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CAPÍTULO 2 A TRAJETÓRIA E OS RESULTADOS DE UMA PESQUISA

2.1 O percuso metodológico

Numa instituição forense brasileira, toda a história dos conflitos (a lide) está registrada nos autos de um processo judicial e é encerrado com a decisão do (a) Juiz (a). Todas as informações, providências, determinações e decisões tomadas no decorrer de um processo precisam estar registradas nesses autos. “O que não está nos autos, não está na vida” afirma Selma Magalhães (2003, p. 35).

Os autos contêm diferentes olhares acerca de uma mesma questão: algumas vezes, advogados e promotores ao discursarem sobre a lei, enfatizam aspectos diferentes, mas relativos a uma mesma situação. Também agem nos processos alguns profissionais cuja área de competência não é a do Direito. No caso do Poder Judiciário Paulista, mais habitualmente atuam os seguintes profissionais: Assistentes Sociais e Psicólogos, que fazem parte de uma equipe de assessoria os juízes e demais profissionais como médicos e psiquiatras (entre outros) os quais trabalham como peritos.

A produção da sentença final forma-se depois de certo decurso, em que diversos profissionais colaboram para a interpretação da realidade por parte do Juiz. Como aponta Esteves (1989), é um quebra-cabeça montado a várias mãos. No entanto, a sentença não é apenas uma “palavra em vão”, mas também uma comunicação escrita que estabelece consequências concretas na vida das pessoas envolvidas.

Diante dessa peculiaridade do universo forense, que admite como práticas cotidianas comunicações escritas, optou-se, neste estudo, pela pesquisa dos autos judiciais. E outras palavras, consideramos que nesses documentos se concentram os fatos, a demanda apresentada, a trajetória, a situação da vida das pessoas envolvidas; assim como as manifestações do Ministério Público, as Determinações Judiciais, os estudos sociais e psicológicos, quando existentes e, por fim, a sentença judicial, a qual apresenta as respostas do Poder Judiciário aos conflitos em questão.

Para compreender a trajetória global das pessoas envolvidas em cada processo e apresentar os casos de forma compreensível, foi necessária a organização de cada um deles. Afinal, muitas vezes, um processo possui vários apensos, isto é, vários procedimentos relativos ao mesmo caso, realizados ao longo dos anos. Conforme apontam Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009, p. 8).

É impossível transformar um documento; é preciso aceitá-lo tal como ele se apresenta, às vezes, tão incompleto, parcial ou impreciso. No entanto, torna- se essencial saber compor com algumas fontes documentais, mesmo as mais pobres, pois elas são geralmente as únicas fontes que podem nos esclarecer sobre uma determinada situação. Desta forma, é fundamental usar de cautela e avaliar adequadamente, com um olhar crítico, a documentação que se pretende fazer análise.

Diante do grande universo de questões que tramitam no interior do Poder Judiciário e diante de nossas limitações de pesquisadora individual, nosso primeiro problema foi tentar identificar quais casos que melhor permitiriam compreender a forma como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem posicionando-se com respeito aos casos que necessitam de políticas públicas.

Com base em minha experiência profissional de assistente social, exercida por aproximadamente 18 anos, no Tribunal de Justiça de São Paulo, foi possível observar que os casos atendidos na Vara da Infância e Juventude abarcam, em sua maior parte, uma população desprovida de recursos. Também verificamos que, quando os direitos das crianças e dos adolescentes estabelecidos pelo ECA são ameaçados ou violados em decorrência da conduta dos próprios, ou ainda por ação ou omissão da família, sociedade ou Estado, o resultado são demandas sociais não resolvidas, ou não solucionadas pelos agentes do poder público.

Devido a essas características, típicas dos casos atendidos na área em questão, tornou-se o local especialmente interessante para a escolha de nossa pesquisa: o estudo dos autos que tramitam na Vara da Infância e Juventude no Tribunal de Justiça de São Paulo.

A área da Justiça da Infância e Juventude direciona seu atendimento aos problemas relacionados às crianças e aos adolescentes, quando essas estiverem em situação de risco e vulnerabilidade social e quando necessitarem de medidas de proteção, conforme já explicamos anteriormente.

Considerando os vários tipos de ações na Vara da Infância e Juventude (como: pedidos de adoção, acolhimento institucional, acolhimento familiar, pedido de guarda, inscrição de pretendentes a adoção, suprimento de idade, aplicação de medidas socioeducativas, entre outros), foram identificados quais os casos que melhor permitiriam compreender a forma como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem posicionando-se acerca dos casos em que há conflitos com as políticas públicas.

Em nossa experiência profissional, observamos a existência de muitos processos iniciados a partir de solicitações dos Conselhos Tutelares. Nessas solicitações, os Conselhos

Tutelares alegavam de que não conseguiam “sozinhos dar respostas” ou “solucionar a situação” e pediam a intervenção do Poder Judiciário, no entanto, acolhiam crianças e adolescentes, em instituições. O acolhimento institucional da criança e do adolescente, como medida excepcional, só pode ser decretado pela autoridade judicial (art. 101, §2º, ECA), cabendo ao Conselho Tutelar sua aplicação, apenas em situações excepcionais e emergenciais. A providência deve ser comunicada imediatamente ao Ministério Público, para início do devido procedimento judicial, a fim de que os envolvidos sejam convocados e a possibilidade de defesa seja oferecida.

