cáceres duas vezes por semana.

Em alguns pontos do assentamento a água chega com facilidade, vindo de uma nascente (mina) localizada em cima da serra que contorna grande extensão do Assentamento. Porém, em outros pontos a água existente é muito escassa, sendo retirada de pequenos córregos ou riachos, pois as características físicas do terreno inviabilizam a construção de poços simples, semi-artesianos, e de pequenas represas. Portanto, posso afirmar que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelas pessoas no Assentamento é

sem dúvida a escassez de água. Andar longas distâncias atrás de água é uma rotina vivida por homens, mulheres e crianças. Na garupa da bicicleta, na carroça ou mesmo a pé, transportam recipientes cheios de água de poço, represa ou do córrego, que usam para beber, cozinhar e para outros serviços domésticos. Quem tem um pouco de água cede para quem nada tem.

Cansadas de aguardar a construção de poços artesianos previstos no projeto do assentamento, em julho de 2001 algumas famílias se juntaram e resolveram canalizar a água de um córrego para suas casas, muito embora a água seja salobra e ruim para beber. Esta foi uma alternativa encontrada em uma situação emergencial enquanto preparam novas mobilizações com vistas a solucionar definitivamente o problema, pois sabem que é muito temeroso contar apenas com a “ajuda dos céus”.

Logo depois que o assentamento foi consumado - cerca de oito meses -, cada família recebeu uma verba do Governo Federal, chamada custeio, destinada à construção de moradia e investimento na produção agrícola ou pecuária, conforme “vocação” de cada área e interesse das famílias. Decorridos quase quatro anos de assentamento, quem passa pelo local pode observar casas de alvenaria e algum tipo de plantação ou criação de animais nos lotes. Na avaliação de alguns assentados, essa verba chegou rápido, comparando-se com as experiências de outros Estados que amargam longo tempo sem qualquer tipo de recurso para investir na terra conquistada.

A situação confortável do primeiro ano não perdurou muito. Veio o pagamento do empréstimo contraído junto ao Governo Federal, com os juros, que embora pequenos (2% no primeiro ano/empréstimo, e 4% no segundo), passaram a dificultar a vida dos assentados, pois a renda obtida com os investimentos feitos era insuficiente para quitar a dívida. Ao mesmo tempo em que tal fato dificultou a efetivação de novos empréstimos, o Governo alterou as regras de financiamento, ampliando as taxas de juro, empurrando os assentados para o mercado financeiro comum. A proposta do Governo está caracterizada com a implantação do Banco da Terra.

“... os latifundiários num qué ver ninguém feliz, comendo e bebendo. Só quer ver gente nu e com fome. E sendo assim Fernando Henrique já não quer mandar o recurso pros pequeno agricultor trabalhar. Ele só quer que a gente vai pelo Banco da Terra, o Banco da Terra nois não queremos (...) O banco da Terra

deixar ele segurar nois não. Nois já escapou de uma, e num vai deixar ele segurá, nois... num quer ficar na mão deles.” (Dona Maria, assentada, 11/10/00).

O coordenador do assentamento explica que esses recursos vinham em forma de subsídio, que hoje não mais existem:

“... de uma época pra cá o Governo começou a cortar o pouco de recurso que nois tinha, que era o PROCERA, o Custeio... De agora em diante não existe mais essa forma de recurso... Então, fica difícil... Certamente pra um lote como o que nóis peguemo aqui, um recurso de R$9.500,00 como o que nóis peguemo, foi muito pouco, porque peguemo parcelado, e para cada coisinha no lote vai um pouquinho: um pouquinho pro arame, um pouquinho pra comprar uma vaca de leite, pra represa... Então, esse recurso foi pouco, devia ter pelo menos um recurso básico que seria o custeio agrícola. Já chama custeio: custear o ano, plantar roça, poder organizar melhor o lote” (Sr. Josué, Coordenação do Assentamento).

Garantir recursos financeiros que permitam estruturar melhor seus lotes e o assentamento como um espaço social e coletivo, é um dos grandes desafios dos trabalhadores do Assentamento Nova Conquista, assim como, garantir sua organização política através de núcleos atuantes e em sintonia com o projeto social do MST. Constam de suas grandes reivindicações: a melhoria das estradas de acesso à área do Assentamento, implantação do sistema de energia elétrica, e de telefonia, ampliação da Escola e implantação do 2º grau - ensino médio -, melhoria das condições de trabalho na Escola: transporte escolar em perfeitas condições de funcionamento, biblioteca escolar, recursos didáticos, etc.

É algo muito bonito de se ver: a terra repartida, cultivada, povoada. As famílias mostram-se felizes com a “Nova Conquista”, pois no “chão onde pisava o boi, é feijão e arroz, capim já não convém” 8. Mesmo com todas as dificuldades que enfrentam, para muitos viver no Assentamento Nova Conquista é como viver num paraíso ou num reino encantado, conforme ilustram os depoimentos abaixo:

“... parece um sonho a gente ter nosso pedaço de terra, porque a gente não comprava nunca, porque não tinha dinheiro. Aqui tá igual o reino encantado. Do meu reino encantado ninguém me tira. Tô

feita nele. Se Deus quiser, eu vou ficar aqui!” (Dona Maria, assentada, 10/11/00)

“... Hoje em dia eu to tranqüilo (sorriso). Graças a Deus, trabaiando pra mim próprio encima da terra que nois conquistamo, e nada de mexer com trabalho de fazendeiro, ou de empregado, qualquer um que seja, porque num dá renda, só dá dificuldade... e, quando não dá esse tipo de coisa, tipo de prejuízo que a gente agüentou e tá agüentando, porque eu ainda num recebi até hoje, né?...” (Sr. Mineirinho, assentado, 10/11/00)

De modo espontâneo, uma criança de onze anos expressou as mudanças ocorridas em sua vida desde que saiu de um bairro violento de uma pequena cidade no interior de Mato Grosso, onde viviam praticamente trancados em casa com seus irmãos, quando não estavam acompanhando a mãe no trabalho de cortar cana em uma fazenda:

“Agora nós tá feliz! Nós temos nossa vaquinha, pasto bom... tem leite... galinha, porco... tem um porquinho que nós compramos.” (Erisvaldo, filho de assentada, 10/11/00).

As pessoas se levantam sempre muito cedo para começarem a lida diária em casa, na roça ou, ainda em ambos os lugares. Trabalham o homem, a mulher e as crianças maiores, numa prática típica da produção familiar, onde os seus próprios membros constituem a força de trabalho a ser utilizada. Quando a situação exige, todos trabalham juntos numa mesma atividade, por exemplo, na época de plantio e de colheita. Outras vezes, dividem as tarefas conforme a força e “aptidão”.

No caderno de campo registrei um dos meus contatos com uma das famílias:

“Hoje pedalei uma distância maior que ontem, cerca de 05 quilômetros. Fui à casa do Sr. Mineiro e de Dª Maria. Quando cheguei eram onze horas e eles já estavam no intervalo do almoço. Da estrada mesmo avistei Dª Maria na janela acenando para mim. Empurrei a bicicleta até o pequeno morro onde ficava a casa dela. Recebeu-me à porta, sorridente como sempre, chamando para entrar, e logo me oferecendo café. Nesse mesmo instante alguém grita pelo marido dela lá do colchete. Pelo visto o Sr. Mineiro reconhece a voz da pessoa, pois responde simplesmente “- Opa! Vamo chegá!”, permanecendo sentado com uma lima de amolar enxada na mão. De fato, o homem

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