Aparece, nesses autos, uma tentativa prévia, por parte dos Conselhos Tutelares, de resolver as situações, mediante o encaminhamento dos problemas apresentados pelas crianças, adolescentes e suas famílias. É possível, dessa maneira, perceber um conflito latente entre o Conselho Tutelar e os órgãos do poder público (escola, sistema de saúde, assistência social, creches, habitação, entre outros âmbitos).

Quanto ao acolhimento institucional, os Conselhos Tutelares solicitam ao Ministério Público que provoque o Judiciário a dar uma resposta a um conflito, solicitando que a criança e/ou adolescente seja reinserida em sua família de origem, extensa ou a família substituta, por meio da adoção.

Os estudos11 apontam ainda que as famílias, nos casos de acolhimento institucional, estão entre aquelas que não contam com suporte necessário para exercerem integralmente as funções de provedoras e mantenedoras dos filhos, em decorrência, dentre tantas outras questões, da escassez de programas e/ou políticas públicas voltadas ao atendimento de seus direitos sociais.

Foi possível perceber que várias famílias têm consciência de que sua condição financeira precária afeta, e muito, a vida de seus filhos, netos, sobrinhos e/ou irmãos, mas não visualizam possibilidades de mudanças dessa situação em razão principalmente da dificuldade de conseguirem emprego e/ou manterem um trabalho fixo. Ou, ainda, por não contarem com programas socioeducativos nas proximidades de sua moradia, como vaga em creches, centros de juventude etc. Em decorrência, muitas vezes se sentem incapazes de cuidar das crianças e/ou adolescentes e, apesar de desejarem tê-los de volta, várias observam que é bom que estejam abrigados, porque assim estão tendo melhores condições de vida (FÁVERO; CLEMENTE; GIACOMNI, 2008, p. 119).

11 Para aprofundamento da questão, ver o trabalho organizado por Eunice Teresinha Fávero, Maria Amália Faller Vitale e Myrian Veras Baptista (2008), intitulado "Famílias de crianças e adolescentes abrigados: quem são, como vivem, o que pensam, o que desejam". E o trabalho de Rita C. S. Oliveira (2007), intitulado "Quero

voltar para a casa".

De acordo com esses parâmetros, a pesquisa foi realizada na Vara da Infância e Juventude, nas Comarcas da 26ª Circunscrição.12 O recorte temporal estudado foi o intervalo compreendido entre janeiro e dezembro de 2013. Para delimitar esse período, levamos em conta que a maior parte dos casos analisados estaria encerrada por ocasião de nossa pesquisa. Contaríamos, assim, com todas as peças dos autos para procedermos a nosso estudo: a petição inicial, a manifestação do Ministério Público, as determinações judiciais, os estudos social e psicológico e a sentença judicial, acatando ou não a demanda solicitada.

Para a elaboração do presente trabalho, adotamos também a abordagem metodológica qualitativa em relação ao objeto de estudo proposto. A opção por esse tipo de pesquisa se fez no intuito de procurar compreender e explicar a dinâmica do Poder Judiciário, mediante a forma pela qual ele se constitui e seu significado para os sujeitos envolvidos.

Para Ginzburg (2002), evidência, como pista ou prova, é uma palavra crucial para o Juiz. Este último necessita de provas para julgar; assim, o advogado deve formular um argumento convincente e verossímil. Essas palavras refletem uma tendência bastante difundida no pensamento ocidental, e reforçada pela atmosfera positivista – a necessidade de comprovação.

Nos últimos vinte e cinco anos, palavras como prova ou mesmo verdade (ligada a primeira por um forte nexo, ainda que histórico) adquiriram nas ciências sociais um tom de desuso, evocando implicações positivistas [...] Há um elemento no positivismo que precisa ser inequivocamente rejeitado: a tendência de simplificar o relacionamento entre evidência e realidade[...]. Em outras palavras, a evidência não é tomada como um documento histórico em si, mas um médium transparente- como uma janela aberta que nós dá acesso direto à realidade. (GINZBURG, 2002, p. 347).

Em vez de lidar com a evidência como uma janela aberta, os céticos contemporâneos a tomam como um muro, que, por definição, bloqueia qualquer acesso à realidade. Estudar a realidade como texto deveria somar-se à advertência de que texto nenhum pode ser entendido sem uma referência a realidades extratextuais. Dito de outra forma, não se pode permanecer no texto, é preciso levar em conta o contexto. O contexto, visto como espaço de possibilidades dá ensejo a integrar a evidência, muitas vezes, feita de fragmentos dispersos, sobre a vida dos indivíduos (GINZBURG, 2002).

A mesma situação ocorre nos autos judiciais: numa instituição forense, toda história dos conflitos (a lide) está registrada nos autos de um processo judicial, encerrando-se com a

12 A 26ª Circunscrição Judiciária do Estado de São Paulo abrange os Fóruns das Comarcas de Assis, Cândido Mota, Quatá, Palmital, Maracaí e Paraguaçu Paulista.

decisão do Juiz. Assim, pesquisa documental foi utilizada com o objetivo de sistematizar informações constantes nos autos: a demanda apresentada, a manifestação do Ministério Público, os relatórios técnicos (assistentes sociais e psicólogos) e decisões judiciais que compõem os processos existentes de crianças, adolescentes e famílias de acolhimento institucional, no período descrito.

De acordo com Maria Marly de Oliveira (2007), tanto a pesquisa documental quanto a pesquisa bibliográfica têm o documento como objeto de investigação. Para a autora, a primeira é muito próxima da segunda. O elemento diferenciador está na natureza das fontes: a pesquisa bibliográfica remete às contribuições de diferentes autores sobre o tema, atentando para as fontes secundárias, já a pesquisa documental recorre a materiais que ainda não receberam tratamento analítico, ou seja, às fontes primárias, isto é, são dados originais que mantêm uma relação direta com os fatos a serem analisados, portanto é o pesquisador (a) que os examina. Essa é a principal diferença entre a pesquisa documental e a bibliográfica: “[...] na pesquisa documental, o trabalho do pesquisador (a) requer uma análise mais cuidadosa, visto que os documentos não passaram antes por nenhum tratamento científico.” (OLIVEIRA, M. M, 2007, p. 70, grifo nosso).

É primordial, em todas as etapas de uma análise documental, a avaliação do contexto histórico no qual foi produzido o documento, o universo sociopolítico de quem fala (de quem emite o laudo, o parecer) e daqueles aos quais foi destinado o parecer − no caso, crianças, adolescentes e famílias.

Assim, a partir dos procedimentos elencados, buscou-se identificar e analisar as informações que possibilitassem a percepção da intervenção do Poder Judiciário Paulista, para a garantia de direitos na área da Infância e Juventude, em face da falta de implantação e/ou implementação de políticas públicas.

Para Minayo (1992), a análise deve superar a descrição do dado e avançar para a interpretação. Aponta que há três finalidades para análise: (1) estabelecer a compreensão dos dados coletados; (2) confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e/ou responder às questões formuladas; (3) ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando ao contexto cultural da qual faz parte. Essas finalidades são complementares, em termos de pesquisa social.

Em um primeiro momento, foi utilizado o procedimento metodológico de pesquisa bibliográfica (que, na verdade, se fez presente durante todo o trabalho). Essa metodologia foi empregada para nos acercarmos do objeto de investigação proposto e para obtermos o suporte necessário ao estudo das categorias identificadas a partir da pesquisa empírica. Entre as

referências utilizadas estão: Bourdieu (1989); Giovanni (2009); Grinover (2013); Habermas (2003); Iamamoto (2003, 2010); Iamamoto e Carvalho (1982); Marshall (1967); Muller (2002); Bucci (2013); Dussel (1995); Taylor (2000).

A preocupação central deste trabalho foi elaborar uma reflexão efetiva das “coisas como elas são” e “não como deveriam ser”. Valorizaram-se, pois, as relações concretas, assim como o poder, as resistências e os confrontos com os demais poderes. Os fundamentos legais foram vistos como “meios”, como “recursos” que podem ser usados ou nãos, acionados em diferentes direções, com maior ou menor habilidade. O pressuposto básico é de que existe uma arena pública, com regras, as quais não são neutras: há disputas de espaço e influência em tal arena. E mais: provocam consequências na vida das pessoas − no caso deste trabalho, nas vidas de crianças, adolescentes e famílias.

A análise de conteúdo foi utilizada para a identificação das categorias e para a análise dos autos, dos pareceres, dos documentos e da pesquisa bibliográfica. A nosso ver, a utilização dessa metodologia pode contribuir para o processo de desvelamento da realidade, ao buscar uma maior aproximação com a essência do objeto de estudo.

As categorias identificadas para a análise dos autos foram: política pública da criança e juventude e a fragilização da rede de proteção; os pareceres dos profissionais do sistema de garantia de direitos; poder judiciário e as medidas de proteção, visando a garantia de direitos.

Na pesquisa, a identidade das crianças e dos adolescentes participantes, bem como seus familiares, foi preservada. Por isto, foram identificados por meio de nomes fictícios e suas idades. Além disso, a pesquisa foi realizada mediante autorização do Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo esta a autoridade competente que autorizou a realização desta pesquisa (ANEXO A).

A seguir serão apresentados os dados das Comarcas que compõem a 26ª Circunscrição Judiciária do Estado de São Paulo, bem como os dados socioeconômicos dos municípios e informações gerais sobre as instituições de acolhimento localizados na região pesquisada.

2.2 O universo da pesquisa: dados da 26ª Circunscrição Judiciária do Estado de São